Sim, eu julgo livros pela capa. E isso é para dizer que julguei o novo livro do jornalista Nelson Marques assim que o peguei nas mãos. Não pela capa em si, que é uma fotografia bonita e cheia de significado feita por Daniel Rodrigues, mas pelo título, “Os homens também choram – Histórias da nova masculinidade”. O meu diabinho sarcástico vibrou: “Pronto, no momento de ascensão do movimento ‘Me Too’ português, lá vem um homem a querer falar sobre como os homens sofrem por serem pressionados pela sociedade patriarcal a serem opressores com mulheres”.

Assumo que, de maneira geral, desconfio quando homens (principalmente cis e heterossexuais) querem falar sobre feminismo e igualdade de género. Não é que os homens não saibam ou não tenham o direito de defender o que é correto. Prendo-me mais àquele conceito de lugar de fala: O relato de uma mulher sobre o que é preciso mudar é mais cheio de significado, porque é ela que essencialmente foi silenciada com a discriminação de género. 

Mas, afinal, cada página do livro parecia prever o que eu estava a pensar. Porque o texto em si não é sobre mulheres, mas sim sobre homens. E o meu eu preconceituoso deu um nó: afinal, os homens também têm lugar de fala no tema igualdade de género, só é um lugar diferente do das mulheres.

Conversei com Nelson Marques sobre os temas abordados no livro, e deixei transparecer as minhas perguntas que quase soam como cobranças. É que existe (e isso não sou só eu que digo) aquele receio de que eles, mais uma vez, assumam o protagonismo de uma luta que, afinal, é nossa. Mas nós, mulheres, não chegaremos ao objetivo final se optarmos por rejeitar quem se quer juntar a nós. Aliás, já nem tenho tanta convicção de que a luta pertence a alguém.

Novas Masculinidades

O que é ser homem? Claro que eu nunca pensei muito sobre isso, e a leitura já valeu a pena por este motivo. Citando o escritor e ativista norte-americano Paul Kivel, e a sua “Caixa do Homem”, o livro aborda esta masculinidade que na verdade revela-se tóxica em muitas situações. Violência, força, controlo, maldade, são algumas das características associadas aos homens. Não lhes é permitido chorar, ter emoções, cometer erros. No fim das contas a masculinidade transborda em episódios de violência doméstica, que vitimizam maioritariamente mulheres, e ainda resulta em consequências psicológicas aos homens que precisam manter em segredo o que sentem. 

Mudar estes paradigmas passa por uma série de questões – principalmente aquele velho costume de educar meninos para serem “machos” e meninas para serem mães de família. E é a partir daqui que o autor traz histórias de homens que querem transformar a masculinidade tradicional. Conversa, por exemplo, com o humorista Diogo Faro, que criou o movimento “Não É Normal” com duas amigas e dois amigos. Ou com o investigador Tiago Rolino, que largou a advocacia para promover a igualdade de género. Com Ângelo Fernandes, que sofreu abuso sexual na infância e hoje ajuda outros homens a vencer o trauma. Entre outras vozes masculinas que também têm consciência dos privilégios e lutam por uma sociedade mais igual.

Privilégios e benefícios

Perguntei quando foi que Marques teve consciência da posição de privilégio que ocupa. “Não há um momento aleluia. Nem deixei de ter o privilégio. É um caminho longo, felizmente estou rodeado de muitas amigas feministas, que ao longo dos anos me foram educando. E provavelmente estarão cansadas disto, porque para cada homem que se converte ao feminismo, há uma feminista exausta”, disse-me. 

Antes da entrevista, eu já tinha escrito parte deste texto, e coincidentemente as minhas palavras foram as mesmas. Nelson Marques termina o livro a citar Michael Kimmel, um sociólogo norte-americano que estuda a igualdade de género e que ficou bastante conhecido por uma Ted Talk em que fala da divisão de tarefas domésticas. Kimmel diz que a divisão igualitária traz benefício para mulheres e homens nos mais variados níveis – significa mais saúde, felicidade, produtividade e até mais sexo. 

Eu percebo a lógica de tentar convencer um homem ao mostrar tudo que ele pode ganhar ao ser responsável por lavar a roupa ou passar o pano no chão da casa de banho. Mas aqui vai o lado das mulheres: estamos cansadas. E é mais uma violência que tantos homens não consigam perceber o quão injusto, cruel e doloroso é deixar todo o trabalho doméstico não remunerado nas costas das mulheres só porque sim. Que tenham que ser convencidos pelos benefícios para si próprios enquanto há anos as mulheres trabalham pelo benefício da família toda. 

“É importante que as pessoas percebam que nós não podemos ter igualdade de género se nós não começarmos em casa. Porque as mulheres dedicam duas horas por dia a mais em trabalho doméstico. Estamos a falar de dois dias inteiros de trabalho acumulado durante uma semana. Se nós permitirmos que isto aconteça, como é que vamos ter igualdade no local de trabalho? Começa pela linguagem. Os homens não têm que ajudar, têm que partilhar estas tarefas”, disse-me Nelson Marques. Concordo, mas aqui sinto o peso e a frustração de ter que esperar por não estar do lado do privilégio. Combinando com o facto de que Michael Kimmel foi acusado de assédio e homofobia alguns anos depois (Nelson Marques cita as acusações no livro, mas explica-me que, na sua opinião, o conteúdo do discurso do sociólogo continua importante), sou sincera em dizer que não gosto. Mas reconheço que, talvez, seria o discurso que poderia convencer muitos homens que me rodeiam. 

O lugar do homem no Feminismo

Também quis saber por que motivo tantos homens nem querem ouvir sobre feminismo quando são mulheres a falar, como se o meu entrevistado soubesse tudo o que se passa na mente de todos os homens. É uma pergunta retórica, para provar um ponto – porque no livro Marques mostra as histórias de homens que falam de igualdade de género para outros homens porque sabem que se os mesmos temas fossem trazidos por mulheres, não seriam ouvidos. “A mim faz-me confusão, porque eu sempre gostei de conversar com mulheres”, respondeu-me Nelson Marques, que depois destacou aquilo que ambos sabemos estar errado: “Mas acho que tem a ver com o facto de vivermos numa sociedade em que os locais de poder são ocupados por homens. As colunas de opinião nos jornais são dominadas por especialistas homens. E, portanto, acharão que haverá mais sabedoria nos homens”

Ou seja, ter homens a defender a igualdade de género e a darem voz ao discurso feminista, assim como os homens retratados no livro, e assim como o próprio autor, é um caminho. Mas a verdade é que é frustrante, e aqui a luta fica confusa, contraditória, especialmente para uma mulher que defende o direito de ser ouvida. É a desigualdade de género escancarada.

Fiquei a refletir o quanto algumas dezenas de páginas me fizeram pensar. Gosto de problematizar e depois dou por mim a ser vítima da minha própria problematização, e a verdade é que me sinto assim porque normalizei a ideia de “julgar pela capa”. Afinal, qual é o lugar do homem na luta feminista? Para mim, passa por repreender os amigos quando ouvem piadas machistas na mesa de um bar, responder ao motorista do Uber quando ele diz “só podia ser mulher”, não deixar os filhos verem a mãe a cozinhar às 21h00 quando o pai está deitado no sofá, e chorar em público sem medos. E essencialmente passa por conversar. Ser mulher é difícil a tantos níveis que os homens nunca vão entender. Mas ser homem também não é fácil, e se eu quero compreensão, também tenho de saber ouvir. 

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