Meninos, já deram beijinho à avó? Esta sou eu em 2019. Meninos, afastem-se da avó! Esta sou eu em 2020. Meninos, então e a canelada na avó? Serei esta em 2021?
Já estou a imaginar a passar solenemente nos ecrãs das televisões: ‘A Arte de Beijocar: 1143-2020’. No verão, estava eu num ajuntamento legal ao ar livre (calma, já passaram mais de 150 dias) quando avistámos outro ajuntamento legal. De repente, dei por mim a ir atrás de alguém e a beijocar o rosto de um dos membros da outra congregação pandémica. Primeiro, o silêncio constrangedor, depois a troca de acusações: “Vamos lá então saber, quem deu o primeiro beijo?” Por muito ridículo que pareça, estou pronta para atestar a veracidade deste episódio num qualquer tribunal de guerra.
Confesso que não sinto falta do beijoqueiro pica-pau, sabem, aquele que apontava as beiças ossudas às nossas maçãs do rosto como um mergulhador a executar um salto parafuso? Nem do tio ou tia que virava a cara ao meu duplo beijo suburbano. Mas não consigo sentir-me feliz perante as circunstâncias trágicas em que o beijo puramente social foi condenado à morte. Felizmente ainda temos o beijo romântico, ainda que, em caso de amor à primeira vista, ele tenha de cumprir quarentena. “Espera aí que te quero beijar muitíssimo mas combinamos para daqui a 15 dias, ok?” Sou só eu que vejo as implicações disto tudo na indústria cinematográfica? Nem quero pensar num remake de ‘Tudo o Vento Levou’ com Rhett Butler e Scarlett O’Hara à cotovelada. Se nada fizermos, as crianças, livres de uma infância passada nas fileiras da recruta beijoqueira (“Vai dar um beijinho ao tio! Já deste um beijinho à amiga da mãe?”), tardarão a recuperar o ofício em workshops revivalistas de beijos vintage. Temo que também para mim possa ser tarde demais. Já dei comigo a afastar brutalmente um miúdo que distraidamente se preparava para depositar cuspo nas minhas bochechas higienizadas.
Por isso, tenham dó, até uma otimista como eu encontra graves limitações na teoria de como a pandemia está a fazer de nós pessoas melhores. Assim, desta vez vou estar atenta a todos os rituais de passagem de ano, para garantir um 2021 todo misericordioso. Onde terei falhado em 2019? Na parte em que engoli de um só trago as 12 passas na última badalada e passei o Hino à Alegria a cuspir grainhas das sultanas fajutas? Quando fui ao mealheiro dos miúdos sacar uma nota – que não devolvi – para acenar ao novo ano em cima de uma cadeira tão baixa que conseguiu afundar quaisquer expectativas? E talvez tenha de, como devota benfiquista, resistir ao ímpeto de trocar o azul pelo encarnado, ainda que estejamos convenientemente na quadra de Jesus.
Dito tudo isto, resta-me mandar beijinhos pica-pau a todos os que me acompanharam nesta prosa em jeito de reflexão até ao fim. Aos outros que ficaram pelo caminho, uma canelada das novas (que ainda escrevo em 2019), mas com o carinho de sempre. Bom Ano Novo.