“O livro é…” As palavras não me saem. Nenhuma – giro, interessante, bom… – parece apropriada para descrever o livro ‘Mariposa’. Devoro as mais de 300 páginas e são muitas as vezes em que as lágrimas me correm pelo rosto. A ‘aventura’ não podia ser mais cinematográfica – Yusra Mardini, refugiada Síria, faz uma travessia épica do mar Egeu e, já na Alemanha, consegue concretizar o seu sonho de criança: ir aos Jogos Olímpicos. Não surpreende por isso que a Netflix lance agora um filme sobre ela.
Torna-se difícil ficar à tona da realidade. De quantas em quantas páginas tenho de me beliscar, aquilo não só aconteceu como continua a acontecer todos os dias. Enquanto escrevo estas palavras, um bote vindo da Turquia estará provavelmente a chegar à costa de Lesbos, na Grécia, com dezenas de adultos e crianças em fuga.
A história de que vos quero falar passa-se em 2015, mas infelizmente o assunto permanece na ordem do dia, na memória recente os acontecimentos em Ceuta e o número recorde de migrantes a chegar ao enclave espanhol num só dia. As imagens de jovens a dormir ao relento dão um realismo indesejado à minha heroína, de apenas 17 anos.
Uma supermulher acidental
Quando pensei numa Mulher Real para dar corpo a uma edição dedicada aos oceanos, lembrei-me de Yusra Mardini e de como ela e a sua irmã mais velha, Sarah, evitaram que o bote onde seguiam, com mais 18 pessoas, afundasse nas águas que, numa corrente de esperança por um futuro melhor, as levaria para longe da guerra. A irmãs permanecem na água mais de três horas – os homens revezam-se dois a dois durante a travessia –, para garantir que o barco, com o motor avariado, segue na direção certa, que não é afundado pelo excesso de peso nem abalroado pelas impiedosas ondas.
(Era agosto e eu provavelmente estaria a fazer a travessia de Setúbal para Tróia, rumo a um mar azul e tranquilo).
Mas o mesmo oceano que promete o sonho é o mesmo que tantas vezes entrega a morte – o testemunho de Yusra é um banho de realidade onde as ondas nos sacodem em vez de embalar. “Pouco depois a voz regressa. Este lugar é um cemitério – diz ela. Pensa em todas as pessoas, tal como tu, que se afogaram aqui. Pessoas novas, velhas, mães e os seus bebés, milhares de vidas levadas pelas ondas. Provavelmente há muitos cadáveres no fundo do mar abaixo de ti. Nunca enterrados, nunca devolvidos aos seus entes queridos em casa. Nunca identificados. Mais uma estatística esquecida pelo mundo.”
Esta água é hostil – não como aquela onde as irmãs mergulhavam para bater os mais variados recordes de natação por uma Síria agora à deriva – e a sofrida chegada à meta dificilmente sabe a vitória, embora todos pareçam celebrá-la.
“Desde então nunca mais nadei no mar, maioritariamente porque tenho medo daquilo que possa ver na água. Não passo a vida a pensar no que aconteceu, mas de vez em quando não consigo evitar a imagem das ondas. Sempre que ouço que outro bote cheio de pessoas desesperadas se afundou no mar, visualizo-nos agarradas à corda, ouço o motor a ressuscitar. Cada vez que ouço outra notícia dessas, relembro-me de como estivemos próximas da morte. Se o motor não tivesse voltado a funcionar, não teríamos conseguido.”
Num mundo ávido de super-heróis, a travessia atinge proporções épicas, todos querem aprofundar o que Yusra prefere manter à superfície. O episódio, repetiu-o milhares de vezes e em esforço. “Os repórteres querem saber o que se passou no barco. Sorrio e conto-lhes a minha história de uma forma educada, mas falo sem emoção. O meu coração fecha-se, desligo a visão das ondas a virem na minha direção. A única coisa funcional é a minha cabeça. Nadámos da Turquia à Grécia. Depois de 15 minutos o motor morreu. Nós somos nadadoras, por isso eu e a minha irmã saltámos para a água e agarrámo-nos à corda. Chegámos à Grécia três horas e meia depois.
(…) Alguns [jornalistas] põem-me a empurrar, outros dizem que puxei o barco até à margem. Alguns falam da Sara, outros não. Uns mencionam as outras pessoas que estiveram na água, outros não. Os artigos mais absurdos descrevem-me como estando sozinha, com uma corda atada à cintura, a puxar um barco com 150 pessoas para a margem. Como um desenho animado, como a Supermulher. Mas, sem sombra de dúvida, a versão mais estranha da história é a de um cabeçalho de um jornal árabe: ‘Irmãs sírias nadam da Grécia à Alemanha’.”
Ondas de esperança
Não consigo deixar de pensar como a vida pode ser irónica. Se, por um lado, foram as horas que passou no Egeu que chamaram a atenção do mundo, por outro, o seu sucesso como nadadora mede-se em milésimas de segundos. E, se em determinadas alturas a queremos salvar de Ezzat, o pai/treinador por vezes desumanamente exigente, noutras só lhe queremos agradecer pela resiliência com que dotou a sua filha do meio.
A sua história está repleta de dilemas e contradições, de que de resto também é feita a tragédia dos refugiados: por um lado, o drama humano a que não podemos fechar os olhos, por outro, uma política que queremos de porta aberta, dificílima de gerir ao nível das instituições europeias.
Por um lado, toda a rede de contrabandistas que lucram com o desespero alheio – 1500 euros pagou cada uma das irmãs por um bote sobrelotado, e com uma avaria no motor, para percorrer 10km –, populações desconfiadas e autoridades intolerantes, por outro, toda uma vaga de desconhecidos solidários e prontos a fazer das tripas coração para ajudar. O primeiro treinador – amigo e mentor – de Yusra na Alemanha, Sven Spannekrebs, do clube de Wasserfreunde Spandau 04, entre muitos outros que se cruzaram no seu caminho, é disso exemplo, apesar de as suas intenções terem sido tantas vezes questionadas por terceiros.
São estes contrastes que me fazem oscilar entre a angústia e o consolo durante a jornada do grupo de refugiados que se mantém unido graças a um comovente espírito de entreajuda. Durante 25 dias, atravessam fronteiras como se avançassem pelas casas de um tabuleiro. Aqui tudo está em jogo: Turquia, Grécia, Macedónia, Sérvia, Hungria – sem dúvida o país mais desafiante, onde chegam a ser presos –, Áustria e finalmente a Alemanha.
A vida é bela?
Durante toda a viagem, a ingenuidade de um menino iraquiano em fuga com o pai enviuvado pela guerra lembra-me o filme ‘A Vida é Bela’. “O Mustafa vai olhando em volta – ele consegue sorrir alegremente enquanto os adultos rezam pela sua vida.” Yusra esforça-se por manter intacta a inocência do Giosué desta história, progride com ele na mesma medida que deixa para trás a sua também inocente irmã mais nova.
Como leitora, eu sigo viagem com a jovem síria, mas como mãe parte de mim fica em Damasco (acabamos por nos reconciliar quando meses mais tarde a família Mardini volta a unir-se em Berlim). Eu podia ser Mirwat, a mãe de Yusra. Evito apegar-me ou identificar-me com o dia a dia dos Mardini, uma família síria de classe média que, apesar do contexto distinto, tanto tem de igual à minha.
(Nesta altura, recordo-me das palavras de Ramia, refugiada síria em Lisboa que entrevistei e que hoje é proprietária, juntamente com o marido, Alan Ghunim, do bem sucedido restaurante Tayybeh, que nostalgicamente descrevia as semelhanças entre a capital portuguesa e Damasco).
Penso como a pandemia mudou o nosso mundo praticamente de um dia para o outro. Foi um vírus, mas podia ter sido uma guerra. A forma como ela se imiscui no quotidiano é assustador, das notícias sussurradas ao ouvido de Yusra no autocarro da escola ao barulho ensurdecedor de tanques, morteiros e raides aéreos capazes destruir todos os sonhos. A mudança de vida é tão radical que tendemos a vestir os nossos coletes antibala emocionais, num esforço de preservarmos o selo de validade eterna da nossa confortável vida.
2011: “Ele [o pai] explica-nos que a Síria é estável e sensível. Os cidadãos são calmos e discretos. Não vai criar problemas. Todos temos emprego, uma boa vida. Trabalhamos, somos felizes, e seguimos com a nossa vida em frente.” 2015: “Não há tempo para registar o que se passa. A minha mente está em branco enquanto me arrasto para fora da piscina. Multidões de nadadores empurram-me ao passar por mim, tremendo de choque e pânico enquanto correm apressadamente em direção à saída. Chego à porta e olho para trás. Olho para o teto e vejo um buraco irregular no telhado que mostra um pequeno pedaço de céu. Olho para a água em baixo. Ali, reluzindo no fundo da piscina, está um objeto fino, verde, com um metro de comprimento e com um bolbo cónico que vai diminuindo até à ponta de um dos lados. É uma granada RPG que não explodiu.”
Uma voz activa
Um ano depois de ter deixado a Síria, Yusra Mardini integrou a primeira Equipa Olímpica de Refugiados nos Jogos do Rio de Janeiro – onde viu ao vivo o seu ídolo de sempre, Michael Phelps – e prepara-se agora para rumar a Tóquio.
Hoje, a mais jovem Embaixadora da Boa Vontade da ACNUR, a Agência da ONU para Refugiados, fez as pazes com o seu estatuto. “Nadadora olímpica ou não, enquanto não puder voltar para casa vou continuar a usar aquela etiqueta como nome. Refugiada. Depois do Rio, aprendi a aceitar o nome. Não o vejo como um insulto. É apenas um nome dado a pessoas comuns que foram forçadas a fugir das suas pátrias. Como eu, como a minha família.”
Aos poucos foi-se libertando da culpa: de ser mais notícia que outros na mesma situação, de ter um quarto no Olympiapark de Berlim enquanto outros permaneceram em campos, de ter uma nova vida ao tempo que milhares de pessoas continuam uma eterna luta pela sobrevivência. A culpa deu lugar a um sentido de missão. “Quero inspirar as pessoas e quero mostrar-lhes quem são realmente os refugiados.”
Este texto foi originalmente publicado na revista ACTIVA de julho 2021
Fotos: Getty e divulgação