E porque é que haviamos de falar de guerra às crianças, estão vocês a dizer, quando elas deviam era estar a ver desenhos animados ou o Super Mário ou a Porquinha Pepa. Primeiro, porque elas não vivem numa bolha e também se apercebem do resto do mundo. E depois, porque também fazem perguntas.
Nenhuma guerra é fácil de entender. Se não é para os adultos, muito menos para as crianças. Mas quando se leva com um interessado “afinal, quem são os maus?”, a coisa piora bastante. Porque nos expõe à nossa própria ignorância e inutilidade.
Claro que as reações das crianças são tão variadas como as dos adultos. Esperamos que fiquem muito afetadas mas preocupam-se mais com o que vão fazer no fim de semana. Esperamos que deixem de dormir e continuam como se nada fosse. Esperamos que se sintam protegidas, e têm medo como se aquilo fosse à porta deles. Esperamos que façam perguntas, calam-se. Esperamos que nos deixem sossegadas com os nossos medos, interrogam-nos como se não houvesse amanhã. E precisamente porque não sabemos como vão reagir, o melhor é estarmos preparadas para tudo.
Explique conforme a idade e mantenha-se calma, porque as crianças copiam, acima de tudo, o estado mental dos pais.
Precisamente porque há muitas crianças em todo o mundo a fazerem perguntas, a UNICEF organizou um pequeno manual sobre o assunto, chamado ‘How to talk to your children about conflict and war’ (em www.unicef.org). Basicamente, as crianças têm o direito de saber o que se passa no mundo, e os pais têm a responsabilidade de os fazer sentir seguros. Ou seja, cada pai ou mãe conhece melhor o seu filho, e portanto deve ter a sensibilidade de perceber também qual é a melhor abordagem. Explique conforme a idade e mantenha-se calma, porque as crianças copiam, acima de tudo, o estado mental dos pais.
Também é importante não os deixar a pensar que o mundo é todo horrível: mesmo no meio de um conflito, há muitos atos de bondade. E, principalmente, estar pronto para falar nisso em vez de lhe dizer ‘isso são assuntos de adulto’. Se por acaso ele lhe fizer perguntas mesmo antes de dormir, termine com uma história alegre ou calma. Dê as explicações que lhe forem pedidas, mas não o deixe adormecer a pensar na guerra.
Criar espaço para falar
Moçambique, Zimbábue, Líbia, Síria, Ucrânia e Sudão do Sul, Cambodja, Índia, Brasil ou Turquia, Serra Leoa ou Colômbia, quase não há local dito de ‘catástrofe’ humanitária onde Maria Palha não tenha trabalhado. Fundadora da Associação BeHuman, uma ONG que tem a missão de apoiar as futuras gerações a tornarem-se emocionalmente mais competentes, Maria formou-se em psicologia clínica e em Empreendedorismo Social, e desde 2006 viaja pelo mundo a organizar programas de saúde mental e emocional em contextos de crise humanitária, com organizações de saúde e os Médicos Sem Fronteiras.
O importante é não normalizar a situação como se soubéssemos tudo e como se não fosse desconfortável também para nós.
Atualmente em Portugal, Maria explica-nos… como explicar a guerra: “Não sou apologista de expor as crianças a imagens de violência, sejam de que idade for, mas também não as vamos proteger de tal forma que cresçam numa bolha… O que é importante é criar espaços para falar.”
Então, mas deixe-me fazer a pergunta básica em que todos os pais estão neste momento a pensar: está a dar o telejornal e a criança está a ver. Desligo a televisão? “Não é preciso. Se ela se aperceber de alguma coisa, converse sobre isso em vez de transformar tudo aquilo num tabu”, defende Maria Palha. Problema: isto é difícil, porque para nós, adultos, também é difícil fazer sentido uma guerra. “O importante é não normalizar a situação como se soubéssemos tudo e como se não fosse desconfortável também para nós.”
Ou seja, muitas vezes nem temos respostas para eles… “Mas isso é natural, e é bom que eles percebam isso. Muitas vezes não sabemos explicar o que acontece no mundo, sentimo-nos tristes ou angustiados, e é importante aceitá-lo. Quando não temos respostas, tendemos a evitar o assunto, mas mesmo que isso não seja falado em casa, as crianças vão ter contacto com esses assuntos na escola e é importante que os pais estejam lá para ajudar a fazer sentido do mundo.”
A guerra combate-se… em casa
Portanto, primeira lição: não é errado mostrar que a guerra também nos angustia. Segunda lição: não os deixar com medo. A guerra angustia-nos, sim, mas está lá muito longe e nenhum daqueles mísseis nos vai cair na cabeça. “Devemos reforçar sempre que eles estão seguros, porque, principalmente com os mais pequenos que ainda não têm muita noção de distâncias e países, isto é o que os preocupa mais”, explica Maria Palha. “As crianças perguntam muitas vezes: ‘A guerra pode chegar à nossa casa, ao nosso país?’ É importante dizer que estamos em segurança e que há pessoas responsáveis que trabalham todos os dias dentro e fora do país para garantir que estamos a salvo.”
Terceira lição: como lidar com a sensação de que não podemos fazer nada, com a impotência de vermos todas aquelas imagens terríveis sem sair do sofá? “Na verdade, essa sensação é enganadora”, explica Maria Palha. “Quer para as crianças quer para os adultos. Porque nós podemos fazer qualquer coisa para ajudar.” Claro que as crianças vão à escola, os pais vão trabalhar, nenhum de nós felizmente vai para a linha da frente, mas há muito que todos podemos fazer para criar a paz na nossa própria vida. Como? “Podemos começar na nossa própria família: como é que podemos ter conversas pacíficas mesmo quando há pessoas que não estão de acordo? De que forma é que podemos discordar melhor? Como é que podemos tolerar a diferença? Como é que podemos lidar com emoções mais fortes como a raiva e a zanga sem ser a bater no outro e a chamar nomes? E isto pode ser feito e explicado em todas as idades.”
Aprender a ouvir
Então o nosso esforço de guerra, digamos assim, para crianças e adultos: saber ouvir o outro. Podem pensar que é pouco, como esforço de guerra. Mas não é tão fácil assim. Precisamente, pergunta seguinte: e como é que eu desenvolvo essa capacidade diplomática? Imagine que estou a conversar com alguém e aquela conversa me indigna. “Num primeiro momento, podemos contar até 10, por exemplo, e substituir a indignação por curiosidade: ‘porque é que esta pessoa pensa desta maneira?’ Isso afasta-nos do caminho do bem e do mal.”
Lembro-me de uma frase no artigo da UNICEF: “Espalhe a compaixão, não a exclusão.” Maria reforça a mesma coisa. “Às vezes, as pessoas que temos à frente regem-se por valores diferentes dos nossos e mesmo nós, adultos, temos muita dificuldade em lidar com isto. Até à pandemia, nós não éramos obrigados a lidar diariamente com tantas diferenças, mesmo entre amigos. E a tendência, em situações de guerra, é que fomos habituados a procurar sempre um ‘bom’ e um ‘mau’.”
Podemos dizer que é possível resolver os nossos problemas sem violência: aprendendo a discordar melhor, a termos mais curiosidade e menos julgamento.
Ok, mas estou outra vez à frente do telejornal e a criança pergunta-me quem são os maus, respondo o quê? “Devemos evitar discursos polarizados, porque isto só vai aumentar a intolerância perante qualquer tipo de diferença”, nota Maria Palha. “Pode ser importante relembrar sempre que numa guerra ambas as partes acreditam que estão a lutar por alguma coisa que é muito importante para elas, e recorrem à violência para o fazer. Podemos dizer que é possível resolver os nossos problemas sem violência: aprendendo a discordar melhor, a termos mais curiosidade e menos julgamento.”
Ou seja, mesmo numa conversa banal em tempo de paz não temos necessariamente de concordar com o outro… “Claro que não, é importante discordar, até porque é isso que nos faz avançar, é isso que nos traz riqueza. Mas é preciso conseguir ouvir e pensar, ‘como é que seria se eu vivesse a vida daquela pessoa?’ Isto ajuda-nos a aceitar a diferença.”
Recuperar o hábito da conversa
Quarta lição, aproveitar a guerra para desenvolver empatia e aceitação do outro. Fico a pensar que isto é especialmente importante agora, quando estamos a entrar mundialmente numa espiral perigosa que vê o outro como um estranho, um outsider, o que pode ter consequências desastrosas… “Já está a ter”, nota Maria. “O bullying, por exemplo. Não pensamos nele como um tipo de guerra, mas é o início de uma grande catástrofe, a reação à diferença com raiva e com zanga. É fundamental conseguir introduzir uma linguagem mais emocional e diferentes formas de lidar com emoções difíceis. Os miúdos estão muito protegidos pelos ecrãs mas depois isso também os dessensibiliza e dificulta a forma como sentimos na pele as emoções. Então, começar a trazer tudo isto para a mesa de refeição é urgente.”
Problema: estamos a perder o hábito de conversar. E quando não se conversa, como vamos saber o que nos assusta e como vamos resolvê-lo? “Isso depende das famílias, mas em geral sim, falamos pouco. Vivemos uma sociedade muito apressada, sem tempo para nada, é fácil entrar-se em piloto automático e esse tempo para estarmos sossegadamente à mesa a conversar perdeu-se. Os adultos acabam por conseguir naturalmente ter mais tradução de tudo isto, enquanto as crianças ficam mais confusas.”
É interessante, explica Maria, que observar uma guerra pela televisão pode ter o mesmo impacto em termos de saúde psicológica que viver uma guerra. “Ao nível de reações do sistema nervoso central, de insónias, de ansiedades, de medos, emocionalmente e mentalmente estamos também expostos a um enorme nível de violência.”
Se evitarmos as emoções difíceis, também estaremos a evitar as outras, mais cedo ou mais tarde deixaremos de ter prazer ou alegria.
Como é que traduzimos fisicamente esta angústia? “Para as crianças, é mais fácil prestarem atenção aos sinais físicos: repara no teu corpo, estás muito agitado, vamos respirar mais devagar. Dar nome às reações que podem surgir: eu também fico assustado, também fico angustiado, também fico triste, e isso não é mau, é uma resposta emocional que faz parte do nosso reportório.”
Pergunta que muita gente certamente estará a fazer: não era mais fácil evitar tudo isto proibindo simplesmente as crianças de verem algum tipo de imagem? Mais fácil era. Mas, explica Maria, se evitarmos as emoções difíceis, também estaremos a evitar as outras, mais cedo ou mais tarde deixaremos de ter prazer ou alegria. Além disso, se negamos essas emoções às crianças e o nosso sonho era que crescessem numa bolham, depois não nos queixemos de que não têm empatia…
Ora a empatia também se aprende. O problema é que, às vezes, pode ser mais fácil transformar a guerra num tabu. “É preciso empatizar com os pais”, nota Maria. “Imagine que uma pessoa viveu alguma situação de violência na sua vida. Esta pessoa vai ter muito mais dificuldade em confrontar-se com outras situações de violência, e automaticamente vai pensar, ‘eu não quero que o meu filho passe por isto’. Mas esquece que o seu filho não é a mesma pessoa, não teve a sua vida nem as suas experiências.”
Além disso, a família tem muitas vezes a tentação de funcionar como bolha, mas na escola as crianças falam de tudo, ouvem de tudo, apercebem-se de tudo. “Elas não vivem trancadas em casa. O mundo chega-lhes de outras maneiras. E portanto é útil relembrar que têm de ser os pais a traduzir este mundo. Não se trata aqui de impingir a conversa da guerra, mas criar espaço para que ela possa ser abordada e falada com naturalidade.”
Então, mas estou aqui a partir do princípio que todas as crianças vão ficar assustadíssimas ou interessadíssimas. E se a criança não fizer perguntas e não se mostrar interessada? “Se não perguntar, não insista”, defende Maria Palha. Mas há muitos tipos de silêncio. “Com os mais velhos, eles podem não saber como começar a falar do assunto ou não quererem preocupar os pais, mas podemos dizer qualquer coisa como ‘se quiseres falar eu estou aqui para ti’. Isto não é impingir, não é invasivo, mas cria espaço para o diálogo onde é possível falar de tudo.”
O que têm as guerras em comum
Tenho à minha frente uma pessoa que viu ‘ao vivo’ todos os horrores que um português normal só vê – felizmente – pela televisão. Não posso sair daqui sem lhe perguntar como é que uma pessoa que viveu tantas situações semelhantes lida com toda esta exposição diária à violência. “Estive em muitos palcos de guerra, em muitos contextos de enorme sofrimento, e aprendi que alguns tipos de cuidados emocionais e psicológicos não eram possíveis ter durante as missões.”
De que é que teve mais medo? “Tive muito em imensas ocasiões. Por exemplo, uma vez na Síria tivemos de negociar com um grupo armado. Mas muitas vezes quando experimentamos este nível de adrenalina o cérebro protege-nos e não é possível estarmos emocionais porque temos de sobreviver e o nosso instinto bloqueia-nos. Mais tarde, quando já temos acesso a essas emoções e nos apercebemos da situação, temos então de assimilar a experiência para que tudo não nos pareça apenas um sonho. Mas isso acontece em qualquer grupo de trabalho com contextos de adrenalina altos, também acontece com os médicos de urgências, por exemplo. A assimilação do que aconteceu vem sempre depois.”
Todas estas situações de guerra e catástrofe têm uma coisa em comum: todas juntam o melhor e o pior do ser humano. “Percebemos, por exemplo, como é possível ajudar o próximo quase com nada. Isto para mim foi uma aprendizagem muito grande que estes cenários me trouxeram. Há um lado muito zangado e sofrido que depois é transformado em algo bom como a resiliência. Vi isto em todos os cenários onde estive. Hoje, posso dizer que todo o ser humano tem isto: resiliência e generosidade.”
Não desvalorizar o sofrimento
O lado perverso da guerra para quem não a vive: estas imagens são tão poderosas que podemos esquecer-nos de outras coisas tão ou mais importantes que estão a acontecer. “De repente, a guerra da Ucrânia desapareceu”, nota Maria Palha. “E nem é preciso falar na guerra. Eu ainda tenho em consultório imensas pessoas com níveis de sofrimento psicológico elevado devido à covid, e é como se a pandemia nunca tivesse existido. O sofrimento não se restringe à guerra. Pode ser tão catastrófico estar em casa num divórcio complicado como estar na linha da frente.”
Ou seja, temos problemas que é urgente , mas pensamos ‘o meu drama comparado com uma guerra não é nada’… “Sim, é muito fácil isso acontecer, e vejo muito em consultório, nós desvalorizarmos o nosso sofrimento quando estamos em contacto com estas realidades. Esse é o primeiro caminho para adoecermos ainda mais. Quando alguma coisa na nossa saúde psicológica não está bem e pensamos logo a seguir ‘podia ser pior’, procurem de imediato ajuda.”
Portanto, outra lição: se uma preocupação começa a surgir, não desvalorizemos só porque há outras pessoas a sofrer. E muito menos vamos repeti-lo com os miúdos: ‘De que é que te queixas, tu pelo menos tens casa e comida, aqueles meninos não têm nada’…