Claudia, 9 anos, mora os pais, a mãe, também Claudia, que se debate com tudo o que podia ter sido e não é, e o pai, um homem mais velho que não entende a mulher. A família vive em Cáli, cidade colombiana próxima do oceano Pacífico, e embora Claudia esteja na cidade, a selva invade tudo, até a casa, repleta de plantas. É este o cenário de ‘Os abismos’, que chega agora a Portugal e que ganhou o prémio Alfaguara em 2021.
A autora, a colombiana Pilar Quintana, conhece bem a selva tropical, onde viveu durante 9 anos e que a marcou profundamente. Em ‘Abismos’, a selva, as plantas e a natureza trazem sempre qualquer coisa de mágico ao ambiente criado pelos humanos, cheio de restrições, desigualdades e sofrimento.
A Claudia criança é uma espécie de contraponto, reflexão e modulação da Claudia adulta, exemplo de uma geração de mulheres que tiha como única missão dedicar-se à maternidade, mesmo que não fosse esse o seu objetivo de vida. A certa altura, o casamento da Claudia mais velha é abalado e as ondas de choque chegam à Claudia mais nova, que de súbito se confronta com toda a espécie de fins: desde as trágicas mortes de celebridades como Natalie Wood, Grace Kelly, ou Karen Carpenter, até às mortes familiares mais chocantes porque mais próximas e estranhamente mais escondidas.
A Cláudia pequena debruça-se sobre os abismos da Claudia maior, dos abismos reais aos metafóricos, do fim da vida ao fim da esperança, do fim da infância ao fim de um casamento. Percebe também que a vida das mulheres é feita de pouca liberdade, e que a morte pode mesmo ser uma escolha. “Eu já tinha ouvido falar de suicídio”, diz a Claudia filha a certa altura “e achava que sabia o que era, mas só agora começava a perceber. Não era como se de repente a pessoa tivesse um ataque de loucura e se matasse. Não era uma coisa que acontecia apesar dos seus desejos e intenções. Não era um jogo ou uma partida que corria mal. Era, realmente, porque a pessoa queria morrer.”
A religião não ajuda e os padres poucas respostas dão à alma de uma criança perdida. “Contei os meus pecados ao padres: “Que o marido da tia cheira mal e vive na rua. Que o meu pai, no fundo, é má pessoa. Que a minha mãe não tem rinite mas sim preguiça. Que os meus pais se vão separar. Que a minha mãe se vai matar.”
Rezar não ajuda Claudia, que vai garimpando a angústia da mãe, a insensibilidade do pai, e a presença de todos os abismos que pontuam a vida das mulheres. “Pensei nas mulheres mortas. Inclinar-me sobre um precipício era olhá-las nos olhos.”
No fim, cabe a cada uma de nós confrontar-se com os seus abismos: que vamos fazer deles? Vamos ter coragem de nos debruçar e de os confrontar ou vamos fingir que não existem? Vamos usar a nosso favor o poder mágico da selva ou recuar para dentro de casa e fechar-nos num mundo demasiado pequeno? Agora respondem vocês. Os livros, como de costume, só fazem as perguntas.
‘Os abismos’, Pilar Quintana – D. Quixote, E13,95