Acordei às duas da manha mas na verdade é como se não tivesse dormido, tal foi o frio que passámos no Camping Laguna Amarga (o nome já devia fazer prever isto…). O termómetro marcava 4ºC negativos. Vesti rapidamente 6 camadas de camisolas e 3 linhas de calças – praticamente toda a roupa de que dispunha. “Vai ser difícil e vai estar frio”, tinham-me avisado. E eu julgava que estava preparada para o desafio.
No meu grupo, ninguém se quis aventurar para ver o nascer do sol nas Torres… mas, por sorte, encontrei nas únicas 3 tendas adjacentes à nossa quem o quisesse fazer pelo que nos despachámos o mais rapidamente possível – como se isso nos pudesse aquecer.
Foi a noite mais fria de sempre, a anteceder o trilho mais difícil da minha vida. Começámos a nossa caminhada pelas 3h da manhã, perdendo 30 preciosos minutos a encontrar na escuridão de uma noite de lua nova e praticamente sem nuvens o início do caminho.
De “bastões de caminhada” nas mãos avanço na liderança do grupo, não conseguindo obviamente depois manter o ritmo. Ao fim de relativamente pouco tempo começam as subidas, a minha asma de esforço a limitar-me fisicamente. Talvez uns 4Kms depois tentamos mentalizar-nos que o nosso objectivo primordial – assistir ao nascer do sol – estava perdido, fruto do nosso engano. Ainda assim continuamos a caminhar, o grupo cada vez menos coeso que nestas caminhadas – no fim de contas – cada um tem de fazer a sua jornada a seu ritmo.
Nestas longas horas de caminhada solitária, em que para mim a noite foi amiga porque nem me permitiu vislumbrar que o caminho era interminável, pensamos em tudo. Pensamos no agora, no antes e no depois. Nos que já passaram por nós, nos que já partiram, nos que nunca nos abandonaram e naqueles que estão para chegar. Ao longo de 11 Km chorei de alegria, de gratidão e de tristeza também. Tive dores horríveis num joelho a cada descida, precisamente quando essas eram as únicas alturas em que poderia “descansar”. Passei por terrenos de terra, de gravilha, riachos e subi uma a uma pedras com 1/3 do meu tamanho.
Ocorreu-me por várias vezes abandonar no caminho a minha mochila de 50 litros (“cheia” com um saco-cama de que não iria necessitar – não iria ter tempo para abrandar, e muito menos para chegar antes da hora e passar frio -, com camadas de roupa que fui retirando e comida). Eram cerca de 4Kg que não me estavam a ajudar. E, claro, ninguém ia querer “roubar” peso adicional.
A cerca de 2Kms de distância, o Refúgio Chileno foi como uma tábua de salvação. Entrei furtivamente, “”pedi emprestado”” um café (de entre os preparados para a manhã seguinte) e duas metades de pêssego em calda e encontrei uma divisória aquecida no fundo de um corredor onde finalmente deixei tudo para trás. Miraculosamente restabelecida em menos de 3 minutos, voltei nesse momento a acreditar que era possível.
A dificuldade aumentou drasticamente e estes 2Km pareceram 20. Ao perto, várias luzes de lanternas em andamento pareciam pirilampos perdidos no escuro e, ao longe, as tonalidades azuis e rosadas do céu lembraram que estávamos a entrar na Blue Hour (a hora que antecede o nascer do sol). O tempo esgotava-se e quando finalmente as árvores se abrem e eu achava que teria chegado ao final, surge outra montanha. Desacreditei-me de novo e tentei consciencializar-me de que ficaria por aqui – nessa posição e se continuasse a andar, nada veria, nem mesmo à distância. Faltavam menos de 40 minutos para as 7:45h e não tinha parado até então. Mas, e não me recordando o porquê, continuei a andar.
Na recta final tive de me auxiliar não apenas dos bastões como também das mãos, uma subida a pulso muitas vezes verbalizada em sons (não palavras) praticamente animais de quem não aguentava muito mais. Pensei muitas vezes que não conseguiria, mas nunca pensei em desistir. Consegui chegar ao topo do miradouro das Torres, mesmo com a meia hora inicial perdida e dos 20 minutos de escalada extra que fiz porque, na ânsia de chegar, não vi um dos últimos marcadores. Mas cheguei. Do topo da montanha apercebo-me espantada que estou na companhia de apenas mais uma pessoa, e que todos aqueles que conseguiram chegar se encontravam bem mais abaixo de mim, junto ao lago. Mas já nada importava… tinha conseguido, a menos de 5 minutos do amanhecer.
Só quem fez este percurso poderá perceber o esforço de superação que este trilho envolve, nomeadamente durante a noite e quando se começa mais longe que o previsto, com atrasos e “enganos” suplementares. Foi um esforço de superação que não conhecia em mim, e quando finalmente me sentei as minhas lágrimas foram poucas para secar as labaredas de fogo que surgiram projectadas por entre as Torres del Paine.