Ana Luz, 39 anos, e Beatriz Ferreira, 51, fazem parte do grupo de mulheres do qual muito se tem falado ultimamente: o que opta por ter apenas um filho. As razões que levaram Ana a ter apenas um filho não diferem muito das de milhares de portuguesas da sua idade, estudou, viajou pelo mundo, namorou e quando a paixão se consolidou resolveu casar. E, como é habitual e esperado nos dias de hoje, gozou a vida a dois mais um pouco e só depois pensou em ter filhos. Como ambos eram trabalhadores a recibos verdes adiaram a decisão até um deles passar a efetivo no emprego. E assim foi, só que nesta altura já Ana estava com 34 anos e teve dificuldade em engravidar. “Ainda me candidatei a consultas de fertilidade no ‘público’ mas as listas de espera eram tão longas que começámos a poupar para irmos a uma clínica privada. Tive o Diogo há 2 anos e pensámos em ter outro quando ele tivesse uns 4, mas já desistimos. Como sou artesã, praticamente não tenho rendimento e o Zé tem levado cortes sucessivos no salário, por isso optámos por ficar por aqui, com grande pena minha.”
A história de Beatriz não é muito diferente da de Ana, só que, ao contrário desta, sempre quis ter apenas um filho. “Cresci numa casa onde se contava os tostões e os meus pais fizeram muitos sacrifícios para me pôr a estudar e é isso mesmo que eu pretendo fazer com a minha filha, que tem agora 11 anos. Quero ter dinheiro suficiente para poder investir numa boa educação, para podermos fazer viagens, para que ela veja o mundo. Não estou nada arrependida, vejo as notícias, vejo o meu recibo de ordenado ao fim do mês e sei que fiz a escolha certa. Não sei se conseguiria ter a mesma qualidade de vida se tivesse outro filho…”
CAMPEÃO EM FILHOS ÚNICOS
De acordo com um estudo realizado pelo ICS (Instituto de Ciências Sociais), 32% das mulheres portuguesas têm apenas um filho, a percentagem mais elevada da União Europeia. “É verdade que na Europa temos a proporção mais elevada de filhos únicos, mas ainda não somos um país de filhos únicos”, diz Vanessa Cunha, socióloga do ICS, especializada em Sociologia da Família e da Vida Quotidiana. “Quando olhamos para a descendência final das mulheres que nasceram nos anos 60 vemos que 32% teve apenas um filho, mas não nos podemos esquecer que 42% teve 2 ou mais. E é também de salientar que apenas 5% das portuguesas não tiveram filhos, a percentagem mais baixa da UE. Nos outros países, o número de mulheres sem filhos é bem maior.”
Para esta investigadora social, o facto de cada vez mais casais optarem por ter apenas um filho não tem a ver com uma, mas várias condicionantes, sendo que as razões económicas – estabilização financeira e profissional – pesam bastante. Os casais casam mais tarde e é esperado que a seguir a esse passo namorem e aproveitem o tempo a sós, viajem e estabilizem a carreira profissional e só depois planeiem os filhos. “Anteriormente, isso não acontecia, casar era abrir a porta à vinda dos filhos”, relembra Vanessa Cunha. E como se ‘empurra’ a maternidade para mais tarde, muitas vezes as famílias optam por ter apenas um filho, não porque não desejem ter um segundo, mas porque esperam vários anos para voltar a reunir condições económicas.
QUANDO É QUE MANDAM VIR O SEGUNDO?
Esta deve ser a pergunta mais ouvida pelos pais de filhos únicos, a pressão da sociedade é ainda de seguir a ‘norma’ do casalinho. Muitos têm esse desejo e concretizam-no, embora “o intervalo médio entre o primeiro e o segundo filho esteja a aumentar porque as pessoas não querem ter o primeiro filho à toa, quanto mais o segundo”. É uma decisão altamente condicionada por limitações económicas mas também biológicas – as mulheres têm mais dificuldade em engravidar – e porque às vezes parece já não fazer sentido ter outro filho quando o primeiro já está tão crescido que já não vai haver interação entre irmãos. Ou seja, como não há lugares suficientes nas creches públicas, poucas e dispersas, e as privadas são muito dispendiosas, muitos casais só pensam em ter o segundo filho quando o primeiro vai para a escola pública, o que permite libertar um pouco o orçamento familiar para fazer um novo investimento.
Então, quem consegue realizar o desejo de ter mais que um filho? São sobretudo os casais de profissionais mais qualificados. Apesar de também terem filhos tarde, não precisam de tanto tempo para voltar a reunir as condições económicas para um segundo ou até um terceiro. Há custos que conseguem suportar mais facilmente e é normal que tenham uma rede familiar que se consegue articular “para ir buscar e levar os filhos à escola, enquanto os que têm menor escolaridade têm menos posses e perdem muito tempo em transportes públicos e/ou os avós estão longe e não podem ajudar”.
UM PASSO À FRENTE E DOIS ATRÁS
As políticas de apoio à natalidade em Portugal pouco ou nada têm feito para aumentar a taxa de natalidade e o índice de fecundidade, que é de 1,3 filhos/mulher. No nosso país, é fundamental que os dois membros do casal tenham acesso a trabalho estável para que pensem em alargar a família. E ao contrário do que se passava há uns anos, em que o desemprego de um deles era uma condição temporária, agora o desemprego é visto quase como uma fatalidade. “Os poucos apoios que eram dados às famílias – abonos, subsídios – foram retirados, e as pessoas estavam a contar com eles, por muito parcos que fossem sempre ajudavam na compra de fraldas. E este dar e retirar faz com que se crie um clima de grande insegurança. Num ano são os abonos, depois são os tetos no abatimento de despesas de educação no IRS que reduzem… Este tipo de políticas é contraproducente. Tem-se provado que é nos países onde as políticas natalistas se mantêm, mesmo em situações de crise, que se mantém ou aumenta o número de nascimentos. Os países nórdicos, por exemplo, passaram por uma grande crise económica e de emprego nos anos 90, mas decidiram manter as ‘almofadas’ políticas. Por cá, a mensagem que passa é ‘meus senhores, estamos em tempo de vacas magras portanto vamos retirar-lhes subsídios, rendimentos e abonos, agora estão por vossa conta’. Quem é que quer ter filhos neste clima?”, questiona ainda Vanessa Cunha.
SUCESSO A NORTE
Os países que têm um índice de fecundidade acima de 1,7-2.0 filhos/mulher são aqueles que se estão a renovar, como é o caso dos países escandinavos. O porquê do sucesso é fácil de enumerar: rede grande e quase gratuita de cuidados infantis (creches e escolas), facilidade da mulher em regressar ao trabalho após a licença de maternidade e incentivo à participação dos homens na educação dos seus filhos e na divisão de tarefas domésticas.
Na Suécia, por exemplo, ambos os pais têm licenças de parentalidade pagas, que em conjunto perfazem o total de 16 meses (até aos 13 meses ganham cerca de 80% do ordenado, tendo como teto máximo E53.000, o restante tempo é pago a E21/dia); o Estado garante um lugar na creche para todas as crianças, e estas estão abertas das 6h30 até 18h30, com mensalidades correspondentes a 3% do salário dos pais (máximo é E150). E os benefícios não se ficam por aqui: todas as famílias numerosas têm direito a cerca de E125 mensais por criança.
Vanessa Cunha não se cansa de sublinhar a importância da partilha de responsabilidades com o pai para que seja colocada a questão de um segundo filho e enumera os nossos avanços nesse campo. “Aqui, em Portugal, em 2009 deixámos de ter licença de maternidade para passar a ser ‘parentalidade’. Também temos o ‘daddy’s month’, o mês do pai, que só ele pode gozar e que corresponde ao 6.º mês de vida do bebé, quando a mãe regressa ao trabalho. A partilha de responsabilidades é muito positiva, pois reforça os laços familiares e os homens ficam com a perceção da necessidade da partilha, quer dos cuidados com o bebé quer das tarefas domésticas, porque se apercebem que há muitas coisas que têm de ser feitas e que dá muito trabalho. Fizemos um estudo aqui, no ICS, e verificámos que nos locais onde se facilita aos pais o mês de licença estes tiram-no sem qualquer problema. É preciso é que os empregadores estejam recetivos, o que nem sempre acontece.”
O MAU EXEMPLO
E qual é? Façam rufar os tambores… A Alemanha. Curiosamente, este país não tem conseguido políticas natalistas com resultados positivos. Todos os anos são injetados milhões de euros nos apoios às famílias com filhos, em benefícios aos pais que ficam em casa a tomar conta dos recém-nascidos, em licenças pagas, mas apesar de todos estes esforços nada parece alterar o índice de fecundidade de 1,4 filhos/mulher naquele país. Um estudo do Instituto Alemão para a Pesquisa Populacional tentou encontrar as razões por detrás do falhanço e estas revelam-se surpreendentes: para um número considerável de alemães ter filhos é menos importante que ter uma carreira, hobbies e amigos. As crianças, revela este estudo, “já não representam um papel fundamental na vida de muitos alemães e estes acreditam que é difícil conciliar a vida familiar e profissional”. A socióloga do ICS corrobora o estudo: “As mulheres alemãs sentem que têm de optar: ou têm carreira ou têm filhos, isto porque não há uma rede de cuidados infantis que lhes facilite o regresso ao trabalho depois da licença, nem têm uma rede familiar que as apoie como aqui em Portugal, não têm essa tradição.”
A QUEDA DE 2 MITOS
Durante muitos anos houve dois ‘papões’ que eram apontados como sendo os culpados pela baixa natalidade no nosso país. Eram eles a pílula anticoncecional e a mulher que desejava ter uma carreira profissional. E o que as pesquisas demonstram é que a pílula não veio contrariar as intenções dos casais terem filhos, veio dar resposta a uma vontade de ter menos para lhes dar melhores condições de vida. Em relação ao trabalho, os grandes inquéritos nacionais feitos pelo ICS vieram demonstrar que é precisamente o trabalho (estável) que dá à mulher a possibilidade de poder ter um filho e são as mulheres com mais qualificações aquelas que conseguem ter dois filhos ou mais.
FUTURO EM FUGA
Se a entrada maciça de pessoas em idade fértil no nosso país em meados dos anos 90 e princípio do milénio fez com que a nossa taxa de natalidade se estabilizasse, nos dias que correm isso já não acontece. Estes imigrantes, ou já se foram embora, ou já não têm idade de ter filhos e o que está acontecer é precisamente o oposto do que se passou naquela altura. “A saída em massa de pessoas em idade para ter filhos, os novos emigrantes portugueses, vai tornar o nosso país ainda mais envelhecido. Ainda por cima é o pessoal qualificado, aqueles que com boas condições de vida teriam 2 ou mais filhos”, lamenta Vanessa Cunha. “Quando decidirem ter filhos, esta geração vai tê-los nos países que os acolhem e vão engrossar o índice de fecundidade do país para onde emigraram…” E Portugal, ficará um país de velhos? “Se nada for feito para contrariar esta tendência…”
FILHOS ÚNICOS (FAMOSOS) CONFESSAM-SE:
Herman José – humorista: “Para mim, ter sido filho único pode ter sido uma fatalidade – estamos sujeitos a horas de solidão forçada – mas foi também ela que me obrigou a puxar pela imaginação e a transformar-me num criador quase delirante. Tivesse eu uma máquina do tempo, e apesar de tudo, convencia os mais pais a fabricarem mais dois irmãos. Ter a responsabilidade de ser filho único é claustrofóbico e pouco saudável.“
Andreia Rodrigues – apresentadora: “Sempre quis ter um irmão. Talvez por isso fosse tão agarrada aos amigos. Aprendi a brincar sozinha mas gostava de ter tido com quem fazer uma tenda à noite e ligar a lanterna. É bom ter alguém com quem partilhar momentos e emoções, com quem dividir a atenção dos pais sempre. Quero mais do que um filho, acho que é importante.”
Simão Morgado – nadador: “Não me recordo se pedia um irmão, lembro-me que conseguia entreter-me sozinho sem problemas. Gostava muito de Legos, de montar e desmontar brinquedos, e era essa a minha grande distração. Felizmente cresci num local e numa altura em que brincar na rua com os amigos era seguro e habitual. Mas gostava de ter uma família grande, uma casa cheia num caos organizado.”
Joaquim Monchique – ator: “Nunca me senti sozinho, porque passava os dias a brincar na rua com amigos. Mas é odiável ser filho único. É tudo afunilado para nós, a atenção, as expectativas. Um filho único NUNCA pode desligar o telemóvel, especialmente quando os pais e avós estão a envelhecer. A quem tem irmãos isso não acontece, há sempre um irmão que atende.”
Carolina Torres – apresentadora: “Jogar ao ‘Quem é Quem’ sozinho é triste. Passei a infância e adolescência a pedir um irmão, mas acabei por me habituar e encontrar brincadeiras que funcionavam a um. Quando os primos iam lá a casa, tirava a barriga de misérias. A menos que algo aconteça, espero ter não um, mas dois pirralhos.”