
Se pensarmos que uma em cada três mulheres é vítima de violência, a ideia de que ela só existe entre os mais pobres perde força. Mas o que leva homens com uma educação esmerada, carreiras e vidas de sucesso, a revelarem-se verdadeiros monstros? "Há crianças maltratadas que nunca se tornam agressores e agressores que nunca foram maltratados", responde a psicóloga Raquel Cardoso, da Associação de Mulheres Contra a Violência. "Muitos destes agressores encaram mulher e filhos como objectos, mais uma propriedade. Continuamos a educar as nossas crianças para o sucesso a todo o custo e não para os afectos."
O tipo de violência muda quando o agressor tem uma posição social de maior relevo? "A violência física pode acontecer da mesma maneira que no meio sócio-económico mais desfavorecido", revela ainda. "Só não é tão visível porque, provavelmente, esses casos passam por consultórios médicos privados; se falamos de profissionais liberais, o problema do absentismo não é tão grande; o contexto habitacional pode passar por uma vivenda com jardim, onde os vizinhos não ouvem o que se passa. Há muito recurso à Psiquiatria e Psicologia, o acesso à medicação é mais fácil. O peso da vergonha é muito grande, o silêncio é mais profundo."
A excelente imagem social dos agressores também não ajuda. "A sensação de isolamento e de que ninguém vai acreditar nestas histórias, é maior. Há mulheres que dizem que os maridos parecem ter dupla personalidade: em casa agridem, fora de casa são pessoas muito agradáveis. Mas dir-se-ia que elas também têm uma dupla personalidade: aparentemente, têm uma vida fantástica, mas o seu dia a dia privado é destrutor da auto-estima, da identidade e capacidade de decisão. Muitas são profissionais com carreiras estáveis, que tomam decisões na sua vida profissional e, face à vida pessoal, vêem-se confrontadas com a falta de opções", observa Raquel Cardoso. Os modelos que explicam a violência doméstica culpabilizam a mulher. "Põem nela a responsabilidade de diminuir a tensão no agressor e identificar os sinais de tensão que levam a que ele expluda. Mas ela não consegue controlar o agressor, ele não lhe dá esse direito!"
COMO FUGIR DO INFERNO
Acabar com o sofrimento é um processo duro, que pode demorar anos a preparar. E não é um estatuto social elevado que torna mais fácil sair de casa e começar do zero. "Se nos lembrarmos que a maior parte das empresas são familiares, a independência financeira já é um problema à partida. Já acompanhámos mulheres que, de um dia para o outro, saíram de casa e montaram uma nova. Mas, às vezes, não é tanto a questão financeira que pesa", explica a psicóloga Raquel Cardoso.
A investigadora Maria Neto, da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, desenvolve um trabalho de doutoramento sobre mulheres que escaparam à violência doméstica. A palavra vítima não lhe parece indicada para caracterizar estas mulheres; prefere ‘sobrevivente’. "O ‘clique’ para saírem de casa varia. Algumas das mulheres que entrevistei chegam à conclusão de que nunca foram donas da própria vida; esta situação já começou, muitas vezes, no namoro e elas habituaram-se a viver assim. Depois, constatam que há mulheres com vidas diferentes e começam a pensar que talvez elas também possam mudar. Algumas deixam as suas terras e empregos, porque sabem que naquele contexto, não conseguirão reorganizar a vida. Acham, sobretudo, que a violência não lhes dá espaço para serem as mães que gostariam de ser. Desde o momento que entram em casa, vivem na ansiedade de tentar adivinhar com o que é que companheiro vai implicar, como vão proteger os filhos, evitar que vejam as agressões. Não têm tempo de qualidade para estar com eles."
Sair de casa com crianças é ainda mais dramático. "Uma das grandes dúvidas é se vão continuar a poder proporcionar aos filhos aquilo a que estão habituados", lembra Raquel Cardoso. "Podem até pensar ‘ele é bom pai’. Mas mesmo que os agressores não ajam directamente sobre as crianças, estão a prejudicá-las psicologicamente".
SAIR DE CASA ÀS ESCONDIDAS
Na maioria das vezes, a fuga tem de ser feita em sigilo, por medo de perseguições, destruições e ameaças morte. "É uma situação que necessita de um trabalho em rede: a escola tem de estar envolvida, bem como a Segurança Social", lembra Maria Neto. "Tem de ser feita sob grande sigilo: se souberem para onde a criança foi transferida, é mais fácil perseguir a mãe. As mulheres devem ter informação jurídica para que possam agir sem serem acusadas de rapto dos filhos. Muitas pensam que perdem o direito à residência, se saírem de casa, mas não é verdade, se for comprovado que foram vítimas de violência. Algumas das mulheres de classes mais elevadas com quem falei deixam como mensagem que as casas, o dinheiro, os maridos bonitos, não têm qualquer valor quando comparados com a liberdade."
PERFIL DE UM AGRESSOR
– Ele telefona-lhe constantemente para saber onde está
– Controlo dos horários; pedir justificações quando se atrasa
– Controlo de despesas; nega o acesso à conta conjunta, obrigando-a a pedir dinheiro
– Mexe-lhe na carteira, no telemóvel, acede à sua conta de e-mail
– Menospreza as suas competências e acções, mesmo à frente dos outros
– Culpa-a pelas atitudes e erros dele
– Não consegue combinar encontros com os amigos ou família
A violência no mundo
Portugal: Só no primeiro trimestre de 2008, 17 mulheres foram assassinadas pelos companheiros ou ex-companheiros e houve 11 tentativas de homicídio.
Espanha: 37 mortes de mulheres às mãos dos seus companheiros, este ano, até Agosto.
EUA: 22% de mulheres sofre abusos físicos. Entre 40% e 70% das mulheres assassinadas são-no pelos maridos e ex-companheiros.
Grã-Bretanha: 30% de mulheres já foram vítimas de violência física
Etiópia, Tanzânia, Peru e Bangladesh: Mais de 50% das mulheres refere ter sofrido violência física ou sexual.
Brasil: Crê-se que uma mulher seja espancada a cada 15 segundos, mais de 2 milhões por ano. Um estudo feito em S. Paulo refere que 60% das mulheres assassinadas foram mortas pelos companheiros.
Fontes: UNIFEM (Fundo de Desenvolvimento para as Mulheres das Nações Unidas), UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta)
MAUS TRATOS NO JET SET
Em Portugal, algumas figuras da sociedade falaram dos abusos de que, alegadamente, foram alvo por parte de companheiros e maridos.
Em Junho deste ano, Margarida Santana Lopes, irmã do ex-primeiro ministro, em entrevista ao Correio da Manhã, afirmou de ter sido agredida pelo ex-namorado no seu escritório e em casa. A relação durou ano e meio. "Ele sempre foi um bocado agressivo verbalmente", disse, salientando ainda a importância das vítimas fazerem queixa.
Já Catarina Fortunato de Almeida relatou no livro ‘Ferida de Amor’ as experiências de maus-tratos, alegadamente infligidos pelo ex-marido, José Maria Tallon, desde o namoro. "Ninguém denuncia o homem que ama, o pai dos filhos, de ânimo leve. Era um bater violento, verdadeiras tareias. Fui espancada", relatava.
MARGARIDA MARANTE
Contactos úteis:
Associação de Mulheres Contra a Violência: Tel. 21 380 21 65
APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima): 707 20 00 77;
www.apav.pt
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