Fotos: João Lima, com styling de Patrícia Pinto e maquilhagem e cabelos de Madalena Martins

A porta de casa está aberta. Dois Buldogues franceses, Sashimi e Shantilly, mãe e filha, aparecem à porta, mas estão mais interessadas no gato que avistaram do que na minha intrusão. Segue-se o sr. Alfredo, um Dogue-de-bordéus de porte imponente e ar sério mas que se revelará tão doce como a cor de caramelo do seu pelo. Só depois, no fim do cortejo canino, aparece Sofia, de fato de treino verde (claro!) e ténis brancos, o cabelo preto preso num rabo-de-cavalo empinado que contrasta com a sua atitude acolhedora.

De sorriso aberto, convida-me a entrar. Trata-se da sua casa/estúdio e nada tem a ver com as lojas de tatuagens escuras e sombrias que prevalecem no nosso imaginário – ok, eu sou das que via os programas da Kat Von D. Muito pelo contrário, o espaço é luminoso e convida a ficar. Na sala, a lareira está acesa e a marquesa, junto a uma janela com vista para o jardim e protegida por uma frondosa monstera, está hoje de folga. Sofia já não tatua todos os dias, apenas duas vezes por semana, uma sessão de manhã e outra à tarde. É sexta-feira e domingo volta a abrir agenda. Fá-lo de três em três meses e recebe milhares de formulários, que a deixam grata e ao mesmo tempo ansiosa. “Há pessoas que estão há três anos a tentar tatuar comigo e não conseguem.” É verdade, não são fake news, e tenho oportunidade de o testemunhar quando, dali a dois dias, o elevado tráfego me impede de submeter a minha candidatura. Foram mais de onze mil pedidos só para os meses de abril, maio e junho. 

Podia perder horas a admirar a estante – com coisas e coisinhas – ao lado da marquesa, a mesma que tantas vezes entra casa adentro dos mais de 100 mil seguidores que Sofia tem só no Instagram, mas sou conduzida à sala onde a magia acontece, ainda antes do próprio ato de tatuar. Sento-me numa das senhorinhas verdes dispostas lado a lado, não sem antes tentar perceber onde costuma ficar a minha entrevistada. Percebo rapidamente que o seu lugar é do outro lado da secretária em madeira, guardada religiosamente por um Dalmata de louça, o sr. Pintas. É lá que desenha, ao vivo, as tatuagens enquanto fala com as pessoas e lhes descobre traços menos óbvios. Naquela tarde, Sofia senta-se a meu lado, deixando para mim o lugar mais perto de uma espécie de banco em verga onde repousa a minha chávena de café, ainda a fumegar, e uns cadernos A5 de capa preta que, explica, servem para perpetuar cada trabalho que faz: “Guardo todas as tatuagens, colo-as nas páginas e peço às pessoas que deixem uma mensagem sobre o que sentiram quando viram o resultado final.”

Ligo o meu gravador e Sofia afasta gentilmente os cães, para que os seus ‘roncos’ tão característicos não se sobreponham à nossa conversa. Alfredo pousa o focinho engelhado no meu colo antes de sair resignado da sala. Estou agora pronta para começar a desenhar o retrato de Sofia. Ela costuma dizer que “transforma as palavras que as pessoas não conseguem dizer em desenho”, mas eu, como jornalista, concentro-me no que é dito e resgato significado a partir de uma espécie de sopa de letras. Se esta entrevista fosse pele, que palavras traria tatuadas?

PSORÍASE

Agora estou mais próxima de Sofia e descubro-lhe manchas avermelhadas no rosto ainda sem maquilhagem. Nem sempre foi fácil viver na sua pele, literalmente. Imaginem o que é ser uma adolescente com o corpo coberto de feridas a crescer numa soalheira Albufeira, constante e impiedosamente a convidar a banhos. Teve a primeira crise de psoríase aos 16 anos, numa altura em que pouco ou nada se falava sobre o assunto e em que o dr. Google ainda nem sequer frequentava o internato. “Tive o meu primeiro computador aos 19, não havia a informação que há hoje. Durante muito tempo andei escondida debaixo das roupas. Foi uma grande revolta porque era uma doença visível e na altura achava que não a podia controlar. Hoje sei que depende de mim, do meu estilo de vida.” De três em três meses, Sofia faz uma injeção biológica para controlar a psoríase – as manchas hoje visíveis no seu rosto são resultado da experiência de fazer uma pausa na medicação e que durou 7 meses. Tem cuidado com a alimentação, treina quase diariamente e faz terapia todas as semanas para controlar o stresse emocional. Mas não cai em fundamentalismos, até porque não resiste a um bom queijo e a um copo de vinho ocasional.

A psoríase, como todas as vilãs, tem responsabilidade no destino heróico desta “sobrevivente”, que recusa o estatuto de vítima. Afinal, as tatuagens surgiram na sua vida (com autorização médica) para esconder a doença.

“As pessoas deixaram de reparar numa ferida e começaram a olhar para uma obra de arte.”

A doença é hoje uma causa à boleia da sua influência, pois ainda há muito desconhecimento sobre ela. “Quero ser a voz que não ouvi quando era adolescente. É muito importante aceitares-te como és e vivemos agora numa era muito complicada, dos Instagrams e dos filtros. Estamos a criar pequenos monstros que vivem no mundo da comparação e não têm autoestima.” Se tivesse uma filha com psoríase, não tem dúvidas: “A primeira coisa que fazia era levá-la ao psicólogo.” Sofia reconhece que não teve, na altura, o acompanhamento que precisava. “É incrível como ainda hoje os médicos não encaminham logo os seus doentes para a psicologia.”

AMOR

As quatro grandes crises de psoríase que Sofia teve nos seus 37 anos de vida – aos 16, 21, 26 e 32 – todas tiveram o mesmo gatilho: um desgosto de amor. O seu avô paterno tem a doença e a tatuadora tinha tido umas manchas aos nove, mas a primeira desilusão amorosa encheu-lhe o corpo de feridas da noite para o dia. Foi também a juntar os cacos de um coração partido que reconstruiu a sua carreira. Mas voltemos um pouco atrás no tempo: Sofia veio estudar design para Lisboa, deu e recebeu formação em estética e teve o seu próprio espaço nesta área durante cinco anos, o que conciliava ainda com trabalhos de fotografia. Já tinha fechado o negócio (“a paixão pela estética esmoreceu”) e decidido dedicar-se às tatuagens a tempo inteiro quando ficou sem namorado, sem teto, sem dinheiro e sem qualquer motivação para ir à luta. “Tinha 33 anos, estava cá há 13, era independente, e de repente vou recambiada para a casa da minha mãe, em Albufeira. Foi a pior viagem da minha vida e quando cheguei lá foi horrível: não me sentia em casa, não me identificava com o Algarve, a minha mãe estava habituada a viver sozinha… Percebi logo que não ia ficar muito tempo.”

Falou com uma amiga que tinha um Airbnb em Lisboa. “Só precisava de um sítio para dormir e podia ajudar com as entradas e saídas.” Se a viagem para baixo tinha sido de autocomiseração, a de regresso foi bem diferente: “Eu só pensava ‘vou conseguir fazer aquilo que quero!’.”

Começou por procurar trabalho como tatuadora em estúdios já estabelecidos, mas sem portefólio só lhe restava o lugar de aprendiz. “Mas eu precisava de pagar contas.” Foi assim que se fechou no quarto durante quinze dias. “Não tendo dinheiro, acabei por ir buscar ferramentas onde podia: à internet, nos mais variados vídeos de autoajuda, mas também ao que aprendi na universidade, nos cursos que fiz e nas formações que dei.” Sofia apenas tinha um Instagram pessoal e apressou-se a criar conteúdos que levassem as pessoas a procurá-la. “Como não tinha pele tatuada, ia misturando o meu estilo de vida, as minhas cadelas, desenhos…” Entretanto, convidou dois amigos para serem tatuados por ela. Com roupas diferentes e tatuando em sítios estratégicos, conseguiu criar a ilusão de que eram muitas pessoas, não apenas duas. “De repente dou por mim com o mês cheio.” É aí que aluga um quarto só para ela e o transforma num estúdio, escondendo diariamente o colchão onde dormia “Passei de 6 mil para 56 mil seguidores num só ano, tudo organicamente. Já era a Sofia Dinis superprocurada e ainda dormia no chão.”

Uma das suas palavras preferidas é, curiosamente e apesar de todas as desilusões, amor. “Por causa da psoríase, muitas vezes acabei por estar em relações em que não fui bem tratada, achava que aquilo é que era amor. Hoje não sou tão ingénua, mas não quero deixar de acreditar, porque no momento em que isso acontecer deixo de ser eu.”

ARTE

Sofia Dinis aprendeu a tatuar na sua própria pele, mas fala disso com cautela e ciente do peso da responsabilidade. Tem alguma dificuldade em explicar algo que lhe é inato. “Sempre desenhei, fiz unhas de gel e a broca é em muito similar à das tatuagens, também fiz micropigmentação…” Teve a ajuda de alguns tatuadores profissionais, mas acredita que a arte não se ensina, “é uma coisa muito pessoal”. A dificuldade é a mesma em que tropeçam as palavras quando descreve o processo criativo da tatuagem, como passa da conversa com um cliente ao desenho. “É quase intuição, não controlo completamente o que está a acontecer.”

A arte salvou-lhe a pele, é verdade e é também uma espécie de terapia para quem ali passa. “Tenho mais pessoas com histórias tristes do que com histórias felizes: tentativas de suicídio, violações, abortos por maus tratos… As pessoas procuram aqui um pouco de colo, um virar de página. Não sou psicóloga e não tenciono ser, mas fugi do design porque me faltava a parte humana.”

A sua arte é também a sua causa. “Quero passar a mensagem de que as tatuagens são para todas as pessoas, não têm de ser dark. Ainda há muito preconceito, especialmente em relação a mulheres tatuadas.”

As peónias no pescoço, assim como as palavras ‘arte’ e ‘amor’ que tem tatuadas nas mãos são uma bandeira da sua luta.  Aos 28, Sofia já tinha o corpo quase todo tatuado. “Quando tatuei as mãos e o pescoço, que já não dava para esconder, foi mesmo aquela coisa de “sou mulher, faço o que eu quero, aceitem-me como sou”.

Artigo publicado originalmente na revista ACTIVA de Abril de 2022

Palavras-chave

Relacionados

Mais no portal

Mais Notícias

Em “Cacau”: o reencontro emotivo de Justino e Cacau no hospital

Em “Cacau”: o reencontro emotivo de Justino e Cacau no hospital

Os nomes estranhos das fobias ainda mais estranhas

Os nomes estranhos das fobias ainda mais estranhas

Famosos na apresentação das novidades do mundo da beleza

Famosos na apresentação das novidades do mundo da beleza

TVI estreia série baseada em caso que chocou o país: saiba tudo sobre “A Filha”

TVI estreia série baseada em caso que chocou o país: saiba tudo sobre “A Filha”

Montenegro diz que

Montenegro diz que "foi claríssimo" sobre descida do IRS

MAI apela à limpeza dos terrenos rurais

MAI apela à limpeza dos terrenos rurais

Lloyd Cole em digressão acústica: As canções como elas são

Lloyd Cole em digressão acústica: As canções como elas são

Estivemos no Oeiras Eco-Rally ao volante de dois Peugeot (e vencemos uma etapa)

Estivemos no Oeiras Eco-Rally ao volante de dois Peugeot (e vencemos uma etapa)

25 de Abril, 50 anos

25 de Abril, 50 anos

Exportações de vinho do Dão com ligeira redução em 2023

Exportações de vinho do Dão com ligeira redução em 2023

No tempo em que havia Censura

No tempo em que havia Censura

A reinvenção das imagens

A reinvenção das imagens

EDP Renováveis conclui venda de projeto eólico no Canadá

EDP Renováveis conclui venda de projeto eólico no Canadá

Em Peniche, abre o Museu Nacional Resistência e Liberdade - para que a memória não se apague

Em Peniche, abre o Museu Nacional Resistência e Liberdade - para que a memória não se apague

Sofia Arruda mostra o rosto da filha pela primeira vez

Sofia Arruda mostra o rosto da filha pela primeira vez

João Abel Manta, artista em revolução

João Abel Manta, artista em revolução

Sofia Manuel, a cuidadora de plantas

Sofia Manuel, a cuidadora de plantas

Famosos na Avenida para celebrar o 25 de Abril

Famosos na Avenida para celebrar o 25 de Abril

RootedCON: Congresso de cibersegurança chega a Portugal em maio e promete trazer novidades

RootedCON: Congresso de cibersegurança chega a Portugal em maio e promete trazer novidades

A meio caminho entre o brioche e o folhado, assim são os protagonistas da Chez Croissant

A meio caminho entre o brioche e o folhado, assim são os protagonistas da Chez Croissant

Ratos velhos, sistema imunológico novinho em folha. Investigadores descobrem como usar anticorpos para rejuvenescer resposta imunitária

Ratos velhos, sistema imunológico novinho em folha. Investigadores descobrem como usar anticorpos para rejuvenescer resposta imunitária

Azores Eco Rallye: elétricos ‘invadem’ as estradas de São Miguel este fim de semana

Azores Eco Rallye: elétricos ‘invadem’ as estradas de São Miguel este fim de semana

Exame Informática TV nº 859: Veja dois portáteis 'loucos' e dois carros elétricos em ação

Exame Informática TV nº 859: Veja dois portáteis 'loucos' e dois carros elétricos em ação

Conheça os ténis preferidos da Família Real espanhola produzidos por artesãs portuguesas

Conheça os ténis preferidos da Família Real espanhola produzidos por artesãs portuguesas

Pigmentarium: perfumaria de nicho inspirada na herança cultural da República Checa

Pigmentarium: perfumaria de nicho inspirada na herança cultural da República Checa

19 restaurantes abertos de fresco, em Lisboa e no Porto

19 restaurantes abertos de fresco, em Lisboa e no Porto

Equipe a casa no tom certo com aparelhos eficientes e sustentáveis

Equipe a casa no tom certo com aparelhos eficientes e sustentáveis

Portugal: Cravos que trouxeram desenvolvimento

Portugal: Cravos que trouxeram desenvolvimento

Os

Os "looks" de Zendaya na promoção de "Challengers", em Nova Iorque

Azores Eco Rallye: Guerrini e Prusak vencem ao ‘cair do pano’

Azores Eco Rallye: Guerrini e Prusak vencem ao ‘cair do pano’

Ordem dos Médicos vai entregar a ministra

Ordem dos Médicos vai entregar a ministra "seis prioridades para próximos 60 dias"

Caras Decoração: escolhas conscientes para uma casa mais sustentável

Caras Decoração: escolhas conscientes para uma casa mais sustentável

Vamos falar de castas?

Vamos falar de castas?

Startup finlandesa produz comida a partir do ar e energia solar

Startup finlandesa produz comida a partir do ar e energia solar

Azores Eco Rallye: Guerrini e Prusak vencem ao ‘cair do pano’

Azores Eco Rallye: Guerrini e Prusak vencem ao ‘cair do pano’

Em Peniche, abre o Museu Nacional Resistência e Liberdade - para que a memória não se apague

Em Peniche, abre o Museu Nacional Resistência e Liberdade - para que a memória não se apague

Passatempo: ganha convites para 'A Grande Viagem 2: Entrega Especial'

Passatempo: ganha convites para 'A Grande Viagem 2: Entrega Especial'

Salgueiro Maia, o herói a contragosto

Salgueiro Maia, o herói a contragosto

Artistas portugueses homenageados no passeio da fama

Artistas portugueses homenageados no passeio da fama

De Zeca Afonso a Adriano Correia de Oliveira. O papel da música de intervenção na revolução de 1974

De Zeca Afonso a Adriano Correia de Oliveira. O papel da música de intervenção na revolução de 1974

Chief Innovation Officer? E por que não Chief Future Officer?

Chief Innovation Officer? E por que não Chief Future Officer?

Luísa Beirão: “Há dez anos que faço programas de ‘detox’”

Luísa Beirão: “Há dez anos que faço programas de ‘detox’”

André Villas-Boas é o novo presidente do FC Porto

André Villas-Boas é o novo presidente do FC Porto

Trust GXT 794 em análise: Gaming sem gastar muito

Trust GXT 794 em análise: Gaming sem gastar muito

O futuro começou esta noite. Como foi preparado o 25 de Abril

O futuro começou esta noite. Como foi preparado o 25 de Abril

Parceria TIN/Público

A Trust in News e o Público estabeleceram uma parceria para partilha de conteúdos informativos nos respetivos sites