
Podia contar-vos milhares de histórias de casamentos desfeitos. Nenhuma delas seria original, e de certeza que qualquer pessoa conheceria outra igual. Ou teria passado pelo mesmo. Mas esta não é a história de um divórcio, é a história das pessoas que nunca se quiseram divorciar: os filhos.
A net está cheia de histórias, cada uma mais sinistra que a outra. Tropeço no site de Kathy Marshack (www.kmarshack.com). Talvez não saibam quem é. Eu não faço ideia. Sei que é psicóloga e ‘coach’ familiar, que o marido é advogado de divórcios, e que, bem, no melhor pano cai a nódoa: estas duas pessoas, que saberiam, mais que nenhumas outras, evitar uma situação de risco, estão envolvidas num divórcio de alto conflito.
“Numa luta de poder com o Juiz, colega do meu ex-marido, ordenaram que as minhas duas filhas, já traumatizadas por um divórcio litigioso, fossem presentes a tribunal para que pudessem tomar partido”, conta Kathy. “Se me recusasse a comparecer e a trazer as crianças, seria acusada de desrespeito ao tribunal, multada e proibida de ver as minhas filhas. Se as trouxesse, como poderia mais tarde curar as feridas que daí resultariam? Escolhi: nem eu nem elas aparecemos.”
Não sei como a história continuou. Mas como é que fica a cabeça destas crianças que têm de ‘tomar partido’ e escolher entre pai e mãe?
O casal acabou, mas a família continua
“As crianças têm sempre de ser preservadas”, defende Mafalda Homem de Melo, psicóloga e mediadora familiar. “O problema é que numa separação se mistura muito a conjugalidade e a parentalidade.” Se calhar, porque no casamento também acontece isso… Lembro-me de repente da psicóloga belga Esther Perel dizer que muitas mães canalizam todo o seu erotismo para as crianças…
“Mas é urgente que estas duas situações sejam separadas. É fundamental que as crianças percebam que o divórcio é definitivo, mas que isto não tem nada a ver com elas e que a família continua, embora o casal tenha acabado.”
Até porque, se a situação não ficar bem esclarecida, as crianças podem achar que a culpa do divórcio dos pais é… delas. “Por isso é que é importante deixar as coisas bem claras”, aconselha Mafalda. “É preciso explicar que o pai e a mãe já não são casados (se as crianças forem pequeninas, pode dizer que já não são ‘namorados’) mas que vão ser pai e mãe sempre.”
Como usar um filho
Portanto, o primeiro mandamento de um bom divórcio, em relação aos filhos, é simples: não transportar o conflito para a relação com as crianças. Claro que é mais fácil de dizer do que fazer… Os vários sites sobre divórcio listam todas as formas que os pais usam para transformar uma criança numa arma contra o outro pai.
Uma criança num divórcio pode ser usada com os seguintes fins: 1 – Como mensageiro (“Diz ao teu pai que se julga que pode chegar a estas horas sem me dizer nada, está muito enganado”); 2 – Como Espião (“Então conta lá: o teu pai já tem uma namorada? É bonita? É simpática?”); 3 – Como Árbitro (“Achas bem o que o teu pai nos fez?”); e 4 – Como Companheiro substituto (“Ainda bem que te tenho a ti para me fazeres companhia”). Mas se acha que já viu tudo sobre Maneiras de Usar Um Filho no Divórcio, espere pela última moda…
Ora bem: a última ‘moda’ para usar uma criança é fazê-la acusar o pai de abuso sexual. “Muitas vezes isso não é verdade”, nota Mafalda Homem de Melo. “Mas é do pior que pode acontecer: a acusação é má, tudo o que está envolvido é ainda pior: as perícias, as sessões. E o que acontece é isto: a Justiça entra logo em defesa da criança e afasta-a imediatamente do pai, esquecendo-se de que, primeiro, haveria que provar a acusação. Uma acusação de abuso sexual é gravíssima, mas igualmente grave é a falsa acusação, que é outra forma de abuso de uma criança.”
Ou seja, de uma maneira ou de outra, esta criança está a ser abusada: “Ou sexualmente de facto, ou sofre outra forma de abuso que é roubarem-lhe o pai. Ainda por cima as crianças são facilmente manipuladas. De tanto ouvirem, interiorizam aquilo que ouvem como uma falsa memória. E uma falsa memória pode causar tantos danos como uma memória real. Em nome do que é que se faz isto a um filho? E a alguém que pressupostamente já amámos?”
Desistir do braço de ferro
Problema: o foco muitas vezes não está centrado nos pais nem nas crianças, mas no conflito em si. “Num divórcio, há sempre alguém rejeitado”, nota Mafalda. “E esse sentimento de rejeição é sempre causador de conflito. Muitas vezes, o conflito é uma forma de lidar com a dor, e se for preciso usar as crianças, usam. Mas a nossa forma de lidar com a dor não pode ser causando sofrimento a outro. Temos de ter balizas que nos controlem mesmo dentro do sofrimento.”
O objetivo dos dois, ex-marido e mulher, pelo menos em teoria, é aquilo a que está na moda chamar um divórcio ‘civilizado’. Problema: e quando um dos ‘divorciados’ não é tão civilizado quanto seria de esperar? Conseguir chegar a um consenso naquilo que é verdadeiramente importante tem de começar por algum lado: muitas vezes, a boa vontade é mesmo… contagiosa. Ou seja, um braço de ferro precisa de dois. Muitas vezes, quando um deixa cair o braço, o outro também desiste da luta.
E quando as coisas não são assim tão simples e a luta se arrasta durante tempos de sofrimento infindo? Antigamente, a única maneira de ‘resolver’ um divórcio era pela via judicial. Hoje, existe a mediação familiar. Esta consegue que os dois pais cheguem a um acordo que depois será homologado pelo tribunal. “A nível judicial, há sempre um que ganha e outro que perde. A nível de mediação, os dois ganham.”
Separados, mas unidos
Ora bem, digamos que estou divorciada e é preciso ‘reaprender’ a ser mãe e pai. Segundo mandamento: os pais, embora separados, têm de continuar, em termos de educação e valores, unidos. “Tem que haver coerência entre os dois, porque as crianças são mestres em manipular, quando os pais são manipuláveis”, nota Mafalda. “E há um fator importantíssimo que potencia esta manipulação: a culpa dos pais. Como têm pouco tempo para as crianças, compensam-nas com a permissividade.”
Claro que a culpa não é um exclusivo do divórcio, tal como o não é a permissividade. Mas a separação pode acentuar os problemas já existentes de falta de estrutura familiar. Um divórcio em que os dois pais estão fragilizados pode ser a situação perfeita para que uma criança obtenha tudo o que quer de cada um. “Hoje há uma permissividade imensa”, defende Mafalda. “Não há definição de papéis, porque se confunde autoridade com autoritarismo.”
Antigamente, as referências das crianças eram a família e a escola. Hoje, é o mundo inteiro. “Eles são bombardeados com referências! Podíamos pensar que, com essa catadupa de informação, seriam, enfim, mais informados. Mas acontece o contrário: não assimilam nada, porque é impossível integrar o que quer que seja, e isto tem consequências gravíssimas.”
E, na prática, em que é que resulta a falta de referências? Se eu não educar uma criança, acontece o quê? “Acontece que ela vai provocá-la constantemente! O confronto hoje em dia começa muito mais cedo por essa indefinição de papéis.” Uma criança cresce em relação a alguma coisa, é isso? “Claro. Tem de aprender o que é bom e mau, e isso é-lhe dado pela família. Se ela pode tudo, isso desaparece. A forma de ela aprender é testar os limites. Quando esses limites são postos com amor, rotina e consistência, ela percebe o que é e não é negociável. Um filho sem limites está em guerra permanente. Isto é um desgaste imenso, para os pais e para os filhos, e ainda mais em situação de divórcio.”
Portanto, terceiro mandamento – não se demitir de mãe/pai, e não desperdiçar o pouco tempo que tem com as crianças em lutas de galos.
As visitas devem ser uma festa
Seguimos para o quarto mandamento: nunca desprezar o pai à frente das crianças, por muito que lhe apeteça furar-lhe os pneus e rogar-lhe todas as pragas que a sua avó bruxa lhe ensinou. “As pessoas devem tentar fazer com que seja uma festa ir para o pai e uma festa ir para a mãe”, aconselha Mafalda. Humm. Uma festa não é uma grande ginástica mental se o que me apetece é torturar aquela pessoa? “Mas tem de conseguir-se. A vida pode dar as cambalhotas que quiser, mas aquele pai e aquela mãe vão ser sempre a família daquela criança. E há pais que perpetuam o conflito durante toda a vida da criança! O importante é que os pais, mesmo separados, partilhem os mesmos valores. O pai não deve autorizar que a criança fale mal da mãe na sua presença, e a mãe deve fazer a mesma coisa em relação ao pai.”
Em conclusão, o que devem os pais fazer? “Acima de tudo, lembrar-se que as crianças são seres em formação e que o pai e a mãe serão sempre as referências principais.”