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*artigo publicado originalmente em março de 2016

Amália costumava contar a história de como os musicais de Fred Astaire lhe salvaram literalmente a vida, quando foi para Nova Iorque depois de lhe diagnosticarem um tumor. Hospedou-se num hotel e, em jeito de despedida, pediu na receção um equipamento de vídeo e cassetes de filmes com o dançarino e cantor, que lhe terão devolvido a vontade de viver. A história é narrada pela própria no documentário ‘Estranha Forma de Vida’, de Bruno de Almeida. “Estava convencida de que ia morrer, ou de que me ia matar – é a mesma coisa, o mesmo resultado. Ajudou-me muito, aquele homem. Às vezes dizem-me ‘a Amália tem-me ajudado muito, quando estou triste ou doente, quando a ouço cantar’. E eu não percebia aquilo. Só percebo agora, depois da minha experiência com as cassetes do Fred Astaire.” Não é Beethoven, Bob Dylan, John Lennon ou Bach, mas a alegria da música que Astaire cantava e dançava fez a diferença num momento decisivo.

Robbie Williams e epifanias

Abílio Oliveira, doutorado em Psicologia Social e professor auxiliar do
ISCTE, trabalhou com Daniel Sampaio no Núcleo de Estudos sobre o Suicídio e conhece de perto casos de quem diz ter sido salvo no momento certo pela canção certa. Um dos seus artigos académicos, ‘O Som e os Outros na Vida e na Morte’, fala justamente sobre a importância da música entre os jovens. “É muito comum. Lembro-me de vários casos, um deles de uma miúda de uns 15 ou 16 anos que estava a pensar num gesto suicida que interrompeu porque pensou no ‘Real Love’ do Robbie Williams, em que ele canta: ‘I just want to feel real love’ (só quero sentir amor verdadeiro).
O mais curioso é que muitas vezes quem cria a música também está a tentar ‘salvar-se’ ao escrevê-la – como o Robbie Williams, que estava a exorcizar os seus fantasmas ali. Quem ouve e se identifica com as palavras de alguém que nunca viu, sente ‘eu estou neste ponto, sou esta pessoa’. A música mostra que, afinal, estamos todos intimamente ligados.” Ele próprio já sentiu uma espécie de revelação profunda com músicas que lhe trouxeram respostas. A primeira foi aos 15 anos. “Estava a ouvir o álbum ‘Relayer’, dos Yes, a faixa ‘Soon’, e a música, a letra, a voz, começaram a fazer sentido na minha cabeça. Caí de joelhos, emocionado, e pensei ‘agora é que percebi o que ando a fazer aqui’.” O sentido da vida, num álbum de rock progressivo. “Foi determinante perceber que mais gente também queria ir mais além, que afinal não estávamos cá só para as coisas básicas da vida.”

A história de um coma

O músico David Fonseca tem a experiência dos dois lados: a de um fã de música, que ouve e se identifica com as palavras de outros, e a de quem compõe. “É normal que a pessoa pense ‘há alguém que pensa como eu’. Mas, às vezes, aquilo que pensa ser o tema da música não tem nada a ver com o que levou o músico a escrevê-la. Há uns anos recebi uma carta de um rapaz que tinha estado em coma durante uma semana. O disco preferido dele era um álbum meu e a mãe dele colocou-o a tocar durante o tempo todo em que ele esteve em coma. Ele escreveu-me meses depois a dizer que estava ótimo e que achava que uma das músicas o tinha ajudado muito a recuperar. Ora, não há hipótese nenhuma de eu ter pensado numa história tão incrível como essa quando a escrevi. Mas era, de longe, muito melhor, mais emotiva e mais forte do que aquela que me levou a escrevê-la.” Se as canções tiverem algo de mágico, acabam por transcender a intenção inicial do autor, diz. “É quando funciona melhor.”
A cantora Viviane também tem uma curiosa história de salvação. “Foi-me contada por email por um rapaz mexicano que tem uma loja de discos numa pequena cidade. Numa manhã, houve um tiroteio e as pessoas refugiaram-se na sua loja quando ele estava a ouvir o meu álbum ‘Pequenas Gavetas do Amor’. As pessoas perguntaram-lhe quem era a artista, porque se aperceberam que não era mexicana, e disseram que a voz lhes tinha transmitido bem-estar e calma naquele momento de pânico. Fiquei arrepiada. Achei a história tão fantástica que decidi que tinha que escrever uma música sobre isso e fiz o ‘Era a Voz’.”

Que poder é este?

Mas a música também nos ‘salva’ quando nos inspira a criar ou nos ajuda a aceitarmo-nos e a perceber que podemos ser mais felizes na nossa ‘estranheza’. Através das suas criações, David Bowie mostrou-nos que podíamos ser quem quiséssemos, sem termos de obedecer à ideia do que a sociedade espera de nós, até a nível de género (masculino ou feminino). “Graças a ele, milhões de pessoas perderam a vergonha, o medo a resignação”, escreveu Miguel Esteves Cardoso no jornal ‘Público’, depois da morte do músico. Não admira, por isso, que os grandes nomes da pop se tenham tornado os novos gurus.
“A música e a poesia são, provavelmente, das formas mais divinas de comunicação. Não é por acaso que andam tantas vezes juntas”, observa Abílio Oliveira, que recorre à Física para lhe dar um significado profundo. “O que é o som senão frequências que vibram e são, elas mesmas, movimento e formas de energia? Por isso, sempre vi uma grande analogia entre música e vida.”
E, curiosamente, também pode ter uma função ‘homeopática’, observa Oliveira. “Porque é que quando estamos tristes ou deprimidos ouvimos músicas que podem soar muito deprimentes? Parece que queremos cultivar aquela tempestade até doer o máximo possível. Aí, a música está na mesma ‘vibração’ emocional em que nós estamos e provoca uma espécie de catarse quando sintoniza em nós o mesmo sentimento que despertou no autor. E em nós não há só luz e alegria. Parece quase o princípio da homeopatia.”
Há alguma altura da vida em que este deslumbramento deixa de acontecer? “Os jovens andam desesperadamente à procura de caminhos e respostas. Por isso estão mais predispostos a dar atenção àquilo a que a maior parte das pessoas já não liga na música. Ainda me considero um miúdo, nesse aspeto.” Mas há algo de errado connosco se continuarmos a sentir isso quando ficamos mais velhos? “Os adultos mais interessantes, normalmente, mantêm essa jovialidade. Se isso for um problema…”

Que músicas “salvaram” a sua vida?


Perguntamos a quatro artistas e autores de diferentes áreas qual a sua playlist emocional.

David Fonseca, músico: “O’ Lilac Wine’, na versão do Jeff Buckley foi uma das que me marcou imenso e ainda hoje, quando a ouço, sou remetido para esse momento. Não é a única dele que tem esse efeito sobre mim. Algumas dos Smashing Pumpkins, porque as ouvia quando era muito miúdo, e nessa altura estamos mais ligados ao mundo onírico das letras. Continua a acontecer-me, mas não de maneira tão forte. Há um cantor de quem gosto muito, Lonely Deer, e tem muitas músicas com as quais me consigo ligar de forma muito forte.”

Viviane, cantora e compositora: Ao longo da vida, várias músicas tiveram o poder de me fazer sentir bem. Mas o ‘Con toda a Palabra’, da Lhasa de Sela, transmite-me calma e é uma das que ouço sempre. Associo-a um pouco a uma fase difícil da minha vida, quando morreu o meu irmão. De alguma maneira, ajudou-me a ultrapassar esse momento. Acabei por gravar uma versão dela no meu disco ‘Dia Novo’.

Ivo Canelas, ator: ‘No Surrender’, do Bruce Springsteen, ‘Time’, do Tom Waits e ‘La Quète’, do Jacques Brel.

Afonso Cruz, escritor: “Há muitas vidas que salvaram as minhas músicas e muitas músicas que salvaram as minhas vidas. Todos os dias sou salvo pela voz da Chavela Vargas ou pelo apocalipse do Reverend Gary Davis. Jantei tantas vezes as músicas dos Klezmatics com a voz da Chava Alberstein que hoje confundo a comida com a amizade. Por vezes, sou uma baleia que tem de vir à tona para respirar. Esse momento é a música. Bastam três minutos. Estou a trabalhar, paro, ouço uma música do Chico [Buarque], volto a mergulhar. A música tem esse poder de em dois minutos, dois minutos e meio, nos construir os alicerces de uma emoção infinita.

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