A vida parece correr-lhe mal sem que haja alguma razão aparente? Acontece a muita gente e a resposta pode ser mais simples do que parece: temos medo.
“O medo é o culpado por detrás de quase todos os nossos problemas, desde a auto-estima às relações que vão por água abaixo até aos problemas políticos”, conclui esmagadoramente a americana Harriet Lerner. Psicóloga clínica e autora de vários livros, tem traduzido em Portugal um dos seus maiores bestsellers: ‘Sem Medo de Viver: Como Enfrentar a Ansiedade, o Medo e a Vergonha que nos Afastam da Felicidade e do Amor’ (Ed. Lua de Papel).
Mas antes de percebermos por que é que temos tanto medo do medo, temos de perceber como pode afinal ser nosso amigo: “O medo pode ser um bom professor”, nota Harriet. “Mais tarde ou mais cedo, toda a gente recebe um curso intensivo de vulnerabilidade e uma lição sobre a forma como precisamos dos outros. O medo ajuda-nos a ser mais solidários com as pessoas que nos rodeiam. Ajuda-nos a prever riscos e a proteger-nos em vez de nos atirarmos de cabeça para tudo.”
É verdade que sem medo não teríamos sobrevivido. É o medo que nos manda correr, fugir, procurar protecção. Mas até que ponto é que no século XXI, quando já não andamos pela savana a fugir dos leões, esse medo ancestral não se volta contra nós? O problema é que pode também funcionar como um obstáculo e não uma protecção. “O mais perigoso é que, na maioria das vezes, nem nos apercebemos disso!”, nota a psicóloga. “Mas o medo actua como uma força subterrânea na nossa vida, e vivemos todos em ansiedade crónica.”
Um ‘bloqueio’ capaz de lhe estragar a vida
Como? Simples: “Pode enganar-nos bem enganadas. Exige a nossa atenção, mas cega-nos e desvia-nos daquilo que de facto é importante. A ansiedade tira-nos do momento presente porque nos faz reviver incessantemente o passado e preocupar-nos com o futuro. Faz-nos perder a noção da nossa competência e da nossa capacidade para amar, para sermos criativas e felizes. Faz-nos acreditar que somos mais fracas do que de facto somos. Interfere com a nossa auto-
-estima, a base de tudo o que somos. Destrói a capacidade humana para tolerar a ambiguidade e a complexidade, leva a uma profunda perda de empatia e civismo e destrói a capacidade que nada nos devia tirar: a de pensarmos pela nossa cabeça.”
Não admira que, ainda hoje, o medo não seja um convidado muito bem-vindo, como a própria psicóloga reconhece: “Ninguém acorda de manhã a dizer: ‘Fantástico, espero ter hoje oportunidade para me sentir mesmo ansiosa, de modo a poder crescer como pessoa!’”
Não se assuste: racionalize
Medo de voar. De envelhecer. De engordar. De perder um filho, um pai, um amigo. Qual é o seu? Toda a gente tem os seus medos íntimos, mas nem sempre parecem racionais. Por exemplo, um dos medos mais comuns nas mulheres é o do cancro da mama, mas morrem dez vezes mais mulheres de doenças coronárias e cancro do pulmão.
“Por que é que tememos as coisas erradas?”, pergunta David Meyres, professor de Psicologia no Hope College, nos EUA, e autor de um artigo chamado: ‘Temos Medo das Coisas Certas?’.
“Por que é que tantos fumadores (com hábitos de vida que lhes tiram, em média, cinco anos) se assustam só de pensar em voar (que, em média, encurta a vida de uma pessoa num… dia?). Por que é que temos mais medo do terrorismo do que de acidentes de carro, que só numa semana, nos Estados Unidos, matam mais gente do que o terrorismo no mundo inteiro durante todos os anos 90?”
Surpresa: estas ‘escolhas’ do nosso subconsciente nunca são ilógicas. A psicologia identificou quatro ‘detonadores’ de risco: primeiro, tememos aquilo que os nossos antepassados da Idade da Pedra nos prepararam para temer. Daí o hoje ilógico mas herdado medo de cobras, por exemplo. “Voar pode ser mais seguro que andar de bicicleta, mas o nosso passado biológico ainda não acha normal que um homem voe.”
Em segundo lugar, tememos o que não conseguimos controlar. Pela mesma razão, temos mais medo de voar do que de andar de carro.
Em terceiro, temos medo do imediato: “No momento em que o avião levanta voo, todos os perigos dos carros se desvanecem.” E toda a gente sabe que nenhum adolescente teme os longínquos perigos de um cigarro… E, por último, tememos os medos mais presentes na nossa memória. Temos imenso medo da tão falada crise, por exemplo, ou das notícias de assassínios que lemos todos os dias nos jornais, mas, afirma David Meyres, “morre duas vezes mais gente de diabetes do que por homicídio”. Moral da história: antes de desatar a suar frio, é melhor confrontar-se com a realidade e pensar primeiro se esse medo se justifica mesmo…
Sobreviva à angústia
Segundo as estatísticas, no top dos muitos medos de que padece a Humanidade há três universais: medo de morrer, medo de cobras e medo de falar em público. Curiosamente, esse é um dos principais medos da autora. A ideia do livro começou com um dos seus maiores medos íntimos: as muitas humilhações por que passou ao longo das suas palestras.
Enfim, medo da morte e de cobras ainda se percebe, sempre envolvem perigo físico (embora poucas de nós tenham visto uma cobra fora do jardim zoológico), mas que perigos terríveis podem envolver uma simples palestra? “De facto, esta descoberta é surpreendente porque falar em público raramente é ‘fatal’”, responde Harriet Lerner. “Mas esse medo não surge em vão: falar em público é uma óptima oportunidade para uma pessoa ser humilhada. E a vergonha de não se ser suficientemente bom, o medo que os outros descubram as nossas falhas e descubram como somos inferiores – é das emoções que temos mais dificuldade em ‘digerir’. Somos capazes de tudo para a evitar.”
“Não quero ser rejeitado!”
Pois: toda a gente tem aquela voz interior a dizer-lhe que é feia, gorda e que de certeza que vai fazer ou dizer asneira. Às vezes é a voz da nossa mãe, do nosso pai ou a nossa própria voz. Ao contrário de Joana d’Arc, as nossas ‘vozes’ raramente nos chamam para a batalha: geralmente, intimam-nos a depor as armas. Claro que há sempre corajosos que lutam contra as suas limitações. Harriet conta a história de Frank, um cliente que a procurou para lhe expor o seu problema: desde o seu divórcio, que o ‘traumatizara’, ficara com medo da rejeição feminina. Simpatizava com uma colega do trabalho, mas era incapaz de lhe propor que saíssem juntos. Como sair daquele nó-
-cego? A solução proposta pela psicóloga foi, no mínimo, radical: Frank devia ir a um centro comercial e num só dia acumular 75 rejeições! Para atingir esse número-recorde, devia dirigir-se a 75 mulheres e dizer o seguinte: “Espero que não me ache atrevido, mas gostaria de tomar um café comigo?” Para sua surpresa, bastantes delas aceitaram…
Encha-se de coragem e seja feliz
A própria Harriet aprendeu uma importante lição com Frank e consigo própria e as constantes dificuldades em frente ao seu público: a lidar de outra maneira com a sua angústia e os seus suores frios. “Aprendi que tinha de encarar as minhas falhas de maneira mais caridosa. Isto é muito difícil de fazer, porque o medo acarreta o terrível julgamento dos outros e de nós próprios”, conclui. “Faz disparar todas as imagens mais negativas de nós, incluindo a de que não merecemos amor, atenção e respeito.”
E há uma coisa de que não nos apercebemos: há quem lucre com os nossos medos! “A nossa sociedade não promove a auto-aceitação porque não vende. A vergonha, sim, faz vender produtos, e por isso ela é passada de mão em mão como uma batata quente. Às vezes, penso que o capitalismo poderia ruir se as pessoas percebessem que estão muito bem tal qual como estão…”
Em resumo: quando pensamos em medo, tendemos sempre a pensar em coisas concretas: elevadores, doença, falhanço. “Mas muito mais importante é o desafio de vencer os medos do dia-a-dia que nos rodeiam e nos restringem”, afirma Harriet.
“O medo nunca vai desaparecer, mas temos a coragem. Com coragem, a ansiedade e a vergonha são incapazes de nos calar, de nos fechar o coração às vozes dos outros e nos impedir de agir com clareza e compaixão. No mundo de hoje, não há desafio mais importante.”
Ah, quanto a Frank: ao fim das 75 ‘tampas’ no centro comercial, conseguiu coragem para convidar a colega para sair. Foi a tampa 76: ela não aceitou, mas Frank não desanimou e convidou outra. Hoje, tem um relacionamento estável e perdeu o medo de amar.