É engraçado como um monólogo escrito em 1986 pode ser tão atual. Susana Vieira, a atriz brasileira de 78 anos que completa 60 anos de carreira em 2022, está em cartaz no Tivoli BBVA, em Lisboa, com a peça “Uma Shirley Qualquer”, adaptação de Miguel Falabella para o texto de Willy Russel. Shirley Valentim é uma mulher de meia idade que viveu para a família – marido e filhos; mas descobre novas possibilidades para a sua vida depois de uma viagem transformadora para a Grécia. Antes, precisa romper com alguns dos padrões patriarcais do casamento e da maternidade, que já eram questões há 35 anos, e permanecem intactas.
Quando “Shirley Valentine” estreou em Londres, com Pauline Collins, foi logo um sucesso. Entre 1988 e 1989 ganhou diversos prémios como o Laurence Olivier Awards ou o Tony Awards e em 1989 a atriz repetiu o papel num filme com o mesmo nome, igualmente premiado. Um texto que se tornou popular no início da terceira onda do movimento feminista, que começava a questionar os papéis tradicionais das mulheres na sociedade.
Shirley é divertida, é vibrante, é protagonista. Mas ainda assim passa a peça inteira a falar com a parede da cozinha. Em casa é quem comanda, quem faz as compras e determina o jantar. Mas é duramente criticada pelo marido quando muda o cardápio habitual. Na verdade Shirley sente-se presa a uma rotina que não escolheu, mas foi guiada por aquela força invisível, viveu da forma como todos ao seu redor esperavam. Com dois filhos adultos e um marido acomodado, já não se sente valorizada, nem amada, muito menos desejada.
A mudança acontece quando, numa revolta, decide embarcar numa viagem à Grécia, e descobre que ainda pode ser mulher. Ser mesmo só mulher, antes de ser mãe, dona de casa ou esposa. Que se pode divertir, conhecer pessoas, desfrutar da própria companhia, sentir-se bonita, desejável. No fim das contas, Shirley lembra muitas mães e avós que podem achar que já não têm tempo para se redescobrirem. E, afinal, estão erradas.
Em muitos momentos da peça senti como se fossem as minhas avós a falar. Às vezes elas falam sobre experiências ou desejos próprios de uma forma como se aquilo não lhes pertencesse – como se fosse uma realidade que não faz parte delas. E eu acho que se elas tivessem a minha idade, diriam com orgulho que são feministas. Shirley é uma feminista, apesar de nunca o assumir. Acho que com tudo o que mulheres como elas viveram (e ainda vivem), nem é preciso colocar um rótulo naquilo que são.
Assistir Susana Vieira no palco é sentir orgulho de ser mulher. A história da atriz é exatamente o oposto da de Shirley – foi sempre muito cheia de opiniões e vontades e não abaixou a cabeça para homem nenhum; mas mesmo assim consegue conectar-se com a personagem e passar muita verdade. Num monólogo impecável, a atriz leva-nos pela história de forma natural e com muito humor. Com críticas sociais escondidas e boas piadas, é uma peça para rir e refletir. A não perder, em cartaz até 21 de maio.