
Para quem não estudou economia, ouvir políticos e economistas discutir o presente e o futuro do país em jargão técnico pode ser esmagador. Ricardo Paes Mamede é uma das poucas vozes que torna estas questões acessíveis, explicando de forma clara o que está em causa, nunca deixando de sublinhar a importância da governação não poder deixar de parte, como vai poder ler abaixo, “a justiça social, de progresso económico sustentável e equitativo”. Desafiámo-lo a responder a questões complexas com respostas simples e ele aceitou. Prova superada.
Começo por lhe perguntar porque se diz social-democrata radical?
Quando eu uso a expressão social-democrata radical é para me remeter para as raízes, para as origens da social-democracia, que tem características um pouco diferentes de com é interpretada hoje, por muitos partidos que se dizem social-democratas, tem muito pouco a ver com a história da social-democracia no seu início.
E que diferenças são essas?
A social-democracia nasce fundamentalmente como um movimento de trabalhadores, de pessoas que vivem do seu salário, que são excluídas do processo de decisão política, vivem em condições materiais precárias, e que se organizam para, a partir de movimentos sociais, procurarem reivindicar os seus direitos e procurar conquistar o poder para ir transformando o capitalismo em algo que possa manter algumas das suas características dinâmicas, mas que seja pelo menos limitado nos seus efeitos devastadores sobre a vida humana e ambiente. A social-democracia hoje tende a ser, do ponto de vista político, algo muito elitista, muito afastado dos movimentos de base, muito afastado da organização do trabalho e, dependendo dos países, em muitos casos, muitíssimo afastada, inclusive daquilo que são os ideais e os valores fundamentais da social-democracia. Eu diria que há uma questão fundamental aqui, que é o princípio de que nós não podemos aceitar que a lógica de mercado seja a lógica dominante em todas as esferas da vida em sociedade. E a social-democracia tem isto como um aspeto crucial da sua agenda desde o início. Quando hoje vemos partidos que se dizem social-democratas a serem os primeiros a acharem que é preciso privatizar tudo, inclusive a proteção social e serviços públicos, mas também a não admitirem um lugar para a decisão política na forma de evolução das estruturas económicas, já estamos muito longe da social-democracia nas origens.
Quais são, atualmente, os maiores problemas da economia portuguesa que incapacitam o seu florescimento?
A primeira coisa que devemos ter presente é que há raríssimos casos na história da economia dos últimos 200 anos de países que tenham passado de uma situação de pobreza para passarem a ser dos países mais ricos do mundo. Há 200 países no mundo, terá havido uns 5 que conseguiram fazer isso. Se Portugal tivesse entre um deles, seria mais ou menos um milagre.
Que países ‘milagre’ foram esses, já agora?
Irlanda, Coreia do Sul, Singapura, Taiwan e pouco mais. Portanto, as condições que é preciso reunir para que se passe de uma situação de muita pobreza para uma situação de muita riqueza, num curto espaço de tempo, são raríssimas de encontrar e são quase sempre fruto de algum acaso.
A segunda coisa que vale a pena termos presente é que há muitos poucos países do mundo que tenham tido o ritmo de crescimento económico que Portugal teve nos últimos 70 anos. A aproximação que tivemos aos países mais ricos do mundo, neste período, tem muito poucos paralelos. Portanto, nós não devemos assumir que o desempenho da economia portuguesa no longo prazo tem sido mau. Não tem, tem sido um dos mais bem sucedidos a nível mundial. Estamos estagnados, que tem a ver com a conjugação de fatores que nos tem afetado nos últimos 25-30 anos e que não se resolve facilmente. Há dois essenciais: por um lado, uma estrutura produtiva baseada em pouca intensidade tecnológica, quando o mundo paga cada vez mais por atividades de alta intensidade tecnológica; e por outro um processo de liberalização financeira que atravessámos a partir da década de 90 e que conduziu a um muito rápido endividamento de famílias e de empresas, que depois se transformou em endividamento também do Estado, porque quando há problemas no setor privado, o Estado acaba sempre por ver isso refletido nas suas contas – e isso deixou-nos o nível de endividamento externo, público e privado, que é em si mesmo uma limitação ao nosso crescimento económico.
Estamos condenados a ser um país de salários baixos?
Portugal já não é o país de salários baixos que foi no passado. Basta olharmos para a evolução do salário mínimo nacional de há 20 anos para cá. O aumento dos salários tem a ver, quer com a capacidade económica, quer com as práticas de distribuição de rendimento. Nem todas as pessoas recebem mal em Portugal, há pessoas que recebem muitíssimo bem, e há atividades profissionais que têm níveis de remuneração em Portugal que não se afastam daquilo que acontece a nível europeu. Nuns casos faz sentido, noutros casos não e acho que as instituições que temos em Portugal continuam a favorecer uma repartição dos salários que cria desigualdades em si própria.
Mas dados de janeiro de 2023, referem que 56% dos trabalhadores portugueses recebem menos de €1000 e quando falamos de jovens com menos de 30 anos, isso sobe para 65%… e são eles a geração mais bem preparada.
Nós não devemos ter ilusões sobre isto: Portugal não se vai transformar numa economia idêntica à alemã nem nos próximos 4, 8 ou 20 anos. E estando nós num espaço altamente integrado, o apelo dos salários mais elevados em economias como a alemã, holandesa ou francesa, vai continuar a exercer uma atração muito grande junto de todos aqueles profissionais, jovens ou não, que têm oportunidade e a vontade de ir viver para outro país.
Isto não menoriza a exigência que devemos ter para que haja melhores condições de vida em Portugal no que respeita ao poder de compra. Mas chamo a atenção de uma coisa: o poder de compra não depende apenas dos salários, depende também de todos os serviços e condições estruturais que as pessoas têm para viver. Não são só os salários que contam. São também as condições de acesso a outros bens e serviços como saúde gratuita, educação, proteção social e habitação.
Fala-se em baixar os impostos às empresas, para estas aumentarem os salários. É assim que acontece?
Não há motivo nenhum para nós assumirmos à partida que essa descida de impostos vai significar, para a esmagadora maioria dos trabalhadores, um aumento do salário líquido que as pessoas têm acesso.

“Em Portugal temos um nível de fiscalidade sobre a propriedade imobiliária, que é, a meu ver, muito baixo. Quem recebe dinheiro de rendas por prédios de que é proprietário, paga taxas de imposto mais baixas do que muitos trabalhadores. E desse ponto de vista, creio que há espaço para aumentar os impostos sobre alguns rendimentos de capital, mas não de uma forma generalizada.”
Se o dinheiro do Estado baixar como se investe no SNS, na educação pública…?
Isso é outra questão. Se o resultado da descida dos impostos significa menos capacidade financeira do Estado – e quase sempre é isso que acontece – há quem tenha teorias maravilhosas, mágicas, de que baixando os impostos a economia desata a crescer tanto que mais do que compensa a perda de receitas fiscais. Mas isso a generalidade dos estudos mostra que não acontece e, portanto, efetivamente a descida de impostos significa: menor capacidade financeira do Estado e como diz, significa menor capacidade do Estado para financiar acesso da população a serviços públicos.
Há quem defenda aumentar os impostos sobre os rendimentos de capital para, assim, compensar a baixa dos impostos sobre os rendimentos de trabalho…
Os chamados rendimentos de capital não são todos a mesma coisa. Eu não sou favorável a um aumento dos impostos sobre empresas que enfrentam uma concorrência forte nos mercados internacionais, em setores de atividade que são cruciais para o futuro da economia portuguesa. Particular, a generalidade das atividades da indústria transformadora ou de alguns serviços intensivos em conhecimento. Agora, há atividades produtivas que beneficiam de situações muito privilegiadas no contexto nacional, que praticamente não têm concorrência externa, que têm mercados muito protegidos, com muito pouca pressão concorrencial e que beneficiam disto sob a forma de lucros muito elevados.
Quais são elas?
Estou a pensar essencialmente no setor da grande distribuição, no setor das infraestruturas de energia, em boa parte do setor financeiro. Mas devemos pensar que temos também rendimentos de capital que estão associados a atividades que são muito pouco produtivas. Em Portugal temos um nível de fiscalidade sobre a propriedade imobiliária, que é, a meu ver, muito baixo. Quem recebe dinheiro de rendas por prédios de que é proprietário, paga taxas de imposto mais baixas do que muitos trabalhadores. E desse ponto de vista, creio que há espaço para aumentar os impostos sobre alguns rendimentos de capital, mas não isto de uma forma generalizada.
Que países são uma referência para si?
Já foi mais fácil responder a essa pergunta, porque neste momento não vejo propriamente modelos ideais de sociedades que nos possam orientar.
Na verdade, vejo aspetos da sociedade portuguesa que é muito importante preservar. Ainda há uma cultura de coesão social, que é um valor importante em Portugal. Ele nem sempre se reflete na prática das políticas públicas ou dos governos, mas a demonstração de que isto continua a ser um valor dominante é a necessidade que os principais partidos têm de fazer um discurso sobre a inclusão social enquanto princípio orientador da nossa sociedade, a dignidade da pessoa humana.
Não vê nos países nórdicos uma inspiração?
Infelizmente, o que vejo em muitos países, onde esses valores foram dominantes, é uma deriva no sentido de um grande individualismo, predisposição ao preconceito, à exclusão de segmentos importantes da sociedade, daquilo que são os direitos fundamentais e, portanto, hoje tenho dificuldade em apontar um país nesses termos.
Gostaria de ter como exemplo para Portugal um país que tivesse os valores da solidariedade, da inclusão, da dignidade da pessoa humana, conseguindo simultaneamente ser um país economicamente dinâmico, administrativamente eficiente e que fosse um país aberto ao mundo. E isto é um processo em construção.
Vários comentadores dizem que fomos ultrapassados por países da Europa de Leste. É verdade ou não estamos a contextualizar?
As duas coisas. É verdade, na medida em que muitas – não todas, há economias de Leste da Europa que têm muitos problemas graves -, dessas economias têm valores médios muito interessantes, mas têm tido uma saída brutal de população, e se nós achamos que a emigração aqui existe em Portugal é muito grande, alguns desses países têm níveis de muitíssimo superiores.
Está a falar de que países?
Nos países bálticos, em termos de impacto na população, isto foi muito significativo, embora as taxas de emigração em muitos destes países sejam muito superiores à portuguesa. Mas voltando à sua pergunta, estes países beneficiam de três coisas fundamentais em relação a Portugal. A primeira, muito importante, é a qualificação da mão-de-obra. Nós ainda estamos a anos-luz dos níveis médios de qualificação deles. É verdade que os jovens portugueses hoje são muito qualificados, mas a maior parte da força de trabalho portuguesa não é jovem, e essa é muito pouco qualificada. As qualificações dos mais velhos nos países de Leste são o triplo ou quádruplo da que existe em Portugal. A segunda tem a ver com a proximidade geográfica e cultural ao centro económico da Europa. Os países que mais cresceram no Leste Europeu são países que estão ao lado da Alemanha. Alguns deles estão a 100km das sedes das empresas alemãs que neles investem…
Nós estamos a mais de 2000km…
Sim, além disso, essa proximidade não é apenas geográfica, é também cultural e histórica. E beneficiaram muito com isso.
Um terceiro fator muito importante é: esses países mantiveram até muito mais tarde que Portugal uma estrutura industrial muito significativa. E para lá se dirigiram muitas empresas industriais das grandes potências europeias que deslocalizaram a sua produção para um local que era perto, com trabalhadores qualificados, quer em termos educativos, quer com experiência de produção industrial, e ainda por cima com níveis salariais muitíssimo mais baixos do que existiam nos países de origem do investimento.
É normal que neste cenário se tenha verificado períodos de crescimento muito acelerado, mas não tenhamos ilusões, eles não vão continuar a crescer como até aqui. Aliás, já está a haver uma desaceleração e eu aconselharia a quem faz disso o seu principal argumento no debate político que comece a pensar noutros argumentos, porque esse não vai valer durante muito mais anos.

“Nós ainda estamos a anos-luz dos níveis médios de qualificação deles [países da Europa de Leste]. É verdade que os jovens portugueses hoje são muito qualificados, mas a maior parte da força de trabalho portuguesa não é jovem, e essa é muito pouco qualificada. As qualificações dos mais velhos nos países de Leste são o triplo ou quádruplo da que existe em Portugal.”
Vistos Gold e afins, benefícios fiscais para nómadas digitais, baixa de IRC, IRS Jovem… Em que medida é que isto vai beneficiar o bem-estar dos portugueses em geral?
Há sempre muito pensamento mágico nesse tipo de medidas. Achamos que baixando o IRC, há mais investimento. Bom para já, o impacto do IRC sobre os lucros é muito mais elevado em algumas empresas do que noutras, e não é nada óbvio que as empresas que recebem mais lucros sejam empresas que estejam com muitas intenções de investir muito mais em Portugal. Quando pensamos nos Vistos Gold, há um pensamento mágico de que vamos atrair muito investimento e pessoas altamente qualificadas. O que temos visto é que servem muitas vezes para se virem fazer investimentos de natureza especulativa, alimentar um mercado imobiliário que está em grande expansão. As pessoas fazem esses investimentos, vão-se embora, não pagam impostos, deixam cá muito pouco. Com os nómadas digitais, a maior parte deles têm zero de ligação à sociedade ou à economia portuguesa que não seja as casas que compram ou alugam, contribuindo para a crise de habitação, ou os restaurantes onde vão comer, que fazem com que tenhamos restaurantes com preços inacessíveis à classe média. Portanto, está muito por provar que este pensamento mágico sobre qualquer um destes fatores contribua de forma significativa para o bem-estar da sociedade portuguesa.
Que investimento estrangeiro querem atrair com a redução do IRC?
Mais uma vez falamos de investimento estrangeiro e imaginamos a Autoeuropa a reproduzir-se em Portugal. A maioria do investimento estrangeiro em Portugal, é investimento especulativo no setor imobiliário. Outra parte são empresas que não produzem em Portugal, que vêm para cá instalar-se para vender os produtos, produzidos noutros países.
O investimento estrangeiro produtivo é crucial para a nossa economia, mas não tem nada a ver com a maioria do que nós estamos a conseguir atrair. Precisamos de atrair o que nos traga escala de produção, capacidade exportadora, conhecimentos tecnológicos e organizativos e, acima de tudo, empresas com uma estratégia de interagir proximamente com empresas portuguesas que lhes fornecem matérias-primas e bens intermédios fundamentais à sua atividade. Isto é a história de sucesso da Autoeuropa.
Não precisamos baixar o IRC para atrair este tipo de investimentos, porque beneficiam sempre de vantagens fiscais muito superiores à redução de pontos percentuais do IRC.
Estas empresas, quando vêm para cá, fazem um conjunto de acordos com o Estado português que lhes garantem acesso a subsídios, investimento público e infraestruturas e, invariavelmente, isenções fiscais durante um longo período de tempo.
Para atrairmos este tipo de investimento transformador, o que precisamos é saber identificar que tipo de investimentos queremos atrair, e garantir que eles têm um efeito de arrastamento sobre a economia portuguesa.
Isto dá mais trabalho do que anunciar uma descida de impostos, e para os políticos é menos confortável, mas é assim que poderemos almejar a ter uma transformação estrutural do país.
E temos tido esse tipo de investimento?
Tem havido investimento relevante em Portugal, de empresas multinacionais que vêm para cá em busca de algumas vantagens qualificadas que oferecemos, empresas europeias, mas algumas americanas também. Temos alguns casos bem sucedidos destas empresas que constroem redes de fornecedores locais e entram em relações próximas com universidades portuguesas de nível mundial e que tem efeitos de transformação estrutural importante na nossa economia.
Agora ter mais disto exige um esforço direcionado e exige fazer uma coisa que os últimos governos não se têm mostrado muito propensos a fazer, que é a coragem de ser seletivo, de dizer que nem todo o investimento interessa, apostar a sério na atração do investimento verdadeiramente relevante.
É mais confortável para um político não selecionar e dar tudo a toda a gente, porque assim não criamos inimigos, mas também não queremos muito desenvolvimento.
É falta de vontade, de conhecimento ou medo de ser impopular?
É uma mistura disso tudo. Com algum espanto tenho, em diálogo com governantes de diferentes partidos, constatado um enorme desconhecimento e uma fraquíssima capacidade de articulação sobre estratégias de desenvolvimento económico dos países. Há muito tempo que os países mais ambiciosos, do ponto de vista de desenvolvimento económico, têm estratégias em que identificam claramente as suas prioridades. E ao fazê-lo, não se limitam a dar subsídios, constroem toda uma teia de intervenções públicas com uma forte articulação com o setor privado, para garantir que nada de essencial falta a estes setores mais sofisticados.
O que quase sempre passa por ter uma estratégia articulada ao nível de formação profissional, de investigação e desenvolvimento tecnológico, de fornecimento de serviços técnicos, de criação de espaços de diálogo entre estes vários interlocutores, de promoção de estratégias de internacionalização das empresas nacionais, de atração do investimento direto estrangeiro para estas áreas em particular. O que implica que haja a competência para identificar as prioridades, desenhar as estratégias de articulação, e implementá-las na prática.
O Estado português tem capacidade para isso?
Nenhum Estado tem até querer ter. E o que tem faltado é governantes que tenham a lucidez de perceber que é através desta estratégia que as economias se desenvolvem e que tenham a coragem de as implementar, porque implica introduzir alguma mudança, tanto no setor privado como no setor público, que enfrenta sempre resistências. E faltam pessoas com coragem.
Falou na formação profissional. Acha que falta variedade de cursos técnico-profissionais em Portugal?
A formação profissional, ou a educação em vias profissionalizantes em Portugal durante muitos anos foi vista numa perspetiva de vias alternativas de educação, mais do que como um recurso fundamental para o desenvolvimento económico.
Mas, ainda pior do que isso, tem sido quase sempre determinada pelo lado da oferta e não da procura. Ou seja, nós criamos cursos em áreas onde há formadores disponíveis, em vez de criarmos cursos em áreas que são necessárias para o tecido produtivo e para as áreas onde queremos apostar.
Eu não conheço nenhum processo de transformação estrutural na história do desenvolvimento económico, onde não tenha havido, por parte do Estado, uma ação decisiva para proporcionar trabalhadores com as qualificações necessárias para as áreas específicas em que esses Estados apostaram.
E isso é um dos motivos pelos quais é mesmo importante ser seletivo, porque nós não podemos apostar em todas as áreas ao mesmo tempo, não podemos querer formar pessoas em tudo e mais alguma coisa ao mesmo tempo.
E precisamos de focar os nossos esforços naquele tipo de qualificações que são mais necessárias para áreas que são mais promissoras. E isso não está a acontecer.
Na sua análise, a entrada do euro foi positiva ou negativa?
A entrada do Euro foi um choque muito substancial na economia portuguesa. Teve um efeito que é percecionado pela generalidade das pessoas, e até das empresas, como benéfico, que foi uma descida substancial dos custos de financiamento.
Do ponto de vista agregado, isto é, para o conjunto da economia portuguesa, a entrada da moeda única é indissociável do processo de endividamento externo. Porque o euro, a primeira coisa que nos trouxe, precisamente por causa das facilidades de acesso ao crédito, foi níveis de endividamento que começaram por por ser privado, das famílias e das empresas, que se revelaram insustentáveis.
E esse impacto da entrada do euro nas contas externas portuguesas, e na estabilidade financeira da economia portuguesa, foi um aspeto muito negativo dessa entrada.
E outro aspeto negativo foi a dificuldade acrescida que Portugal teve para fazer face a um aumento brutal da concorrência externa, com a entrada da China na OMC (Organização Mundial do Comércio), e com o alargamento da União Europeia a Leste.
A incapacidade de tentar compensar este choque competitivo com alguma desvalorização cambial, que seria possível noutro quadro monetário, também teve efeitos bastante negativos.
Portanto é um balanço que, no período que vivemos até agora, dificilmente pode ser visto como essencialmente positivo. Se no longo prazo será mais ou menos positivo, dependerá muito da própria evolução do euro.
Nos últimos 25 anos, muitas regras mudaram. Do meu ponto de vista, elas continuam a ser muito desadequadas a uma economia como a nossa. Vamos ver como é que vão evoluir a partir daqui.
Seria catastrófico?
Eu não diria que seria catastrófico, mas seria uma experiência muito perturbadora nos primeiros tempos, independentemente se funcionaria melhor ou pior.
Eu não vejo uma coisa dessas a acontecer em Portugal, a não ser em cenários extremos, em que acontecem vários países ao mesmo tempo.
Não excluo essa possibilidade, porque acho que os arranjos institucionais que sustentam o euro continuam a ser muito frágeis. E, embora a União Europeia e a zona euro estejam mais bem preparadas para enfrentar uma crise do que estavam há 15 anos, continuam a ter muito potencial de conflitos internos.
Até agora, a União Europeia tem se mostrado exímia em ir dirimindo esses conflitos quando as coisas apertam. Mas houve vários momentos em que eu vi a coisa por um fio.

“É importante percebermos que aquilo que chamamos carga fiscal é a soma dos impostos pagos mais os descontos para a segurança social. É uma palavra muito maldosa porque carga tem um peso negativo, quando na verdade, o que nós estamos a falar é da capacidade financeira do Estado. Tipicamente, as pessoas que se queixam da carga fiscal são aquelas que se queixam também da incapacidade dos serviços públicos.”
Somos dos países da União Europeia com maior carga fiscal?
Não, estamos a meio da tabela, do ponto de vista da chamada carga fiscal. E é importante percebermos que aquilo que chamamos carga fiscal é a soma dos impostos pagos mais os descontos para a segurança social. É uma palavra muito maldosa porque carga tem um peso negativo, quando na verdade, o que nós estamos a falar é da capacidade financeira do Estado.
Tipicamente, as pessoas que se queixam da carga fiscal são aquelas que se queixam também da incapacidade dos serviços públicos. Mas devem perceber que quanto menos receitas o Estado tiver, menos capacidade tem de ter serviços públicos de qualidade.
Também muitas pessoas se queixam da chamada ‘carga fiscal’, ao mesmo tempo que se queixam da elevada dívida pública. Ora, se Portugal descer muito as suas receitas com impostos e contribuições para a Segurança Social, significa que para manter os mesmos níveis de serviços que temos atualmente, temos de ter mais dívida pública. Portanto, nós não podemos ter tudo e creio que para o nível de desenvolvimento económico que nós temos, o esforço que é pedido ao conjunto da economia tem equivalência ao esforço que nós temos de fazer, de recuperar muitas décadas de atraso social e económico e de, mais recentemente, mantermos a nossa trajetória de de redução da dívida.
Aceitaria ser ministro da Economia?
Essas coisas dependem muito das circunstâncias. Se me perguntar se ambiciono ser membro de um governo ou ministro da Economia, a minha resposta é taxativa e é não.
Considero-me ambicioso, mas as ambições que tenho não são exatamente aquelas que se associam habitualmente à palavra ambição. Não faço questão de ser rico, famoso ou poderoso. Participar num governo é algo que poderia fazer sentido se sentisse que faria alguma diferença substancial e onde pudesse pôr na prática coisas que defendo. Se essas condições se reunirem e eu tiver nessa altura condições pessoais para o fazer, é algo que não me é estranho, mas não será algo que eu procurarei só porque sim.
Tem algum ministro de economia com quem se identifique?
De todos cujo trabalho acompanhei de perto, há só um com quem tenho algum grau de identificação, e cujo trabalho e legado eu respeito. Trata-se do engenheiro Mira Amaral, que dentro de um quadro político e programático muito diferente daquilo que defendo, contribuiu, enquanto Ministro da Indústria, para a construção de ecossistemas de desenvolvimento tecnológico e produtivo, tendo tido a coragem de selecionar prioridades e de alocar recursos específicos a essas prioridades, envolvendo atores do sistema empresarial, mas também do sistema científico e tecnológico, com resultados que até hoje ainda são visíveis.
Porque é que se envolveu na Causa Pública?
A Causa Pública é uma associação cívica que se dedica a pensar e discutir as possibilidades de governação à esquerda, uma governação, chamamos-lhe progressista. Surgiu num cenário político diferente do que temos atualmente. Havia uma maioria absoluta do Partido Socialista no Governo, numa fase já pós-geringonça, onde nenhum dos partidos à esquerda parecia estar a dedicar-se muito a pensar a governação. Os partidos à esquerda do Partido Socialista, porque tinham voltado a assumir um papel fundamentalmente de oposição, de protesto, e o Partido Socialista porque parecia completamente consumido pela gestão do quotidiano da governação e com muito pouca predisposição para pensar as possibilidades de governar com objetivos de justiça social, de progresso económico sustentável e equitativo. E esse foi o modo fundamental. Foi, precisamos de ter aqui um espaço de reflexão sobre possibilidades de governação, diferentes dos que temos tido dentro do quadro das restrições que enfrentamos, não num quadro utópico abstrato.
E eu envolvi-me na Causa Pública porque em larga medida, sempre foi este o meu espaço de intervenção cívica, sempre foram estas as minhas preocupações. E achei que podia dar um contributo.