Liga-me a minha filha com o sentido de urgência que lhe é tão característico para me pedir que a inscreva no recém-criado Clube de Teatro da escola. Desligo o telefone e rio-me, ao recordar a única experiência que alguma vez tive na área da representação. Foi no liceu e deram-me o papel terciário de empregada de mesa. Nem tinha de falar, a única coisa que tinha de fazer era chorar convulsivamente. No dia da estreia estava orgulhosa, já dominava a arte do choro, mas devia estar tão nervosa que solucei alto demais, ao ponto de abafar o diálogo dos protagonistas.
Convém explicar que eu era um autêntico bicho do mato em criança e não era só porque tinha uma juba de leão. Era tímida ao ponto de obrigar os meus pais a nomear todas as pessoas que iriam estar em determinado lugar, num jantar de amigos, por exemplo, e se, porventura, algum presente tivesse ficado fora da lista, era o fim da picada. Para combater a minha timidez, os meus pais resolveram pôr-me em todas as atividades que na década de 80 havia em Portugal. Ora bem: andei no órgão mas mais uma vez, numa audição, o volume do meu instrumento estava tão alto que nenhum dos outros meninos se ouvia; andei na natação, mas tantos foram os pirulitos que engoli na primeira aula que o meu vómito obrigou a evacuar e desinfetar a piscina; andei na patinagem artística, mas como não me aguentava muito tempo em nenhuma atividade, o investimento inicial era pouco ou nenhum, e eu era uma espécie de Shrek sobre rodas (lembram-se daqueles patins que encaixavam nos nossos sapatos?)… enquanto as outras meninas deslizavam de tutu e botas brancas, eu cambaleava nas minhas rodas verde monstro. Mais tarde, a cena repetiu-se, mas desta vez nas pistas de ski: lembro-me de me sentir um verdadeiro Yeti num fato emprestado oversized a travar em cunha, enquanto as Brancas de Neve me ultrapassavam em fatos justos e a fazer graciosas paralelas. E cheguei a sentar-me ao colo de uma senhora ao subir para a telecadeira!
De repente estou a ver a minha irmã, acabada de tirar a carta, a perguntar: “Ó Cíntia, aquilo das portagens, paramos ou passamos muito devagar e atiramos as moedas?” (como é que era, quem sai aos seus não é de Genebra?) Também tenho algo a dizer sobre carros: a primeira vez que conduzi sozinha bati num veículo estacionado; um dia, a caminho do trabalho, parei durante largos minutos atrás de um camião avariado na faixa da direita da autoestrada a achar que estava trânsito; e tive alguma dificuldade em concentrar-me quando usei pela primeira vez o para-brisas. E há também um outro episódio com um carro, mas desta vez no supermercado: tinha acabado de arrumar as compras na bagageira quando um estranho se aproxima de mim e me pede ‘carinho’. Afasto o pervertido e vou fazer queixa ao segurança, que não me liga nenhuma. Só quando estou a voltar para casa é que me cai a moeda: o homem, que não falava bem português, não queria ‘carinho’ mas sim o ‘carrinho’ do super para ficar com os 50 cêntimos. Enfim, podia ficar aqui o dia inteiro a contar piadas, mas agora tenho de ir inscrever a miúda no teatro. Terá também ela queda para a comédia? O meu vasto repertório, esse fica entre nós, ok?