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No outono de 2013, a jornalista e escritora Christine Gross-Loh foi até à Universidade de Harvard, onde se tinha formado uns anos antes, assistir a uma aula de Filosofia Chinesa. Tinha-lhe chegado aos ouvidos que esta era a terceira cadeira mais popular entre os alunos da Universidade (nos EUA, o sistema universitário permite que eles escolham disciplinas opcionais, que podem nada ter a ver com a sua especialização principal). E encontrou cerca de 700 alunos num anfiteatro, atentos às palavras de Michael Puett. O carismático professor dirige o departamento de Estudos Religiosos da Universidade e foi um dos cinco daquela instituição a receber o prémio de Excelência no ensino. Da conversa entre os dois nasceu um livro, ‘O Caminho da Vida’, editado em Portugal pela Lua de Papel, onde expõem os ensinamentos de meia dúzia de grandes filósofos chineses da Antiguidade, de Confúcio a Lao Tsé, e nos mostram como eles ainda se aplicam aos nossos dias.

1. O mito: Conhece o teu verdadeiro ‘eu’ e serás feliz
Nada mais enganoso, diz-nos Michael Puett quando o encontramos na companhia de Christine, bem-disposto logo pela manhã, num hotel da capital. Andam a vender-nos esta ideia há umas décadas como sendo libertadora, mas só está a tornar-nos mais ansiosos e egocêntricos. “Sobretudo nas últimas décadas, a nossa visão básica do mundo diz-nos que devemos olhar para dentro, achar o nosso ‘eu’ verdadeiro e viver as nossas vidas de acordo com ele, de forma sincera e aceitando quem somos. A geração que tem hoje 40 ou 50 anos cresceu com esse conceito e os jovens do novo milénio também foram educados nessa ideologia, mas parece-me que já não funciona com eles. Em parte porque foram demasiado pressionados por essas ideias e quando chegam aos 19 ou 20 anos não acham aquilo que era suposto descobrirem em si próprios, não encontram a tal realização e felicidade que lhes disseram que iriam encontrar. Mas, ao mesmo tempo, parecem ser uma geração muito apostada em pensar de forma diferente e que adora ser desafiada.”
Além disso, tanto investimento na nossa autodefinição é perigoso, diz Puett. Definimos o nosso futuro com base numa interpretação muito limitada daquilo que somos – dizemos ‘sou bom nisto, não tenho jeito para aquilo’, e ficamos por aí; rotulamo-nos e limitamos as nossas oportunidades. Christine Gross-Loh acrescenta: “Esse exercício é narcisista porque passa a ser o ponto de vista que temos em relação a tudo na vida. Os filósofos chineses tinham esta noção interessante sobre a vida humana – o que importa mesmo são as relações que estabelecemos com outras pessoas. O nosso ‘eu’ desenvolve-se dentro dessas relações e não sozinho. Só assim nos cultivamos de modo a sermos pessoas melhores, termos vidas melhores e proporcionarmos vidas melhores aos outros.”

2. Quer ser um bom líder? Seja como a água que corre
O título deste livro faz referência ao Tao, ou ‘o Caminho’. A expressão aparece numa coleção de textos conhecida como o Tao Te Ching, atribuído ao filósofo Lao Tsé, figura de quem pouco se sabe mas que se crê que tenha vivido há mais de 2500 anos. Lao Tsé tinha uma ideia bem original sobre o verdadeiro poder, a influência que exercemos sobre os outros, e achava que ele não estava em vencer pela força: “A fraqueza vence a força; a brandura vence a dureza”, dizia. “Quando aplicamos a ideia de encontrarmos o nosso verdadeiro ‘eu’ ao mundo dos negócios, economia e política, na tentativa de exercer controlo e ser o indivíduo mais poderoso, não damos conta de que, inevitavelmente, estamos a criar ressentimento nas pessoas à nossa volta, a longo prazo. E isso vai minar o nosso percurso. Lao Tsé dizia que as nossas vidas são dominadas pelas relações e, por isso, é preciso observar e perceber como é que os outros interagem à nossa volta. Dessa forma estaremos a liderar, apesar de parecermos seguir os outros. Trabalhamos ativamente, mas sem dominar os outros, agindo em parceria com eles.” Basta pensarmos na liderança como um rio – esta analogia com a água é, aliás, muito comum na filosofia chinesa. “Todas as coisas na vida exercem um impacto mútuo, transformam-se mutuamente. Pensemos na vida como um curso de água: é incrivelmente poderosa, molda paisagens inteiras, mas está constantemente a fluir e é incrivelmente flexível; molda-se à paisagem mas também consegue transformá-la ao mesmo tempo”, observa Puett.

3. Os rituais ajudam-nos a ser mais bondosos
Se as ideias do filósofo Confúcio chegaram até nós, 2500 anos depois, isso deve-se ao velho sábio chinês ter sempre preferido a pergunta ’Como estás a viver a tua vida no dia a dia?’, às grandes questões filosóficas. Foi o primeiro a salientar a importância dos rituais: eles servem para dar algum sentido às nossas vidas e ao mundo, e ainda nos permitem assumir papéis diferentes dos que temos no quotidiano, ensinam a pormo-nos no lugar dos outros.
Todos somos animais de hábitos, seja o café matinal que tomamos enquanto pomos as notícias em dia, cumprimentar o senhor do quiosque a caminho do trabalho ou celebrar o aniversário numa grande festa no nosso restaurante preferido. Mas Confúcio não fala dos rituais neste sentido – muitos destes exemplos são apenas rotinas – e sim dos ritos que nos transformam, em que passamos de um estado a outro, como um casamento, um batizado ou a cerimónia de formatura da faculdade.
Quando perguntaram a Confúcio o que ele achava do ritual do culto aos antepassados, respondeu que era absolutamente necessário, mas que pouco importava se o espírito dos mortos estava lá ou não – ele era feito para apaziguar as tensões dos vivos e ajudar as pessoas a relacionarem-se de forma mais equilibrada. Ou seja, ajudavam-nos também a ser mais bondosos. “A preocupação de Confúcio é romper com os padrões quotidianos que limitam a perceção que temos de nós próprios e do mundo que nos rodeia”, explica Michael Puett. “Pensem nos rituais não como formas de agir em sociedade – assim só estaremos a criar padrões tão maus ou piores que os antigos – mas como pausas no quotidiano que nos obrigam a pensar e agir como se fôssemos outra pessoa. Temos que nos treinar continuamente a ‘ler’ os outros e a forma como os nossos atos os influenciam, a pensar mais e a cuidar mais deles, para melhorarmos a forma como interagimos.”

4. Tome decisões com a cabeça e com o coração, em partes iguais
“Pensamos que para tomarmos grandes decisões de vida basta pensarmos de forma racional nas implicações que elas vão ter. De facto, é um conceito perigoso”, observa Michael Puett. Mêncio, um dos seguidores de Confúcio, achava que devíamos usar a lógica e o coração em igual percentagem, sempre que tomamos decisões. “Quando temos que tomar uma decisão de carreira importante, por exemplo, analisamos as nossas fraquezas e pontos fortes e depois decidimos em que profissão encaixamos melhor e podemos singrar. Mêncio dizia que essas ideias eram completamente erradas, porque: 1) somos seres muito confusos e complexos e o mundo é muito confuso, 2) pior ainda, porque nos rotulamos e assim decidimos o nosso futuro baseados em falsas conceções sobre nós próprios.”
O que os filósofos orientais diziam já há largos séculos sobre tomar decisões com a cabeça e com o coração vai muito ao encontro das descobertas modernas no campo da neurociência e de autores como o português António Damásio, que explicava em ‘O Erro de Descartes’ como a nossa inteligência emocional era importante no processo de tomada de decisão. Puett concorda: “Quando pensamos no processo de tomada de decisão, aquilo que os filósofos chineses diziam e a obra de cientistas como Damásio confirma, são os dois lados da mesma moeda. Tendemos a pensar na racionalidade como o melhor método e achamos que só depois de a usarmos é que podemos ter em conta o que nos diz o instinto. Os filósofos chineses diziam que era perigoso dividi-los: quando privilegiamos a parte racional, provavelmente só teremos a visão de um ‘eu’ e de um mundo que achamos (erradamente) serem estáveis. Mas quando decidimos só com o lado emotivo, estaremos a fazê-lo com um conjunto de emoções não treinadas que poderão trazer ao de cima os nossos piores padrões. Devíamos treinar para pensar nas decisões racional e emocionalmente.” Mas isso não torna tudo ainda mais difícil? “Sim”, ri Puett. “Mas também torna a tomada de decisão ainda mais excitante.”

5. As emoções também se treinam
Ora aqui está uma tarefa difícil. “O mindfulness ajuda: aperceba-se das suas emoções e reaja de forma diferente da habitual. Costumamos achar que as nossas emoções são autênticas e, por isso, elas nos definem, mas isso não é verdade”, diz Christine Gross-Loh. E como se consegue treinar algo que é automático e que não depende da razão? “Tome consciência de qual é a sua típica reação a um problema ou discussão e tente qualquer coisa diferente. Assim estará também a produzir uma reação diferente na pessoa com quem está em conflito. Quanto mais nos apercebemos do quanto isto resulta, mais fácil nos será quebrar os padrões de reação – que são automáticos. Não é fácil, é um desafio constante, mas acho que é a mensagem que as pessoas deveriam ouvir, em vez de ‘sê tu próprio’.”

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