Quando uma Kamala Harris vitoriosa subiu ao palco, num fato branco a simbolizar a luta das sufragistas, naquela noite de 7 de novembro, não houve distância que evitasse a propagação de um sentimento generalizado de alívio. As câmaras focavam os olhos especialmente expressivos de uma multidão de máscara, cuja emoção se juntava ao caudal de lágrimas a correr também deste lado do Atlântico.


Tinham sido quatro dias de longa espera, ou melhor quatro anos, que culminaram num 2020 particularmente mau e dominado em grande parte por dois assuntos: a pandemia Covid-19 e as eleições presidenciais norte americanas. SARS-CoV-2 e Donald Trump, ambos terrivelmente virulentos e com sequelas ainda por determinar, uma crise global que em tantos momentos colocou em causa a nossa fé na humanidade.

Em 2016, o sono dos justos tinha-lhe valido uma pena de quatro anos de injustiças numa América cada vez menos tolerante e inclusiva. Desta vez, o mundo não dormiu na forma. Os Estados Unidos, o tabuleiro do jogo Risco, Geórgia e Pensilvânia territórios-chave a conquistar numa batalha que para tantos por esse mundo fora se tornou pessoal. Ballots, absentee ballots, mail-in ballots, um léxico que muitos de nós vestimos como uma farda na nossa vigília contra a ameaça antidemocrática. Durante dias e noites, mais que o número de novos casos de Covid, contámos o número de novos votos que muito lentamente perfizeram os suficientes para a comunicação social projetar a vitória de Biden. Finalmente, o tão esperado diploma azul do Colégio Eleitoral.

Sonho americano

No palco de um centro de convenções em Wilmington, Delaware, que finalmente cumpria o seu propósito, a vice-presidente eleita, 56 anos, quebrava mais um telhado de vidro mas sem estilhaços, num compromisso quase ideal entre ternura e tenacidade. Içava uma nova bandeira de esperança, que foi preenchendo com palavras de ordem como liberdade, igualdade e dignidade. O primeiro discurso da primeira vice-presidente eleita, mulher, negra, sul-asiática, filha de imigrantes, que já havia sido a primeira tantas outras vezes – a primeira mulher a tornar-se procuradora-geral pela Califórnia, a primeira senadora de ascendência indiana (segunda afro-americana) pelo mesmo estado, a primeira candidata a uma nomeação democrata para presidente… Mas que não fosse a última, dizia-lhe outrora a mãe e sua maior inspiração, Shyamala Gopalan Harris, que fez questão de homenagear. “Talvez ela não tenha imaginado bem este momento, mas ela acreditava tão profundamente numa América onde um momento como este é possível, por isso estou a pensar nela, e nas próximas gerações de mulheres, mulheres negras, asiáticas, brancas, latinas, nativo-americanas, que ao longo da história da nossa nação trilharam o caminho para este momento, esta noite. Mulheres que lutaram e sacrificaram tanto por igualdade, liberdade e justiça para todos.”

A determinação da vice-presidente eleita em cima daquele palco já era só por si uma homenagem à mulher que sozinha educou duas raparigas negras – Kamala tem uma irmã mais nova, também advogada e que dirigiu a sua campanha nas primárias. “Ela sabia que o seu país adotivo ia encarar Maya e eu como duas raparigas negras e estava determinada a assegurar que crescíamos como duas mulheres negras confiantes e orgulhosas”, lê-se na sua autobiografia ‘The Truths We Hold’.

Herança poderosa

Kamala Harris gosta de dizer que cresceu entre um mar de pernas em manifestações, numa infância a marchar pelos direitos civis e pela mão dos pais que, antes de um divórcio prematuro, juntos lhe mostraram o caminho: a mãe, nascida na Índia, cientista e investigadora na área do cancro, o pai, nascido na Jamaica, professor e economista, ambos ativistas que se conheceram em Berkeley nos anos 60. Isso, juntamente com o exemplo de figuras históricas como Lou Hamer, Ella Baker e Septima Clark ou mesmo da madrinha, Mary Lewis, cofundadora do Departamento de Estudos Sobre Negros da Universidade Estadual de São Francisco, abriu caminho a um forte sentido de missão – porque é disso que se trata, “não de caridade e benevolência”. Kamala Harris foi educada a ter sempre resposta pronta quando se tratava de defender as suas crenças e que o seu valor reside não em quem ela é mas no impacto que tem nos outros, no serviço que lhes presta. Mas a influência dos pais vai muito além do ativismo: do pai, Donald Harris, Kamala herdou ainda o gosto por um bom debate sobre economia e a mente científica da mãe encontrou eco até no modo como abordou de forma inovadora os processos judiciais. E a ciência também não ficou de fora do seu memorável discurso de vitória: “Vocês escolheram a esperança, unidade, decência, ciência e, sim, verdade.”

A sua educação formal foi também decisiva, para ela a escola sempre foi “tão importante como comer ou respirar” – talvez por isso a questão do financiamento de um programa de autocarros escolares, com vista a acabar com a segregação racial das escolas, que marcou o segundo debate presidencial democrático e que a opôs a Biden lhe seja tão cara. Kamala descreve os anos que passou na Universidade de Howard, em Washington, onde se formou em Economia e Ciência Política, como a “experiência formativa mais importante da sua vida”. Foi lá que consolidou um poder de argumentação que se tornou na sua imagem marca, que aplicaria mais tarde nos tribunais e na sala de audiências do Senado em implacáveis interrogatórios ao juiz Brett Kavanaugh ou ao procurador-geral Bill Barr. Já um doutoramento em Direito pela Faculdade de Direito de Hastings, da Universidade da Califórnia, lançou-a na carreira de magistratura e consequentemente na vida política norte-americana. Uma opção que teve de defender junto da família como “se de uma tese de tratasse” e um percurso que volta e meia é usado como arma de arremesso contra as suas ideias mais progressistas, quer seja na defesa do fim do racismo sistémico, dos direitos dos imigrantes, da comunidade gay, dos direitos reprodutivos das mulheres, da classe trabalhadora ou de um sistema de saúde universal.

Super-humana

Mulher, afro-americana, indiana, progressista… A vice-presidente eleita apresenta-se simplesmente como americana. As palavras ‘Kamala Harris for the people’ que serviram de fio condutor na sua vida e carreira articulam também na perfeição com o seu novo desafio, numa vice-presidência que promete dar mais representatividade ao mandato de Biden. A quem tem necessidade de a colocar numa ‘caixinha’, ela responde “sou quem sou e sinto-me confortável com isso”. (Até a sua página de Wikipedia bloqueou perante a dificuldade dos editores em defini-la.) Kamala Harris é muitas coisas para muita gente e aí reside o seu poder congregador, que seduz cada vez mais num país que tem assistido a rápidas mudanças demográficas e onde a justiça racial está, mais do que nunca, na ordem do dia: nasceu e cresceu na comunidade negra de Oakland, sempre em comunhão com a sua herança indiana, mas também soube viver em perfeita harmonia com a comunidade branca de Montreal durante os cinco anos em que a mãe lecionou na Universidade McGill, foi educada por uma ativista céptica das instituições mas não perdeu perspectiva na função institucional que lhe deu visibilidade. E até o seu casamento simboliza a união multirracial: é desde 2014 casada com o advogado (branco) Doug Emhoff, que conheceu num encontro às cegas um ano antes e que agora se prepara para se tornar o primeiro segundo-cavalheiro da Casa Branca. Kamala não é mãe, é ‘Momala’ – um compromisso entre as palavras Mom e Kamala para fugir ao termo madrasta – de duas enteadas com quem mantém uma excelente relação.

O que nos inspira em Kamala Harris não são as suas qualidade de potencial heroína, é antes a sua dimensão super-humana, sem vergonha de assumir erros ou de mudar de ideias como parte de um processo de constante evolução. Numa edição em que a ACTIVA desvenda as nomeadas ao Prémio Mulheres Inspiradoras 2020, Kamala Harris simboliza o epítome da inspiração.

Com um novo ano à porta, estreia brevemente uma nova temporada da política norte-americana onde cabem todos os sonhos. “Embora eu possa ser a primeira mulher neste lugar, não serei a última. Porque cada pequena rapariga que [nos] observa esta noite vê que este é um país de possibilidades. E para as crianças do nosso país, independentemente do seu sexo, o nosso país enviou-lhe uma mensagem clara: sonhem com ambição, liderem com convicção e vejam-se de uma forma que os outros possam não ver, simplesmente porque nunca o viram antes. E nós aplaudiremos cada passo do caminho.”

Palavras-chave

Relacionados

Mais no portal

Mais Notícias

Sede da PIDE, o último bastião do Estado Novo

Sede da PIDE, o último bastião do Estado Novo

Gio Rodrigues confessa ser vaidoso: “Quero chegar impecável aos 50 anos”

Gio Rodrigues confessa ser vaidoso: “Quero chegar impecável aos 50 anos”

Quis Saber Quem Sou: Será que

Quis Saber Quem Sou: Será que "ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais?"

Júlia Palha e José Mata protagonizam cenas quentes no primeiro episódio de

Júlia Palha e José Mata protagonizam cenas quentes no primeiro episódio de "A Serra"

O que esperar do tempo em Portugal em fevereiro

O que esperar do tempo em Portugal em fevereiro

VISÃO Se7e: Livrarias em segunda mão, camisas que foram lençóis e um bloody Mary de sushi

VISÃO Se7e: Livrarias em segunda mão, camisas que foram lençóis e um bloody Mary de sushi

Abacate: os benefícios do alimento-estrela

Abacate: os benefícios do alimento-estrela

Portugal abriu porta à gripe aviária através da produção doméstica

Portugal abriu porta à gripe aviária através da produção doméstica

Musk promete carros totalmente autónomos da Tesla a circular em junho

Musk promete carros totalmente autónomos da Tesla a circular em junho

Há esperança (e exuberância ) na gastronomia nacional

Há esperança (e exuberância ) na gastronomia nacional

Livrarias em segunda mão: 9 moradas que põem os livros manuseados a circular

Livrarias em segunda mão: 9 moradas que põem os livros manuseados a circular

Joana Solnado anuncia segunda gravidez e um novo namorado

Joana Solnado anuncia segunda gravidez e um novo namorado

Já começou a campanha eleitoral de 'Miúdos a Votos'!

Já começou a campanha eleitoral de 'Miúdos a Votos'!

CARAS Decoração: Decorar paredes é como vestir a casa

CARAS Decoração: Decorar paredes é como vestir a casa

Os melhores hotéis para celebrar o Dia de São Valentim

Os melhores hotéis para celebrar o Dia de São Valentim

Maria Grazia Chiuri evoca inocência da infância no desfile de alta-costura da Dior

Maria Grazia Chiuri evoca inocência da infância no desfile de alta-costura da Dior

Um novo estúdio em Lisboa para jantares, showcookings, apresentações de marcas, todo decorado em português

Um novo estúdio em Lisboa para jantares, showcookings, apresentações de marcas, todo decorado em português

Atsumori: Dança de Luzes e Sombras, um Rito entre Mundos

Atsumori: Dança de Luzes e Sombras, um Rito entre Mundos

House of Capricorn: nova marca com o melhor de Portugal artesanal

House of Capricorn: nova marca com o melhor de Portugal artesanal

Vencedores e vencidos do 25 de Abril na VISÃO História

Vencedores e vencidos do 25 de Abril na VISÃO História

Audi Q6 e-tron Performance em teste: o melhor SUV elétrico?

Audi Q6 e-tron Performance em teste: o melhor SUV elétrico?

Reveja alguns dos melhores

Reveja alguns dos melhores "looks" de Letizia em 2024

Charlene do Mónaco celebra 47.ºaniversário

Charlene do Mónaco celebra 47.ºaniversário

Vão ser investidos 950 milhões de euros em centros de dados em Portugal em 2025

Vão ser investidos 950 milhões de euros em centros de dados em Portugal em 2025

Um século de propaganda na VISÃO História

Um século de propaganda na VISÃO História

As imagens das cenas de sexo lésbico de Margarida Corceiro na TVI

As imagens das cenas de sexo lésbico de Margarida Corceiro na TVI

VOLT Live: Estagnação da rede de carregamento

VOLT Live: Estagnação da rede de carregamento

Este ano quero ser artista!

Este ano quero ser artista!

Solução desenvolvida por empresa portuguesa revoluciona a comunicação corporativa

Solução desenvolvida por empresa portuguesa revoluciona a comunicação corporativa

O top 10 mundial de fenómenos meteorológicos extremos de 2024 em vídeo

O top 10 mundial de fenómenos meteorológicos extremos de 2024 em vídeo

2024, um ano extremamente quente. Outra vez

2024, um ano extremamente quente. Outra vez

Daiquiri de abacate ou bloody Mary de sushi. No Croqui, elaboram-se as bebidas mais originais

Daiquiri de abacate ou bloody Mary de sushi. No Croqui, elaboram-se as bebidas mais originais

Depois das tampas presas, há novas regras para as garrafas de plástico

Depois das tampas presas, há novas regras para as garrafas de plástico

Musk promete carros totalmente autónomos da Tesla a circular em junho

Musk promete carros totalmente autónomos da Tesla a circular em junho

PME portuguesas podem adquirir planos da E-goi com incentivo até dois mil euros

PME portuguesas podem adquirir planos da E-goi com incentivo até dois mil euros

Curadoria eclética: a arte de combinar estilos

Curadoria eclética: a arte de combinar estilos

Stefan Vogel - Arte no limiar do sonho

Stefan Vogel - Arte no limiar do sonho

Como aprenderam a jogar andebol os já famosos irmãos Costa

Como aprenderam a jogar andebol os já famosos irmãos Costa

Pigmentarium: perfumaria de nicho inspirada na herança cultural da República Checa

Pigmentarium: perfumaria de nicho inspirada na herança cultural da República Checa

Taxa de mortalidade infantil em Setúbal é superior à media europeia, em contraste com resto do País

Taxa de mortalidade infantil em Setúbal é superior à media europeia, em contraste com resto do País

JL 1416

JL 1416

Celebridades assistem ao desfile de alta-costura da Dior, em Paris

Celebridades assistem ao desfile de alta-costura da Dior, em Paris

Astrónomos pedem proibição de publicidade no Espaço

Astrónomos pedem proibição de publicidade no Espaço

Cura by The Sea: Estas camisas já foram lençóis

Cura by The Sea: Estas camisas já foram lençóis

Bem-vindos ao ano da Serpente

Bem-vindos ao ano da Serpente