Parece um lugar-comum ouvirmos dizer que ‘a felicidade depende de nós’. Apesar da nossa razão compreender a lógica desta premissa, a questão é sempre: de certeza que não é assim tão fácil. Vitor Rodrigues, psicólogo, acredita que essa meta está ao alcance de todos nós. E demonstra-o no seu novo livro, ‘Constrói a Tua Felicidade’, da Esfera dos Livros.
1 – Diz que a depressão é um inverno interior. Podemos aprender a controlar o nosso estado do tempo?
Sem dúvida. Há guarda-chuvas e capas quentinhas (técnicas paliativas que ajudam a diminuir a ansiedade, ganhar perspectiva e distanciamento, minorar o sofrimento), mas também há meios de mudar o modo como estamos face à vida. A Psicoterapia pode ajudar mas o desporto, a meditação, a alimentação ou o que fazemos com o tempo livre também contribuem muito para reencontrarmos energia, bem-estar, foco mental ou optimismo. Muitas coisas ajudam a deixar entrar o sol, recuperar o calor…
2 – Como se cultiva a felicidade?
Essa é a “pergunta de um milhão de dólares”, como diriam algumas pessoas mais capitalistas. Para mim, a felicidade depende da expressão e expansão de quem somos e do que temos de melhor enquanto potencial. Pertence à família da famosa auto-realização, vista como expressão do que o nosso corpo pode e gosta de fazer, do que as nossas emoções gostam de sentir e são capazes de vivenciar, do que a nossa mente pode realizar (sobretudo na esfera do trabalho mental) e do que o nosso lado espiritual pode sentir (refiro-me sobretudo ao que dá sentido para a vida). Do mesmo modo que a depressão nos limita e “encolhe” em nós mesmos (por exemplo fazendo-nos entrar em isolamento, recusar o movimento, ficar na cama, etc.), o lado feliz da vida implica crescer com o que somos realmente. Ora para crescer ajuda muito saber para onde. Tal como as plantas crescem para o Sol, é muito importante escolhermos o que há-de atrair-nos. Ajuda muito se forem valores e causas maiores: valores como Justiça, Amor, Compaixão, Liberdade, Beleza, e causas como a própria Humanidade, a busca do divino, a Ciência, a Sabedoria. A depressão está cheia de emoções aversivas que implicam “encolher e evitar”, como tristeza, culpa, ansiedade; a felicidade implica sobretudo atracções – não é por acaso que a associamos tão facilmente ao Amor, não só pessoal mas, também, impessoal, e também próprio, e também apreciador das coisas, do mundo e dos outros…
3 – E como se educa uma criança para a felicidade?
Bem… um dos aspectos fundamentais implica deixá-la crescer e apoiar o crescimento. De quem? Da criança que ela é. Importa aceitá-la e dar-lhe presença, respeitando-a e à sua individualidade e ajudando-a a expressar o seu potencial. Importa ajudá-la a fazer explorações, a aceitar errar sem qualquer dramatismo, tendo a ousadia de aprender e experimentar. Voltemos a uma analogia vegetal: uma planta saudável é a que é bem regada (com afecto, para uma criança, bem como alimento para o corpo e para o espírito) e a quem é consentido que cresça para o seu sol (importa ajudar a criança a encontrar o seu oriente, ou seja, o que a atrai e faz desabrochar). Os bons pais amam os filhos, respeitam-nos, fazem-lhes sentir que são gente e alguém repara neles e sabe apreciá-los. Procuram fornecer-lhes um ambiente estimulante, com experiências relacionais, mentais ou espirituais diversificadas. Fazem-lhes sentir que estão lá para elas mas também fornecem alguma “estrutura”, ajudando-as a aprender a regular o comportamento. Refiro-me, muito mais que a castigos, a consciencializações. Do mesmo modo, mais que punir os erros, procuram recompensar – ou pelo menos realçar, o que já é recompensador – os progressos e os comportamentos positivos.
4 – Portugal e a nossa crise favorecem a depressão?
Portugal e a crise favorecem muito a depressão. Os ambientes de crise económica e desemprego contribuem facilmente para o desalento, sentimentos de impotência e de não conseguirmos exercer o nosso potencial, fazer o melhor que podemos com o que somos. O nosso país, por outro lado, ainda parece ter, algo imbuída na cultura, a tradição da inveja e de nos sentirmos roubados quando alguém vai mais longe que nós, sabe mais ou é mais feliz.
5 – Podemos ser felizes mesmo se a vida não nos corre pelo melhor?
Gosto de realçar que, numa distinção mística e esotérica (para quem queira pensar nisso), felicidade é assunto da nossa personalidade temporária, alegria interior é apanágio duradouro da alma e bem-aventurança é assunto do espírito eterno. Mesmo sem tais metafísicas, todos nós podemos sentir alegria interior mesmo quando estamos “debaixo de fogo” se sentirmos que a nossa vida tem sentido e está a ter sentido e se sentirmos que tudo faz parte do nosso crescimento enquanto seres humanos. Um desportista, por exemplo, pode atravessar momentos difíceis, de grande esforço, onde testa os seus limites, mas sentindo-se interiormente bem com isso. Para quem considera que toda a vida é uma aprendizagem e que o fundamental é a expansão da consciência, tudo pode ensinar e tudo pode amadurecer a consciência: bom e mau, agradável e desagradável.
6 – Quem anda a sabotar a nossa felicidade?
Eu diria que os principais sabotadores somos nós mesmos quando aceitamos correr atrás de objectos de consumo acreditando que eles podem trazer-nos felicidade e multiplicando desejos pelas mais variadas coisas quando os desejos não satisfeitos tendem a deixar insatisfação e infelicidade. Mais vale perseguir coisas mais duradouras e associadas à felicidade, como desenvolver a nossa capacidade de amar, a nossa consciência e capacidade de apreciar a vida. No entanto, se quisermos sabotar a felicidade de alguém a partir do exterior, basta justamente induzir-lhe ideias disparatadas, como a de que a felicidade está associada a coisas em lugar de ser um estado de paz interior e fluxo de energia em acordo com a nossa consciência e crescimento. Ou criar condições que impeçam as pessoas de se realizarem como seres humanos.
7 – Estamos sempre à espera do que há de pior nos outros, somos muito críticos, mas isso não tende a melhorá-los, pois não?
Socialmente aprendemos muito uns com os outros por sermos espelhos. Ora aí temos um problema: em vez de espelharmos tudo, tendemos a espelhar os outros em acordo com o que vemos e escolhemos ver neles. Podemos ajudá-los a conhecerem-se no seu melhor ou no seu pior. Além disso, quando juntamos a expectativa de que eles façam o pior… estamos a produzir um “efeito Pigmalião” negativo. Se me dizem repetitivamente que sou mau, não presto, ou esperam que me comporte como um criminoso, o simples bom senso mostra logo que isso não me ajuda a ser um bom cidadão…
8 – Como podemos lutar contra más experiências ou recordações?
Aí há dois aspectos: lutar contra as más experiências em si, gerindo-as, retirando-lhes o “veneno” – ou seja, o poder traumático – e cultivar boas experiências/recordações. Procurar pequenas experiências novas e positivas. Normalmente as más recordações são fortes e conseguir superá-las implica, por um lado, dar-lhes novas interpretações e, por outro, modificá-las ou tomar distância face a elas. Isso consegue-se, por exemplo, observando-as do modo mais neutro possível mas também, além disso, transformando-as. Um modo de conseguir a transformação das imagens consiste mesmo em “revisitar” cenas modificando-as intencionalmente, imaginando-as a desenvolverem-se de outro modo. Isso diminui-lhes o poder se se imporem na nossa mente.
9 – Quando a nossa personalidade não nos admite a felicidade, é possível mudar quem somos?
A investigação actual tem demonstrado que mesmo o nosso cérebro (que não é forçosamente o mesmo que a nossa mente) é neuroplástico e pode mudar seja ao nível da estrutura ou da funcionalidade. Novos neurónios podem surgir, “antigos” neurónios podem ocupar-se de novas tarefas. Não sendo fácil mudar a personalidade, isso é viável, todavia. Demora tempo mas consegue-se, um pouco do mesmo modo que um, ou uma, pessoa com um físico flácido e obeso pode, com empenho desportivo e dieta adequada, convertê-lo num físico tonificado, elegante e eficaz. No plano da mente, é possível igualmente mudar muitas coisas com treino adequado – e/ou, claro, com intervenções terapêuticas apropriadas, que nos ajudam a mudar ideias e perspectivas acerca de nós e do mundo ou a modificar “programações” que o passado nos deixou.
10 – Diz que muitas vezes as pessoas não se empenham lá muito no seu próprio processo terapêutico. É porque têm medo ou porque o autoconhecimento dá trabalho? Ou por outra coisa qualquer?
Pode ser um misto de muitas coisas. Algumas pessoas, estando deprimidas, têm que vencer a inércia, o desalento, a falta de esperança que as levam a “nem tentarem”. Isso não é fácil mas pode ser encorajado pela obtenção de alívio e melhoria em sessões psicoterapêuticas bem-sucedidas. Além disso, claro, algumas pessoas esperam milagres fáceis ou têm alguma dificuldade em aceitar que melhoras profundas possam implicar algum trabalho e empenho em vez de somente terem o “trabalho” de tomar medicamentos. O autoconhecimento, bem como remexer em algumas feridas para finalmente desinfectá-las e cicatrizá-las profundamente, também tem algum carácter assustador. No entanto, é absolutamente necessário. Autoconhecimento e desenvolvimento de boas possibilidades de autogestão emocional e comportamental…