Natália Correia morreu há 30 anos, ou seja, a grande maioria dos jornalistas hoje no activo ainda nem sequer eram nascidos nessa altura. Lembrei-me disto quando ouvi alguém na rádio, que claramente tinha trinta e muito poucos anos, falar dela como se a conhecesse. Porque ‘a Natália’ (lembro-me eu, que ainda tenho idade para me lembrar dela, que se falava dela sempre assim ‘a Natália’, como se não houvesse outra) tinha – tem – esse condão de continuar a fazer sentido num mundo que talvez tenha mudado mais em 30 anos do que em quaisquer outros 30 anos da sua história.
Diz-se muito que era uma mulher à frente do seu tempo, daí parecer-nos hoje ainda tão atual. O triste é que, hoje, Natália continua a ser uma mulher à frente do nosso tempo. Muitas das suas lutas – em defesa das mulheres, das minorias (quaisquer que fossem), dos corajosos, dos diferentes, dos artistas – continuam as nossas, e estao longe de estarem resolvidas.
Por isso recordá-la – ou contá-la a quem não se pode lembrar dela – é tão importante. Apesar de tudo, estas lutas no tempo dela eram ainda mais duras. Teve a coragem de fazer e dizer tudo quanto quis num país onde as mulheres eram educadas para estarem caladas e fazerem a vontade dos outros. Marcou uma época em que tudo – enfim, muita coisa – mudou, e ela ajudou a mudar.
Também foi uma voz poética igualmente corajosa, e acho que ainda hoje muito do que ela fez levantaria ondas. Mais do que o dever de desumbrar, ela tinha o dever de desinquietar, de desencaminhar, de desbloquear. Só por curiosidade, a ‘Antologia de poesia portuguesa erótica e satírica’, que Natália organizou e tanto escândalo causou, está esgotada (pelo menos na Wook).
Em ‘O dever de deslumbrar’, Filipa Martins traça não apenas o difícil retrato de uma mulher que foi excessiva em tudo como também o retrato de um país que, em quase tudo, era o contrário dela. Aqui regressamos ao Portugal do Estado Novo e da Revolução , ao país das mulheres submissas mas também das poucas que, como a mãe de Natália, não queriam para as filhas um futuro de vozes baixas.
Portanto sim, precisávamos de vozes como ela neste momento, neste país. Recordá-la, recordar a sua vida e o seu exemplo, tornam esta biografia ainda mais pertinente e a coragem de Natália mais presente.
A ver se, desta vez, aprendemos qualquer coisa com ela.
‘O dever de deslumbrar’ – biografia de Natália Correia, Filipa Martins, Ed. Contraponto, E24,90