Numa altura em que a guerra voltou a assombrar o mundo, ‘Libertação’ (Sándor Márai), é uma leitura especialmente dolorosa e angustiante, embora o fosse mesmo no momento mais feliz da história da Humanidade.
E dizem vocês, ‘ai obrigadinha, para tristezas já bastam as guerras a sério, vamos é ler qualquer coisa mais animada’. Mas como sabe quem leu ‘As velas ardem até ao fim’ ou ‘A mulher certa’, Sándor Márai consegue tornar encantatórias as situações mais dramáticas para o ser humano. Ele trabalha precisamente aí, onde doi mais, seja numa traição, num casamento infeliz ou no fundo mais fundo do inferno de uma guerra. Aliás, em ‘Libertação’ há vários momentos em que a ‘heroína’ está como se fosse suspensa no tempo e no espaço, imóvel, para que o leitor consiga perceber toda a dimensão da tragédia e tomar sobre si o peso da dor que outra pessoa sente.
O livro é muito pequeno. Leem-no num dia. Aliás, está pensado para ser lido de rajada, e é assim que o lemos. Aqui não acontece nada (enfim, tirando uma violação) e acontece tudo: um mundo inteiro desaba e outro, que ainda não se sabe qual é mas que se intui não ser muito melhor, está a começar.
Então, o que acontece: o livro começa em Budapeste, cercada pelos russos no fim da Segunda Guerra, em dezembro de 1944. O exército vermelho esta prestes a conquistar a capital, dominada pelos alemães. Neste cenário encontramos Erzsébet, que precisa urgentemente de esconder o pai, um famoso cientista perseguido pela Gestapo. Quando o consegue finalmente fazer, refugia-se numa cave com outros habitantes, que não conhece.
Aqui se tenta proteger dos horrores físicos e psicológicos de um cerco. Ouve as histórias de terror de quem fugiu de um campo de concentração, faz amizade com um homem que não pode fugir nem a pode ajudar, e quando finalmente os russos chegam, nada é como ela tinha esperado.
Quando Sándor Márai escreveu ‘A Libertação’, em 1945, os acontecimentos descritos eram bem recentes. A Segunda Guerra tinha acabado há apenas 6 meses, mas já nessa altura o escritor percebeu que o seu mundo não ia ser tão ‘livre’ como se esperava. Em 1948, com a chegada à Hungria do regime comunista acabou por deixar o país, emigrando para os Estados Unidos. Suicidou-se em 1989, em San Diego, na Califórnia, poucos meses antes da queda do muro de Berlim.
Porque é que é importante ler ‘A libertação’? Primeiro pelo que foi dito acima e que é o óbvio: para que nada disto se repita, o que parece não estar a funcionar. Depois, porque há poucos livros tão terríveis e tão bem escritos. Confiem em mim e vão lê-lo, mesmo que fiquem deprimidos para o resto do fim de semana. Há livros que temos mesmo de ler uma vez na vida.
Enfim, já que estamos nisto, numa próxima edição a editora poderá rever a quantidade de ‘ele’ e ‘ela’ no princípio das frases (em português não usamos constantemente os pronomes quando sabemos a quem se refere a frase, soa estrangeirado). A mesma coisa para ‘o seu pai’. Dizemos apenas ‘Erzsébet pensou no pai’ e não ‘ Erzsébet pensou no seu pai’. Soa esquisito. Enfim, são picuinhices mas quando se trata de uma obra-prima nenhum cuidado é demais.
‘Libertação‘ – Sándor Márai, D. Quixote, E15,90