A empatia foi imediata, no fim da conversa até eu já estava disposta a dar uma chance à macrobiótica – quem me conhece consegue dar o verdadeiro valor a tal pretensão. O testemunho que se segue deve ser lido tendo em conta dois pontos primordiais: Daniela Ricardo tem sotaque nortenho (“não sou do Porto, sou de Matosinhos”) e tem uma alegria e vivacidade na voz contagiosas (ou seja, imagine as frases a terminarem muitas vezes com pontos de exclamação e risos). Uma sinopse do que vem a seguir? Era uma vez uma enfermeira que descobriu o poder da alimentação “consciente e natural” e a ela foi buscar os ingredientes para ser feliz. Foi também com as suas receitas que conquistou o amor e é com Luís Baião que prossegue hoje viagem, já fora do hospital. Dá consultas de orientação alimentar e workshops, presencialmente e online, e é autora de quatro livros, o mais recente ‘A cozinha das emoções’ (Edições Chá das Cinco). Juntamente com o marido, organiza “eventos com alma” (zenfamily.org), tanto viagens por todo o mundo como retiros na Casa dos Sonhos, em Casas da Ribeira (Mação), aldeia para a qual o casal se mudou há quatro anos.
Cuidar
“Trabalhei como enfermeira durante 20 anos no IPO do Porto, na Unidade de Transplantes de Medula. A enfermagem surgiu na minha vida por acaso. Sempre gostei muito de ciências, biologia, do corpo humano… Uma das coisas que me fascina é a biologia marinha, só que tenho pânico do mar, por isso estava fora de questão. Quando me candidatei à universidade, escolhi enfermagem e se me perguntarem porquê, não sei dizer. Foi a minha primeira opção e entrei na escola que queria. Adorei o curso, aprendi coisas maravilhosas. Gosto de cuidar, é uma coisa que nasceu comigo, mas não tinha noção disso, só cheguei a esta conclusão há pouco tempo, em conversa com uma amiga. Do que eu gosto mesmo é do contacto com as pessoas. Comecei a gostar desse contacto no cabeleireiro da minha mãe, em Matosinhos. Lá perto há um bairro de pescadores, as clientes dela são maioritariamente peixeiras, super boa gente, mas que nos impelem a perder a vergonha – e eu era superenvergonhada. Elas metiam-se comigo e aprendi a mostrar a minha autoridade, porque ou isso ou és engolida. Na enfermagem, às vezes mais do que o contacto com o doente é o contacto com a família que me fascina. No meu serviço, vi muitas mortes mas também vi muitas altas, é muito gratificante. Colocamos um peso demasiado grande na palavra cancro, hoje em dia há muitas pessoas que passam por cancros e ficam bem. O meu marido é exemplo disso, teve um cancro na base da língua e hoje está bem. Tem uma alegria de viver imensa, todas as manhãs acorda e agradece mais um dia de vida. Com ele, aprendi a apreciar cada momento.”
Comer
“Durante os anos em que trabalhei como enfermeira, comecei a estudar outras matérias. Primeiro shiatsu, porque queria uma ferramenta para cuidar dos doentes internados, para ajudá-los a ultrapassar as questões da quimioterapia, as náuseas, os vómitos, sem precisar de uma prescrição médica. Foram raras as vezes que apliquei a prática no hospital, pois era preciso tempo e isso num hospital não abunda. Abriu-me portas, janelas, abriu-me horizontes, outro mundo que não temos com a medicina tradicional.
E foi isso que me levou a outro caminho: nessa altura, notei um efeito muito grande no meu corpo, tanto tinha os músculos definidos como estava cheia de edemas, sem motivo aparente. Não associei logo à alimentação. Mesmo a nível emocional, mudava muito rápido. Até que um amigo me falou do Francisco Varatojo e da cozinha macrobiótica. Fui assistir a uma palestra e acenderam-se as luzes todas no meu cérebro. Fez tudo tanto sentido – percebi porque estava assim, eu comia sem critério, o único critério era não comer ‘bicho morto’. O meu prato não era nada equilibrado, e aqui falo contra a medicina – os médicos e enfermeiros sabem o mesmo que o comum dos mortais no que diz respeito à alimentação. Inscrevi-me no curso e iniciei a minha caminhada através da alimentação.”
Amar
“Já conhecia o Luís há muitos anos, eu estava no segundo ano do curso de macrobiótica e ele no primeiro. Não achámos particular interesse um no outro – eu achava que ele era um armante e ele que eu era uma betinha. Eu era casada, ele também, e a vida continuou. Uns anos mais tarde, divorciei-me, ele também, mas não tínhamos contacto. Dois anos depois do cancro, ele teve um efeito secundário da quimioterapia – necrose asséptica da cabeça dos fémures – e decidiu ir colocar as próteses ao Porto. Nunca foi meu paciente. Certo dia, telefonou a perguntar-me se queria cozinhar para ele enquanto ele estivesse no hospital – queria comer ‘direitinho’. Pensei ‘ganho um dinheirinho extra, tenho de cozinhar para mim, faço um bocado a mais e levo para o Luís’. Levava-lhe a comida ao hospital e encontrava sempre os pais dele. Às vezes até ia com o Nuno, o meu ex-marido, que também conhecia o Luís. Ninguém anda com um cartaz a dizer ‘estamos divorciados’, ainda por cima continuávamos a dar-nos bem. Sempre que lá ia, a mãe do Luís dizia ‘dê um beijinho ao seu marido’, até que tive de lhe dizer a verdade. O Luís ficou logo com as antenas ligadas. Diz que até começou logo a andar. Depois disso, sempre que ele vinha ao Porto – ele é de Sintra – encontrávamo-nos. Quando nos demos conta, estávamos a namorar e passado pouco tempo fomos morar juntos. E estamos juntos há 9 anos.”
Parar
“Estava com falta de tempo para mim. Fazia consultas de orientação alimentar, palestras e workshops de alimentação, trabalhava no IPO a tempo inteiro e ainda queria participar nas viagens organizadas pelo Luís e continuar a fazer os retiros. Larguei o Instituto de Macrobiótica – cuja delegação no Porto dirigia com o meu ex-marido – mas ainda assim não tinha tempo.
E fiquei ali um bocadinho como o tolo no meio da ponte, ‘para que lado é que eu vou?’ Pensei ‘onde é que eu faço diferença?’ No hospital, sou mais um número. Tenho um trato diferente, uma forma de me expressar diferente, posso dar um ou outro conselho diferente, mas em termos práticos sou paga para fazer aquilo que os outros fazem. Achei que fazia mais diferença fora do hospital, na promoção da saúde, a ensinar hábitos de vida saudáveis. Não podia dar conselhos alimentares no hospital, porque estavam lá os nutricionistas. Às vezes, via coisas com as quais não concordava, houve alturas em que estava mesmo chateada com a profissão e com o hospital por causa da comida.”
Viajar
“Há 5 anos deixei o IPO. Agora, quando o meu marido tem viagens, já posso acompanhá-lo, antes só ia quando tinha férias. Já gostava de viajar, mas com o Luís e a Zen Family é diferente, temos um verdadeiro contacto com o povo. O Luís diz que só faz as viagens que lhe apetece e é muito por instinto, se tem saudade daquele país, daqueles amigos, então vamos e há sempre pessoas que se juntam ao grupo. Normalmente fazemos Marrocos em maio e em setembro, não está muito calor, não está muito frio e não há muita chuva. No verão é muito quente, especialmente no deserto, e nós gostamos de ir para o Erg Chebbi, no Sahara. Adoro Marrocos. É fabuloso, tem uma riqueza de ambientes, de paisagens, e até de alimentação, que não é só tagines e couscous. A primeira vez fiquei surpreendida, até com o trato dos marroquinos, achava que eram pessoas muito invasivas e que nos estavam sempre a impingir coisas. Não sei se é por irmos no grupo do Luís e ele ser visto como ‘irmão’, nunca me senti insegura, mesmo andando sozinha. Gosto de vestir a cultura, em Marrocos visto-me como uma marroquina e eles respeitam isso e acolhem-nos de outra forma.
Índia Sul fazemos em fevereiro, as temperaturas estão amenas e não é altura de monções. Bali, em fevereiro/março, nunca no verão, porque está cheio e estamos o tempo todo no trânsito. Ali, os nossos grupos têm sempre uma aula de cozinha. Vamos para casa de uma família aprender a cozinhar e conhecer os seus hábitos. Por exemplo, não existe sala de jantar, eles não têm o hábito de se juntarem à mesa para comer. No dia a dia, existe alguém que faz a comida e quando têm fome vão à cozinha, servem-se e vão comer para onde quiserem. Se apenas fôssemos aos restaurantes, jamais saberíamos isso, pois servem-te à europeu. Adorei ir ao Fim do Mundo, na Patagónia. Adoro o Butão porque é muito virgem, a alimentação é 100% biológica, apesar de comerem comida muito picante – mas para nós eles têm o cuidado de colocar o picante à parte. Adorei o Japão, era uma viagem de sonho que nunca imaginei fazer. Se fizerem esse investimento, vão na Sakura, é mesmo mágico.”
Escrever
“A escrita surgiu quando comecei a viajar com o Luís. Como ele conhece tão bem o mundo – viaja há mais de 25 anos –, tem amigos em toda a parte. E como eu tenho esta paixão pela comida, consegue que eu aprenda receitas com os amigos, com os avós e tios destes… receitas locais. Em Marrocos, no deserto, eles fazem a pizza berber e eu fui mesmo aprender a fazer a pizza com os berberes… Claro que depois fiz as minhas adaptações, tento sempre cozinhar local e sazonal. Peru, México e Argentina têm das melhores cozinhas do mundo. No Peru, gostei muito de conhecer a comida antes da colonização espanhola, pré-Inca mesmo. Há produtos, como tomate e limão, que não usavam porque não existiam. Um ceviche, que agora fazemos com limas e limões, era feito no ácido dos maracujás. Gosto muito de perceber porque se fazem as coisas de determinada maneira.
O meu primeiro livro, ‘Viagens da Comida Saudável’, surgiu por acaso. Estava a tomar notas e a modificar receitas e o Luís é que insistia que eu estava a escrever um livro. Um dia, ele partilhou no Facebook um post a dizer ‘o livro da Dani já está quase concluído’… Um amigo nosso que é editor viu e disse que queria editá-lo. Pensei: ‘Bem, já são dois a dizer que estou a escrever um livro, se calhar estou mesmo a escrever um livro!’, e fui falar com ele. Acabou por ser o primeiro livro de cozinha da Chá das Cinco, uma chancela da Saída de Emergência. Já escrevi 4 livros com ele e estou a começar um quinto.”
Aceitar
“Depois da alimentação, a segunda grande mudança na minha vida foi ir viver para o campo, para a aldeia de Casas da Ribeira, em Mação. Nós passávamos meio ano cá e meio ano a viajar, e no verão, de final de maio até setembro, fazíamos retiros, precisamente naquela aldeia, na casa dos meus sogros. Fizemos contas e chegámos à conclusão de que no último ano em que estivemos no Porto tínhamos passado um mês e meio em casa. E era uma casa arrendada! Tínhamos o sonho de construir uma casa na aldeia, em contacto com a natureza, mais à nossa imagem, e essa casa foi sendo construída. Quando decidimos mudar, ela já estava pronta. Mudámos há 4 anos e durante a pandemia estivemos no paraíso, na aldeia não se passa nada. A nossa casa é um género de loft, todo aberto. Somos só dois, é perfeito! Ser mãe esteve na calha muito tempo, houve uma fase em que tentámos de tudo para sermos pais. É algo que não está fora de questão, se acontecer, vamos acolher com muito amor, se não acontecer, estamos em paz com isso. Vamos usufruindo daquilo que temos no momento. Aprendemos essa forma de viver, porque também se aprende, tens de ser feliz com aquilo que tens, não com o que gostavas de ter.”