
Não quero falar muito do Natal. Até lá pode haver novas regras e mais umas tantas exceções e não vamos para já ficar a saber se teremos de arremessar os presentes às janelas dos nossos familiares. Uma espécie de basket pandémico a começar às 5 da manhã para o R/C, acrescendo depois uma hora por cada andar (mas como a lei não especifica se é para cima ou para baixo, haverá sempre os chicos-espertos negacionistas a fazer a consoada nas arrecadações subterrâneas).
Prefiro falar da sopa, não menos importante, essa instituição inabalável da dieta mediterrânica e que já fez tantas de nós querer atirarmo-nos ao Atlântico. Já baniram a papa da dieta inicial dos bebés – ou isso ou teria evoluído para uma versão sem lactose, sem glúten e sem a mínima graça, pelo que é preferível a desgraçada reformar-se quando ainda está no auge. Por isso, os lares portugueses começam agora a chafurdar na sopa mais cedo, normalmente ao quarto mês de vida do primeiro filho. Nessa altura, as quantidades são fofinhas e há uma avó sempre disponível para zelar pelo bem-estar nutricional do ‘ai Jesus’.
Mas os miúdos vão crescendo, e as doses de sopa também, até ao dia em que damos por nós envolvidas numa falcatrua ao nível da Operação Marquês, só para não termos de voltar à panela (acreditem, lá chegarão…). Aos domingos, começamos com duas conchas generosas e vamos reduzindo ao ponto de, na sexta, servirmos uma taça somítica acompanhada pela lição filosófica do copo meio-cheio/meio-vazio. (“Margarida, minha querida filha, se é pouca ou muita sopa vai depender de como encaras a vida, a mãe já te explicou isso.”)
É verdade, aos sábados não há sopa, nem nos dias festa, nem nos feriados… E muito menos em ajuntamentos. Na altura em que ainda havia convívios com mais de cinco pessoas e onde ninguém se importava com gotículas no prato alheio, lembro-me de haver uma mãe que, naquela coisa de organizar quem leva o quê, perguntava sempre quem fazia a sopa. Sopa e gelatina, as duas bandeiras da típica desmancha prazeres dos aniversários infantis.
Em 2020, este dilema da multiplicação da sopa atingiu toda a esfera das refeições familiares. Os almoços, que há pouco mais de 10 meses delegávamos nas cantinas escolares ou na mão para a cozinha das avós, agora sugam-nos, à luz do dia, toda a nossa criatividade culinária. Se antes juntar a família à mesa era um ponto de honra, agora é um ritual que nos faz olhar de soslaio para a comunhão da Última Ceia de Da Vinci. Ontem insistíamos com as crianças para repetir os legumes ao jantar, hoje sabemos que aquele florete de brócolo é determinante para compor o ramalhete do almoço de amanhã. A pandemia tornou-me no tipo de mãe que sonega restos de comida, essa é a verdade!
Assim, naquela história de arremessos à janela do início, tudo o que quero neste Natal é ser atingida por um bacalhau inteiro (ou um cabrito ou um naco de seitã, cozinhado e distribuído por caixinhas!) e logo às 5 da manhã, que a minha sogra vive numa casa térrea. Esse é o meu desejo, para mim e para todos vós – menos para os que se enfiarem nas arrecadações à socapa. Se não houver bacalhau com todos este ano, que haja bacalhau para todos os dias. Sopa é que não…