Os anos 60 foram uma época de ouro da costura em Portugal. Havia as grandes modistas, como eram designadas as costureiras que, nos seus ateliers, faziam trabalhos mais sofisticados, muitas vezes a partir de padrões de alta-costura francesa: nomes como Candidinha, Maria Teresa Mimoso, Laurinda Farmhouse ou Anna Maravilhas, que criavam as roupas das senhoras das classes mais altas e fazem parte, de pleno direito, da história da moda em Portugal. Mas havia também centenas, de costureiras de bairro que faziam a roupa de quem não podia pagar uma grande modista.

E ficava-se bem vestida: os tecidos podiam não ser tão bons nem tão caros, mas as mãos que os trabalhavam sabiam o que estavam a fazer porque, na maioria dos casos, tinham décadas de experiência depois de terem começado como aprendizas na adolescência: a apanhar alfinetes, a expressão vem daí.

O processo era sempre o mesmo: folheava-se uma revista de moda para escolher o vestido, fato, casaco, que se queria fazer, ia-se a uma loja de tecidos comprar o material (dizia-se para o que era e eles sabiam aconselhar a quantidade necessária), ia-se à costureira com a foto da revista e o tecido, tiravam-se as medidas, faziam-se duas provas e tínhamos um modelito novo a estrear, feito à nossa medida.

Se engordássemos ou perdêssemos peso, voltávamos lá para ajustar (as costuras tinham sempre folga para isso). A roupa durava anos, usava-se enquanto estivesse boa, ia-se transformando para atualizar, passava-se para as filhas, primas, irmãs mais novas…

Uma forma de vestir mais ecológica, que nestes tempos de urgência ambiental começa a fazer sentido recuperar. Quase toda a gente tinha uma máquina de costura em casa: as pessoas com menos recursos usavam-na elas próprias, e nas classes média e alta as famílias tinham uma costureira que ia lá a casa uma vez por semana fazer o que fosse preciso: das roupas dos filhos (geralmente todas a condizer) aos cortinados da sala, passando pelos pequenos e grandes arranjos da roupa de toda a família. E numa emergência, toda a gente sabia pregar um botão ou ‘dar um ponto’ numa bainha descosida: ou tinha uma avó que o fazia na perfeição.

PRONTO A VESTIR… E A COSER

Com a ajuda de uma costureira podemos arranjar, transformare prolongar a vida da nossa roupa, o queé mais ecológico.

Não foi obviamente de um dia para o outro, mas quando demos por isso tinha deixado de haver modistas e costureiras. Ainda antes de aparecerem as grandes cadeias de fast fashion, começaram a surgir cada vez mais lojas de pronto a vestir, algumas com grandes marcas e outras mais acessíveis.

A vida acelerou e deixámos de ter tempo (ou paciência) para esperar semanas até poder estrear uma peça de roupa – e já não era preciso, porque havia aquela loja com coisas tão giras que podíamos provar, comprar e começar a usar em menos de 10 minutos. Mas o que é feito para servir a muitos raramente assenta perfeitamente a todos e as lojas tiveram de começar a assegurar ajustes e arranjos para peças acabadas de comprar. E as roupas que estavam lá em casa a precisar de um arranjo, que ninguém sabia ou podia fazer? Estavam reunidas as condições para o regresso das costureiras.

As Yellow Metric (ex Retoucherie de Manuela) foram pioneiras nesta área, em 1997, e têm 10 lojas. César Vidal, um dos proprietários, diz que o negócio tem corrido bem. “Mas a pandemia afetou-nos bastante porque as nossas lojas são sobretudo em centros comerciais. Com o confinamento estivemos 8 meses fechados. Quando reabrimos, havia uma fila que dava quase a volta ao shopping. Os clientes disseram-nos que andavam com a roupa na mala do carro, à espera…” Na Yellow Metric é possível fazer peças por medida e recriações criativas, mas não é o seu foco. “Estamos nos centros comerciais justamente porque a pessoa vai a uma loja, compra uma peça de roupa, vai à nossa loja deixar a peça, vai tomar um café, dar uma volta, e já leva a peça arranjada para casa.”

Têm três prazos: 1 hora, para bainhas ou troca de um fecho, salvaguardando o volume de trabalho no momento; no próprio dia, se o trabalho for apertar lados, refazer um cós e gancho de calças, fazer pinças numa camisa; e 24 horas, para trabalhos mais complicados, como arranjos num casaco que implicam desmanchar o forro. “Temos costureiras que fazem tudo menos arranjos em casacos, temos apenas uma que os faz… já começa a haver degraus das capacidades das próprias costureiras.”

A dificuldade de arranjar quem costure é uma das preocupações de César Vidal. “Não há uma renovação de costureiras em Portugal. Temos sempre a sensação de que costureiras têm mais idade e a verdade é que as jovens costureiras tiram um curso de modelagem, fazem aquela formação profissional, mas depois não têm vontade de continuar. É um problema que nos preocupa imenso, já pensei em fazer uma parceria com o Estado para fazer uma escola. Nós até já deixámos de lhes chamar costureiras, chamamos-lhe consultoras de moda, porque há um certo estigma da costura como profissão que não é chamativa. Mas para mim costurar é uma arte.”

A ARTE DA COSTURA

Branca de Oliveira, 56 anos e costureira formada ‘à antiga’ num atelier, não podia estar mais de acordo com essa vertente artística da costura, que sempre foi a sua paixão. O seu percurso começou… aos 5 anos, “quando cortei umas calças do meu pai para fazer vestidos para a boneca”. (risos) Aos 17 anos deixou de estudar e foi aprender costura numa modista de São João da Pesqueira, sua terra natal. Trabalhou lá até aos 24 anos e mais tarde veio para Lisboa, para o departamento de costura do Instituto Português de Oncologia, onde fazia as fardas das enfermeiras. “Quando esse departamento foi extinto, fui para a Boutique Ferrari na avenida de Roma fazer os arranjos e há 6 anos abri o meu atelier na rua Pedro Ivo.” Uma oportunidade que decidiu criar quando percebeu que não havia quem fizesse arranjos mais complicados – a tal falta de costureiras, mais uma vez…

“Na minha geração há muito poucas que tenham aprendido este ofício, preferiam ir estudar ou iam para outro ramo, porque achavam a costura um stresse, um cansaço, não gostavam. E é verdade que, para trabalhar em costura tem de se gostar.” Branca faz sobretudo arranjos porque, como trabalha sozinha, não consegue fazer tantas peças confecionadas por medida como gostaria, mas ultimamente tem muitas clientes mais novas a bater à porta porque não conseguem encontrar os fatos que procuram para os casamentos. Agora o modelo desejado já não lhe chega numa página arrancada de uma revista. “Trazem no telemóvel (risos), depois mandam-me por WhatsApp e eu tiro daí.” Mas os tecidos raramente são comprados na internet. “As minhas clientes vão mesmo às lojas, às poucas que ainda não fecharam, porque gostam de ver o tecido ao vivo antes de o comprar.”

Se conseguisse estar só com uma peça de seguida, a fazer os moldes, cortar, provar, montar, coser e tornar a provar, ficaria pronta em cerca de 3 dias. Mas como tem os arranjos e outros pequenos trabalhos, que são indispensáveis para assegurar as despesas mensais do atelier, para um trabalho de confeção por medida precisa de ter 3 meses de antecedência para se organizar. Mas quando se trata de uma ocasião especial, as clientes, mesmo as mais novas, não se importam de planear com essa antecedência para terem a certeza de ficar com um vestido que lhes assenta como uma luva e é absolutamente original.

UMA COSTUREIRA EM CASA

Já não ficam lá a coser na máquina da família como antigamente, mas as costureiras da Dedalmania podem ir a casa buscar a roupa que houver para arranjar, marcar na hora e trazê-la de volta assim que estiver pronta. A empresa já tem mais de 20 anos e surgiu a partir de uma necessidade sentida pelos seus proprietários, Alexandre e Rute Trindade.

“Na altura, não conseguíamos encontrar pessoas capazes de tratar da nossa roupa. Eu e a minha mulher constituímos esta sociedade com o objetivo de ter uma loja de costura e foi um êxito imediato. Além da costura ao balcão, digamos assim, para fazer os arranjos, também fazemos as emendas e costura das lojas de roupa. Trabalhamos com as grandes marcas de Lisboa e arredores, como Carolina Herrera, Hugo Boss, Prada, Versace… fazemos as emendas de que essas marcas carecem para os seus clientes. Temos também 3 lojas no centro de Lisboa, que foram crescendo com o movimento. E o serviço ao domicílio, muito prático, sobretudo nestes tempos de confinamento.”

Na Dedalmania o foco é igualmente nos arranjos e não na confeção por medida, “mas se a pessoa quiser e estiver disposta a pagar o serviço com o custo correspondente, fazemos.” Também aqui se luta para arranjar quem saiba do ofício de costura, por isso investem na formação. “A profissão tem uma idade média relativamente elevada, mas agrada a muitas jovens também. E nós apostamos muito em atrair jovens que têm alguma indefinição profissional, porque não aprenderam uma profissão e têm um gosto pela moda, pela roupa e por esta área. E está a funcionar muito bem, temos alguns estagiários na empresa, com idades relativamente jovens, mas não só. Há muitas pessoas interessadas em aprender a costurar, não há é muitas disponíveis que já saibam costurar. Mas a imigração tem suprido muito as necessidades. Na nossa empresa trabalham neste momento umas 10 nacionalidades diferentes. E já foram 15, de países de todos os continentes.”

REDESCOBRIR O GOSTO PELA COSTURA

Há cada vez mais pessoas a aprender a costurar, mas continua a haver falta de costureiras profissionais.

A emoção de pegar num pedaço de tecido e, com o trabalho das suas próprias mãos, ver nascer uma peça de roupa é o que procuram as alunas da Companhia das Agulhas, em Lisboa, uma das dezenas de escolas de costura espalhadas por todo o país. Foi fundada em 2015 por Sofia Craveiro, uma ex-engenheira do ambiente com 43 anos que sempre teve gosto por todas estas artes das agulhas.

“Na altura não havia, em Lisboa, uma escola que ensinasse, no mesmo espaço, costura, tricot, crochet e bordado, quem queria aprender várias coisas tinha de ir a vários sítios diferentes”, conta Sofia. “Eu quis criar uma escola que integrasse todas estas artes de antigamente atualizadas para os dias de hoje.”

Além de escola, são uma entidade formadora certificada, mas a maioria das alunas não vai à procura do certificado de formação profissional para exercer funções nesta área, querem aprender a fazer para si próprias. “Temos várias modalidades de aulas. Nas aulas livres, a pessoa vem fazer aquilo que quer e tem o apoio de uma formadora a explicar como se faz. Nesse caso, quem faz o programa é a própria aluna. Para pessoas que ainda não sabem costurar, temos as aulas de iniciação à costura, com 4 níveis. Cada nível corresponde a um mês e as pessoas, ao longo de 4 meses, aprendem tudo o que é a base da iniciação à costura, incluindo a utilização da máquina. Ao longo desses 4 meses vão fazendo 2 projetos por mês, que são sempre um acessório (um saco, dois tipos de bolsas e uma mala) e uma peça de roupa: aprendem a fazer uns calções, uma saia com fecho e bolsos metidos, uma peça em jersey e uma camisa sem gola com carcela e manga. No final saem com 8 peças feitas. Neste caso incluímos o material todo.

Como temos uma retrosaria, uma loja de tecidos e uma loja de fios anexas à escola, a pessoa vem à loja, escolhe o que quer dentro do plafond que tem para gastar, se quiser comprar mais coisas paga à parte, e esses módulos custam mensalmente, os três primeiros n140 com material incluído, e no quarto, como incluímos mais material, n150.” As aulas são dadas uma vez por semana e há vários horários disponíveis ao longo do dia, incluindo pós-laboral e fim de semana, e ainda online – um sucesso durante o confinamento.

A pandemia obrigou a escola a reinventar-se a esse nível. “Fomos uma tábua de salvação para as pessoas, mas elas também para nós. Durante a pandemia houve muita gente isolada que deixou de o estar através das nossas aulas online: tínhamos pessoas de Trás-os-Montes a fazer aulas com pessoas das ilhas, com portuguesas a viver na Holanda, na Bélgica, em França e até em Moçambique. Aliás, a primeira aluna que tivemos fora de Portugal é de Angola: era nossa aluna presencial do programa Férias a Costurar, quando voltou para lá com os pais deixou de fazer aulas, mas quando passámos a ter aulas online, regressou.

É gratificante ver pessoas que na sua vida normal nunca se iriam conhecer, a formarem amizades através das nossas aulas online. Já não vamos voltar atrás.” As aulas são ministradas por formadoras e especialistas nas diversas áreas e há sempre workshops e minicursos a acontecer, presencialmente e online (por Zoom, com grupos de apoio no WhatsApp e Facebook). Sofia até recriou uma versão 2.0 dos antigos serões de costura, com os Clubes das Agulhas, que lançou em 2018 e hoje acontecem online também.

E quem vai aprender a costurar? “A faixa etária principal é 35-45 anos, mas também temos crianças que vêm aprender durante as férias e pessoas mais velhas. E também há muitas miúdas à procura de aprender. É interessante, porque as crianças chegam aqui com muito pouca motricidade fina, não estão habituadas a ser tão minuciosas, porque mexem sobretudo nos tablets e telemóveis com um ou dois dedos e já está, por isso fazemos muito treino da motricidade fina. E do trabalho de equipa. As adolescentes gostam muito de vir fazer fatos de banho e tops. A partir dos 20-25 anos gostam de fazer a sua própria moda e criar peças únicas, já têm uma ideia precisa do que querem e vêm aprender a fazer essas peças. A partir dos 30 começam a ter filhos e querem fazer roupa para as crianças. Mas é muito para si próprias e para os filhos, raramente para os maridos. (risos) Às vezes também fazem coisas para a casa, mas são essencialmente peças de roupa.”

São sobretudo mulheres, embora tivessem tido um aluno advogado que foi aprender a costurar para as filhas. “E há pessoas que nos procuram porque têm um ritmo de vida muito acelerado e querem ter o seu momento zen. Isto requer alguma atenção, há projetos que não se pode estar a fazer e a ver uma série ao mesmo tempo… E isso é relaxante.”

Ser costureira é uma profissão dura, mas é também uma arte e como tal deve ser considerada e valorizada: mesmo quando estamos a falar de fazer uma bainha ou pregar um botão…

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