É dentro de água que aprende a superar os maiores medos que enfrenta cá fora. O mar será para sempre um santuário, o seu mergulho na paz e tranquilidade.

Joana Andrade (fotos: Luís Coelho)

Chego à Ericeira de casaco, pronta para enfrentar o capote que tradicionalmente bloqueia o sol matinal do Oeste. Em vez disso sou surpreendida por uma Ribamar soalheira e quente. Vou dar com Joana Andrade na loja da sua escola de surf – a Progress Surf School – e está entusiasmada, acabou de receber duas bicicletas elétricas da 50 Rebels, uma nova marca que a apoia, juntamente com outros patrocinadores (Ocean Huts, Savage Drink e Blue Room Factory) que lhe permitem continuar a viver o sonho.

Decidimos aproveitar a hora matinal para fintar a multidão e adiantar a sessão de fotos. Seguimos para a praia de São Lourenço, vamos atrás de Joana, que pedala freneticamente, e conseguimos vislumbrar a miúda irrequieta que um dia decidiu tentar surfar com um colchão insuflável.

Na Ericeira, o mar está flat, irónico se pensarmos que estamos a falar com a primeira e única portuguesa a surfar ondas grandes, proeza que juntou a vários títulos numa bem sucedida carreira de surf profissional. Com pouco mais do que metro e meio, já fez ondas quase 10 vezes maiores que a sua altura no Canhão da Nazaré.

Quando abandonamos o areal, Joana deixa a promessa de voltar ainda naquela manhã para entrar e remar um bocadinho. É dentro de água que se recentra e encontra paz interior. O surf foi a sua terapia – diz mesmo que salvou a sua vida. E se na nossa conversa isso se percebe nas entrelinhas, é no documentário ‘Big vs Small’, da finlandesa Minna Dufton, que Joana fala abertamente. “Foi o desafio que mais me custou até agora. Ter que falar de mim própria, de algumas coisas do passado. Custou”, confessa. O passado de que fala inclui um abuso que sofreu aos 12. Dele tentou fugir durante alguns anos e foi no mar que o enfrentou. “Sempre vivi muito de ansiedade, medo, de bloqueios, de coisas que se passaram comigo e não sabia explicar. Por algum tempo vivi no medo, no medo das incertezas, do medo que quem sou. E as ondas ajudaram-me a enfrentar esse medo.”

Lembra-se da primeira vez em que entrou no mar com uma prancha?

Não era uma prancha, era um colchão daqueles insufláveis, eu era uma miúda muito irrequieta, não conseguia estar muito tempo parada e quando ia para a praia com os meus pais não conseguia estar ao sol muito tempo. Então lembro-me que comecei a fazer experiências com o colchão insuflável, a tentar meter-me em pé. Pensei ‘isto é muito giro’, via os surfistas lá ao fundo a fazerem isso. A primeira prancha foi-me emprestada pelo irmão de uma grande amiga. Naquela altura as pranchas eram muito pequeninas, fininhas, não havia escolas de surf. Demorei alguns meses para me meter em pé numa prancha. Mas só estar dentro de água fazia-me sentir bem. Sentia-me calma, conectada com o mar. Parecia que ali compreendia tudo.

Mas os seus pais não gostavam. Fazia-o às escondidas?

Ao princípio, quando achava que era só uma novidade, não. Mas depois, quando percebi que gostava mesmo daquilo e comecei a ficar viciada e a querer ir todos os dias, sim. Fugia da escola para ir para a praia. Naquela altura, o surf não era bem-visto. Era considerado um desporto de marginais, para pessoas que ficavam na praia a fumar as suas ervas, hippies e tal. Mas realmente foi esse desporto que me salvou. Era uma pessoa muito insegura, com muita ansiedade, muitas dúvidas, e quando entrava para dentro de água, a minha mente ficava calma. Era uma terapia para mim.

Cresceu aqui na Ericeira?

Não, cresci na linha de Cascais. Comecei a fazer surf em Carcavelos, vinha passar férias aqui na Ericeira com os amigos e com os meus pais, que tinham cá uma casa.

Em pequena sei que apanhou uns sustos dentro de água…

A minha conexão com o elemento água começou em pequenina, quando me ia afogando no lago da casa dos meus avós. E fui salva por um ganso, que era o guardião do meu avô. (risos) Mais tarde, com 12 anos, estava num colchão e fui empurrada pela corrente em Carcavelos. Foi um surfista que me salvou.

E nunca ganhou medo?

Ganhei medo, mas sempre fui uma pessoa que gosta de desafiar o medo, de perceber de onde é que ele vem. O medo pode ser uma boa ferramenta se nós o soubermos utilizar e eu sou uma pessoa que gosto de desafios, gosto de perceber a cabeça, gosto de perceber de onde é que vêm as emoções, o porquê de estar aqui, o porquê de se ter certos bloqueios. Vem tudo muito de coisas passadas, de padrões de várias gerações que nós estamos aqui a repetir.

Do surf dito tradicional passou para as ondas grandes. O desafio já não era suficiente?

É engraçado porque eu só ganhava campeonatos quando o mar estava grande. A verdade é essa. Sempre tive uma aptidão maior para as ondas grandes. Uma vez fui ver as ondas à Nazaré, estava lá o Garrett [McNamara] a surfar e eu pensei, ‘isto é de loucos, é como surfar o Evereste’, mas tinha sempre uma vozinha cá dentro, dizia ‘por que não?’ e acho que foi isso que me desafiou, surfar as ondas grandes exige uma disciplina e uma dedicação… E eu naquela altura da minha vida precisava de alguma disciplina, alguma rotina.

Quanto tempo demorou entre decidir que queria experimentar e conseguir fazer?

Estive um ano a treinar física e mentalmente.

Em que consiste o treino? Como é que uma pessoa se prepara para isso?

Consiste em treino físico e mental. Fazermos muito treinos de respiração, meditação, cardio, ginásio… Acredito muito que numa altura de aflição, quando uma pessoa está debaixo de água, não é o corpo mas sim a mente que te vai ajudar a vir à superfície.

E teve alguém que a treinou?

Foi autodisciplina mesmo. Comecei a treinar, a ir a ginásios, comecei a conectar-me com as pessoas que faziam ondas maiores, a encontrar a minha própria comunidade para conseguir fazer essas ondas. Mas claro que depois com o tempo comecei a ter treinadores específicos.

Quando é que decidiu que estava preparada?

Isso nunca acontece. Para fazer a minha primeira onda grande telefonei ao Garrett, expliquei quem é que eu era – ele já me conhecia de outras ondas, da Papôa, em Peniche, por exemplo. Disse-lhe que queria fazer uma onda na Nazaré e que gostava que fosse com ele. Se era para ser a primeira vez que fosse com o melhor. (risos) Ele disse ‘perfeito, amanhã vão estar altas ondas’. Lembro-me de começar a gaguejar e a inventar imensas desculpas. Aí comecei a duvidar de tudo, de todo o meu progresso, de toda a minha disciplina durante um ano. Imensos ‘eus’ cá dentro a dizer ‘tu não és capaz, não vás, é muito cedo, diz que estás doente, faz de conta que partiste uma perna…’ Eu tremia, nem me lembro muito bem, estava com tanto medo que não ouvia nada. Mas correu muito bem, senti-me segura.

Foram os dois surfar?

Fomos os dois com o Hugo Vau. O mar estava lindo, estava perfeito, mas como era a minha primeira vez eu não tinha bem a noção das coisas. Lembro-me de não haver coletes para o meu tamanho, porque eu era pequenina. Tive de vestir dois.

Mas tem de se ter uma certa dose de inconsciência para fazer isso, não?

Sim, alguma. Eu estava muito nervosa fora da água, mas quando entrei dentro de água foi uma tranquilidade… Apanho a primeira, a segunda, a terceira apanho, e quando saio era tudo a aplaudir. ‘Joana, tu apanhaste a onda da tua vida. Aliás, apanhaste a maior onda que deu hoje.’ Dentro de água não temos noção. Só quando ouvimos aquele barulho da onda a explodir lá atrás e sentimos as pernas a tremer é que percebemos que era uma onda grande.

Se a pessoa cair corre perigo de vida?

Depende do sítio onde cais, se cais a meio da onda ela engole-te.

E já temeu pela vida?

Já apanhei alguns sustos, mas estou treinada para isso. É manter a calma e a entrega. Uma pessoa não pode lutar com a natureza, mais vale entregar-se. Depois da tempestade há uma calma. A pessoa está ali a querer estar na luta, mas sabe que há uma altura em que tem de se render e quando há essa entrega há uma clareza. Dentro dessa clareza parece que tudo faz sentido e uma pessoa vai buscar forças não sei onde. Não sei explicar, só sei que nós, os seres humanos, temos uma capacidade muito maior do que pensamos.

Diz que o mar lhe traz tranquilidade e calma, mas isso também sucede quando está a fazer ondas grandes?

Sim, sinto calma. Saio da minha zona de conforto, parece que estou no Matrix. O medo está lá sempre. O medo é bom de sentir. Quando estou naquelas ondas, estou focada, no aqui e agora, estou presente, parece que estou a ver tudo em slow motion. Estou a viver o momento. Nas ondas grandes não se pode falhar, não há tempo para falhar.

A Joana também faz de piloto…

O que me atraiu muito nas ondas grandes foi o espírito de equipa, porque enquanto o surf normal é um bocado solitário, nas ondas grandes é um trabalho de equipa. Antigamente, a equipa era constituída por um piloto [que na modalidade de tow in reboca o surfista na mota de água e o larga na onda], um surfista, um second rescue [segunda mota de água usada para socorrer o surfista caso necessário] e cada um fazia a sua coisa. Agora já não é assim: o que surfa também pilota e o piloto também surfa. Ao invertermos os papéis conseguimos compreender melhor a sintonia que tem de haver entre nós.

E tem uma equipa fixa?

Este ano decidi abraçar um novo projeto, outro desafio: fazer a primeira dupla feminina da História, eu e Michaela Fregonese, que vive no Brasil e no Havai no verão e em Portugal no inverno. Nem eu nem ela pilotávamos, só surfávamos. Agora, o medo é a dobrar. O piloto é o que conecta com o surfista. O surfista não sabe nada, não manda em nada. Quem dá instruções ao piloto é a pessoa que está no farol com o rádio: ‘vai entrar a primeira onda, atira-a para a esquerda, para a direita, caiu para norte, caiu para sul…’ O surfista vai recebendo informações do piloto por contacto não verbal.

Isso é uma grande responsabilidade e está a ser um grande desafio?

Sim, estou com mais medo, porque seria mais fácil ter contratado um piloto super bom para estar comigo. (risos) Mas lá está, eu gosto de desafios, gosto de me superar. Temos um ‘second rescue’ quando é preciso, é claro, normalmente quando as ondas têm mais de 10 metros.

Esse também é fixo?

Não, ele só trabalha connosco quando é preciso, porque estamos a falar de um desporto que é quase a Fórmula Um. Só meio dia no Canhão da Nazaré custa no mínimo 800 euros. É uma brincadeira que sai cara.

Há um limite de idade para fazer o que faz?

O limite definimos nós, consoante o que sentimos no corpo, na mente. O surf de ondas grandes é um desporto para pessoas mais ‘velhas’, que já têm uma certa maturidade. Não vou fazer isto a minha vida toda, mas estarei sempre conectada e voltarei sempre que o mar me chamar. Tenho outros projetos, todos ligados ao surf, porque é a minha paixão. Sou uma pessoa que gosta de fazer coisas diferentes. Se fizer sempre a mesma coisa, aborreço-me.

Mas o que gosta mesmo é de estar no mar…E a gestão do negócio?

Sou péssima, sou superdesorganizada, mas acho que no meio da minha desorganização ainda me consigo organizar. Mas o meu forte é mesmo dentro de água. (risos)

É difícil viver só do surf em Portugal, mesmo sendo a única mulher a fazer as onda grandes…

Ainda sou única, mas espero vir a abrir portas a mais mulheres.

Elas não aparecem?

Aparecem, é engraçado que este ano já vimos bastantes mais na Nazaré – havaianas, australianas – e até dizem que vieram por causa de mim, do meu exemplo. Mas realmente portuguesas ainda não há muitas.

Porque será?

Tem a ver com patrocínios, com a equipa. Eu estou nisto há oito anos e só há três é que eu estou a ver o retorno do meu investimento. Muitas vezes eu chorava, dizia que não ia para dentro de água porque não tinha patrocínios e não podia gastar mais do meu dinheiro. Ficava revoltada, pensava como era possível ser a única e ninguém me dar valor. Mas nunca desisti e hoje estou finalmente a ver retorno.

Não pode ter sido fácil financeiramente…

Graças a Deus houve investidores e amigos que acreditaram e ajudaram a realizar esse sonho.

Disse numa entrevista que dentro de água não havia diferenças de género…

Há muito mais homens do que mulheres na Nazaré. Às vezes há aquelas bocas ‘Hoje, o mar está grande para vocês’ ou ‘Meninas, vejam lá, hoje está perigoso’. É óbvio que os homens têm mais capacidade física do que as mulheres para aguentar aquelas toneladas todas de água, aquele impacto, mas estamos cá para superar isso. Não me quero sentir inferior.

Como é que surgiu o convite para o documentário’Big vs Small?’

A realizadora é finlandesa, veio cá passar férias e ficou apaixonada pelo surf. Ficou num centro de Yoga de uns amigos meus em Sintra e perguntou se conheciam alguma mulher que surfasse na Nazaré. Eles falaram-lhe de mim e eu contei a minha história. No fim, ela disse que não queria fazer um filme sobre a Nazaré, queria fazer um filme sobre mim. Aceitei o desafio, o mais difícil que enfrentei até agora.

Porquê?

Ter que falar de mim própria, de algumas coisas do passado. Custou.

E o documentário teve impacto na sua carreira?

Sim, mas o mais gratificante foram as mensagens que eu recebi de pessoas a agradecerem-me e a identificarem-se, a dizerem ‘obrigada por teres aberto essa porta’. Surgiu também um convite para me juntar à SOMA [organização portuguesa que usa o surf como meio de empoderamento feminino], em São Tomé e Príncipe.

É embaixadora?

Sim. Dou a conhecer às miúdas que é possível, que o sonho é para todos. E em África sabemos que a mulher foi educada para engravidar e ficar em casa a tomar conta dos filhos ou da família. E nós fomos lá para lhes dizer que elas podem ter outros objetivos de vida.

E tem visto evolução?

Já vejo miúdas a surfar bem, miúdas que agora dizem ‘quero ser médica, ou psicóloga, ter um curso…’.

Costuma fazer ondas grandes lá fora?

Já viajei bastante durante a minha vida profissional de surf. Neste momento estou numa fase em que quero ficar mais tempo aqui, focar-me nesta equipa feminina que estou a construir, focar-me na Nazaré, mas para o ano se houver um convite para ir aos Estados Unidos ou à Irlanda, irei, tal como o ano passado fui ao Brasil.

O que lhe traz de diferente o surf normal e o surf de ondas grande?

Para mim, o surf normal será sempre um santuário, a minha igreja, é onde eu preciso de ir para libertar tudo, para me encontrar. Nas ondas grandes, gosto de me desafiar, de me conhecer, dá-me disciplina e eu preciso de disciplina na minha vida.

Tem um ritual antes de se entregar ao Canhão da Nazaré?

Na altura é tudo muito rápido. É um trabalho que faço na véspera. Todos os dias de manhã medito 10/15 minutos. Na véspera de ir surfar ondas grandes medito pelo menos uma hora, para visualizar o melhor e o pior que pode acontecer. É assim que me preparo.

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