Foi um diálogo entre a cidade e o campo: eu com uma estante de livros atrás, Joana e Mário enquadrados por uma moldura estonteante de verde a recortar o céu azul. Sublinho a diferença, com uma ponta de inveja, confesso. “Também gosto de uma boa estante com livros, diz Joana, 42 anos, que mais tarde haveria de confessar que quando saem de Aljezur para vir a Lisboa aproveitam para colocar a agenda cultural em dia, “vitamina C, como lhe chamo.”
Ao colo de Joana dorme o mais novo membro da família, Artur, com poucos meses. Os pais brincam a dizer que, dos três filhos – ainda há Suri, 12, e Gaia, 8 –, foi o único “made in Quinta Alma” e por isso é assim, tranquilo.
Tranquilidade não é, no entanto, o que propriamente descreve o dia a dia do casal. Disso fui eu testemunha ao tentar combinar esta entrevista. Joana e Mário vivem o sonho mas ninguém alcança sonhos a dormir, pelo menos aqueles que fazem sentido. O projeto de vida dá trabalho e é “viciante”, diz Mário, 48. “Está-se bem, no meio da Natureza, a vida é boa, é tudo a puxar para fazer, para melhorar. Há até um certo sentido de urgência, porque há questões práticas a serem resolvidas, e depois há também aquela coisa de plantar o quanto antes para crescer o quanto antes. Mas temos percebido que também é preciso descansar, até para apreciar.”
“Tínhamos visões similares: viver na natureza, com a natureza, para a natureza, mas também era importante a partilha com os outros.”
Joana e Mário não mudaram de vida de um dia para o outro. Foi uma decisão que foi ganhando forma ao longo de mais ou menos dois anos. “O que acabou por nos fazer vir para aqui foi, para mim, a idade – já tinha quase 40 – e pensar no que fazia sentido para a segunda metade da vida. Se continuar no registo empresarial, sempre a correr, ou ganhar um bocadinho mais de qualidade de vida”, recorda Mário, que passou por empresas como a Sonae e a McCann. Também se cruzou com o facto de termos filhos. A Suri tinha 3 e a Gaia 1. Questionávamos o que lhes queríamos dar, valores, experiências… Claro que a cidade tem um conjunto de coisas muito interessantes, mas a Natureza dá-lhes outras ferramentas e sensibilidade que parece que vão ser importantes para o futuro, e já para o presente: a consciência e o contacto com os ciclos da vida, com a noite e com o dia, a morte e a vida.”
Não havia uma ligação especial ao campo, à terra, tirando uma ou outra experiência de férias. O que há é uma forte conexão com a Natureza que sempre os uniu e que há oito anos se materializa de forma muito concreta na Quinta Alma, um glamping que é tão mais do que isso, pois não se esgota na sua vertente turística. “Queríamos um espaço onde pudéssemos partilhar o sonho, a inspiração, a conexão, é uma coisa que entrança com a pedagogia, a experimentação”, conta Joana, que na sua outra vida passou pelos eventos e esteve muitos anos ligada à Gardénia, em pleno Chiado. “Na Natureza consigo respirar, consigo sentir-me um ser humano – às vezes somos tão acelerados, fazemos tanta coisa e depois sentimos muito pouco”
A forte consciência ambiental tem sido a estrela guia neste projeto. “Há uma urgência em nós de corrigirmos muitas das coisas que estão a ser feitas em termos de como é tratado o ambiente e as consequências que isso tem. Já não é só não fazer mal, é corrigir”, conta Mário, que se orgulha, algo divertido, de ter inventado uma máquina de reciclagem, muito antes de rumar à Costa Vicentina.
Mas Joana faz questão de salvaguardar que não é preciso ir para o campo para fazer o bem ambiental. “Agora não temos todos que desatar a sair da cidade. É preciso boas pessoas e boa formação em todo o lado.”
“Aqui, as pessoas gostam de cuidar umas das outras, sentimos que gostavam de cuidar de nós. Fomos muito bem acolhidos.”
Assim como Joana e Mário não tinham uma ligação ancestral à terra, também nada os ligava especialmente a Aljezur. Sim, já lá tinham passado férias, mas não juntos, curiosamente. A proximidade do mar – e o facto de terem ali amigos – acabou por ser decisivo na hora de escolher. Alugaram uma casa enquanto procuravam um terreno para acomodar a sua nova vida. “Tivemos a sorte de encontrar um espaço muito bonito, com umas boas condições geográficas, está muito próximo do mar sem estar em cima dele, onde é mais difícil edificar e fazer coisas. Temos espaço, são 50 hectares, já é uma coisa grande… Quer dizer, nós não temos, os 50 hectares é que nos têm a nós, nós trabalhamos para eles.”
Dizem que o maior desafio de viver em Aljezur é o acesso à saúde e à educação. “O resto é espetacular, na verdade, há uma dimensão humana muito interessante de nós sairmos de uma cidade e virmos para um meio menos anónimo. Para as pessoas que vêm com uma atitude citadina arrogante, Mário deixa uma dica: “quem quiser fazer isto, este processo, que venha com humildade, com disponibilidade para aprender, para conhecer os locais, especialmente os mais idosos, que têm muito para ensinar. Se viermos com essa humildade e disponibilidade é muito bonito. Geramos muitas amizades, aprendemos muito e muito mais rapidamente.”
Joana e Mário chegaram a Aljezur em 2015, em 2016 mudaram-se para a Quinta e em 2017 abriram-na ao público. “Tínhamos consciência de que vir para um espaço rural destes, especialmente com estas características já de montanha, no início da serra de Monchique, para ter uma vida economicamente viável temos de valorizar o espaço, pô-lo a render, e é difícil fazer isto sem ser com turismo. A agricultura aqui é muito difícil, de forma a que seja sustentável e ecológica. Fazer monoculturas é relativamente fácil, mas não é esse o nosso caminho, que é o oposto, o da regeneração”, conta Mário.
Joana chama-lhe “turismo pedagógico”, aquele que acontece na Quinta Alma, que possui estruturas de construção natural, tendas e cabanas em madeira, todas com luz e casa de banho, um luxo num espaço completamente off grid, ou seja sem ligação a qualquer companhia. “A eletricidade é fácil de resolver. Despeja-se dinheiro para cima, compra-se mais painéis e baterias, arranja-se um eletricista e está resolvido. A água não, não dá para despejar dinheiro para cima da água, ou existe ou não existe”, sublinha Mário. “Faz-se furos, temos fontes de água potáveis à superfície, que é uma grande riqueza, mas temos de nos redesenhar e reinventar – as casas de banho, por exemplo, são secas, com recurso à compostagem. A experiência que as pessoas têm quando cá vêm é de uma grande consciencialização dos recursos.” E as mentalidades estão gradualmente a mudar: “há muitas pessoas que ficam contentes nos dias em que chuvisca, em vezes de ficarem chateadas porque não podem ir à praia”.
E quem os visita? “Temos um bocadinho de tudo, casais, famílias – que este ano são em menor número por causa do aumento do custo de vida -, indivíduos que vêm sozinhos, curiosamente mais mulheres que homens”, responde Mário. Com dois filhos adolescentes, não posso deixar de perguntar como sobrevivem os teens sem wifi (apenas disponível na ‘casa’ central)? Sou apanhada desprevenida pela resposta de Joana. “A piada da coisa é que os pais dizem sempre, a brincar, ‘olhem que aqui não têm wifi’, mas depois são eles que ficam aflitos. Os miúdos estão entretidos e os pais é que estão à toa.”
A maioria dos turistas são portugueses, muitos descobriram a Quinta na altura da pandemia, uns para fugirem temporariamente ao confinamento, outros à procura de inspiração para também eles mudarem de vida. “Quando levantaram as restrições da pandemia, voltaram os estrangeiros e são essencialmente alemães, holandeses, belgas, italianos e espanhóis”, diz Mário. Este ano ainda se juntaram os nómadas digitais: “Já tivemos condições de alojamento – cabanas de madeira – para eles passarem cá o inverno. Até então só tínhamos tendas e no inverno desmontamo-las todas.”
“É uma forma nova de fazer turismo, irmos para um sítio como voluntários, para aprender e contribuir. As pessoas sentem-se mais úteis do que ficar de papo para o ar.”
São várias as dimensões da Quinta Alma. De junho até setembro, privilegia-se a vertente Bed & Breakfast; entre meados de setembro e meados de novembro e a partir de meados de março, há os retiros de grupo e eventos empresariais; de meados de novembro a meados de março, a Quinta fecha para manutenção. E se há trabalho a fazer! “Só a floresta é uma coisa impressionante. Um dos grandes desafios é a ameaça real de fogo. Quando chegámos aqui fresquinhos, a malta mais velha, mais experiente, disse ‘isto não é SE houver fogo, é QUANDO’. Dizem que uma vez na vida todos lidam com isso. Felizmente aqui ainda não chegou e espero que sejamos a exceção”, diz Joana. “Isto de ter fé não dá só para levantar uma oração, tem que se pegar nas enxadas, no senhor que limpa o terreno, nas máquinas, plantar espécies autóctones que estão preparadas para conter fogos…”
Mário confirma o esforço: “Temos feito esse trabalho. Enquanto estamos aqui a conversar, temos duas pessoas a ajudar na floresta de eucaliptos, nós tiramos mas eles voltam, estamos a cortar pela terceira vez.” Joana e Mário herdaram muitos hectares de eucaliptal e pinhal e o projeto passa por cultivar outras espécie de árvores e plantas locais, para criar um ecossistema que seja um exemplo de regeneração ambiental. Em oito anos de Quinta já se sentem grandes mudanças no clima, com janeiros quentes e secos e uma maior amplitude térmica do dia para a noite. “No inverno fazemos esta parte preventiva, de limpeza, aceiros, acessos, e temos estas estruturas de construção natural que exigem mais manutenção. A madeira tem de ser tratada, trocada às vezes, as tendas são desenhas por nós, têm de ser refeitas e arranjadas. Também gostamos de ter bom gosto e de dar o nosso cunho pessoal – não é só as pessoas estarem no meio da floresta ao abandono, é estarem com o máximo conforto.
A Alma com Alma é outra vertente da Quinta que tem a ver com o lado experimental do projeto de regeneração ambiental. Joana e Mário implementaram um projeto de permacultura, com base nos princípios de agroecologia, e, duas vezes por ano, dão o Permaculture Design Course, adaptado à realidade mediterrânica em transformação. “Percebemos que esta parte regenerativa, a parte da permacultura, a parte pedagógica da experimentação laboratorial, têm uma enorme capacidade de atrair pessoas, que querem ajudar, participar e aprender. Percebemos que havia aqui um fit relativamente bom para podermos criar uma Associação para estas pessoas se juntarem a nós, pessoas que vêm não só para fazer os cursos de permacultura mas também para participar no dia a dia, porque na verdade a aprendizagem faz-se na prática.” A Alma com Alma reforça, assim, a vertente pedagógica e associativa do projeto. “Temos muitos voluntários que vêm por via da Associação, que acabam por ajudar em várias frentes desta quinta. Temos pessoas que vêm para apanhar medronho, para aprender a fazer compota de medronho, é um outro género de turismo.”
E há uma geração disposta a descobrir um outro modo de vida. “Ali, entre os 20 e os trinta e pouco, têm necessidade de se sentirem úteis. Estão insatisfeitos e vêm muito nessa busca, de como é viver numa vila, numa aldeia. Recebemos muitos estagiários saídos da faculdade e eles também participam, contribuem, trocam ideias e aprendem muito.”
A Associação veio oficializar uma ligação que já decorria naturalmente da experiência na Quinta, diz Joana. “Há pessoas que passaram por cá e continuam a escrever-nos, a mostrar os projetos onde estão, era uma ligação só de coração e agora é um laço oficial. É muito bonito.”
Por muito santo que seja, Artur dá sinais de impaciência: está na hora de mamar. Fechamos a conversa com uma constatação algo curiosa, visto que vem de alguém que fugiu da cidade para o campo, como Mário: “Estamos sempre rodeados de pessoas. Viemos de Lisboa onde estávamos rodeados de pessoas e continuamos rodeados de pessoas – mas na cidade talvez estivéssemos mais sozinhos.”