António Lobo Antunes em crónicas reunidas sobre a vida e a morte. Podem procurar à vontade: não há melhor maneira de começar o ano.

Se, quando se fala nos romances de António Lobo Antunes, ainda pode haver quem recue perante a grandeza da empreitada, em ‘As outras crónicas’ não há mesmo desculpas nenhumas: não temos de ler todo o livro de uma vez, ou na ordem porque está reunido (claro que, uma vez começado, é difícil não fazer isto, mas temos a liberdade de não o fazer). Essa liberdade dá ao leitor margem de manobra para tornar também suas estas crónicas. E um dos maiores dons de ALA é precisamente essa capacidade de, falando de si próprio, falar de todos nós.

Já não me lembro quem é que inventou essa lei universal do jornalismo que diz que ‘quanto mais particular, mais universal’. No caso de ALA, isso fica provado até à última linha. Nestas quase duas centenas de crónicas publicadas entre 2013 e 2019 na revista Visão, fala acima de tudo de si próprio – da sua experiência, da sua vida, da sua família, dos seus irmãos. E cada leitor encontrará aqui o seu espelho. Se calhar todos nós humanos somos iguais. Mas pouquíssimos têm esta capacidade de nos mostrar isso mesmo.

Para alguns leitores, será o primeiro contacto com as suas crónicas. Para outros, será o prazer de as reler. Os temas são imensos. Os livros, a lua, a morte, a guerra, os incêndios, o prazer, pais e filhos, mães e filhos, avós, família, o primeiro outono sem um irmão, a felicidade, a China, a dor, os vivos e os mortos. Acima de tudo, ALA tem o poder de nos fazer sentir. A escrita dele entranha-se no coração (e isto é tão kitsch que nem sequer é digno dele, mas é o que é).

Com estas crónicas, rimo-nos: “A minha mãe chava que a coisa mais sensual num homem era a inteligência e a coisa menos sensual um rabo grande, embora acrescentasse não haver nada mais estúpido que um homem inteligente.”

Choramos: “Permaneci especado até desapareceres na primeira curva, continuei especado durante imenso tempo, sozinho, depois meti as mãos nos bolsos e voltei para casa. Sozinho, isto é: sem ti.”

Pensamos: “O periquito morreu após anos e anos na gaiola, sempre no mesmo poleiro, calado, grave, solene. Nisso era igual a quase toda a gente só que as pessoas são ao mesmo tempo a gaiola e o pássaro e portanto acabam dentro de si mesmas.”

Interrogamo-nos: “Quem destrói um homem? Um homem, quando é homem, não acaba nunca.”

Sentimos saudades: A maior manifestação de amor entre nós era fazermos chichi juntos, à noite, para a cascata. Agora mijo sozinho. Infelizmente.”

Ficamos frente a frente com os nossos fantasmas: “Ninguém está preparado para morrer, nem sequer um filósofo budista de cem anos, com sífilis, cólica renal, a unha do dedo grande do pé encravada e dor de dentes.”

Claro que ALA não fala apenas do quoditiano. Se fosse só isso, qualquer de nós seria um grande escritor. Ele mostra-nos o quotidiano de uma forma nunca vista. Vamos ao nosso mundo de todos os dias como se fossemos a Marte. Vamos às nossas memórias como se nunca lá tivessemos estado (“Faz agora um ano que a minha mãe morreu e surpreende-me o que ela tem mudado depois de se ir embora.”)

Num homem que se vê na parte final da sua vida, ALA olha a morte de frente e faz muitas viagens ao passado, à família, às memórias, à infância, ao que ficou do que passou. O conjunto das crónicas, lidas assim, todas juntas, constroi uma espécie de autorretrato sofrido mas não amargo, vivido mas poético.

Porque isto que ALA faz talvez se chame poesia, ou seja, talvez ele cumpra nas crónicas a mesma função dos poetas: acordar-nos, fazer-nos olhar e sentir de outra maneira. Talvez ele saiba há muito tempo o que António Damásio nos mostrou, que a razão e a emoção são duas faces da mesma moeda. A poesia (não que ele lhe chame isso) é óbvia e constante (“O meu trabalho é escrever até que as pedras se tornem mais leves que a água”).

Ele próprio se pergunta a certa altura, “Que vida foi a minha?” O que restará de nós, o que viemos aqui fazer? Todos nós nos perguntamos isso, em alguma altura da nossa vida. Mesmo não tendo respostas, ALA tem pelo menos esperança: “Não cesso de escrever. Até ao fim não cessarei de escrever. Pode ser que ajude a aliviar um bocadinho o sofrimento das pessoas também.”

Se a missão dos escritores e da literatura for essa, aliviar um bocadinho o nosso sofrimento, então podemos dizer que a missão foi cumprida.

Olhem, parafraseando o fim de uma das crónicas, “Fico contente que este texto esteja tão mal escrito. Acho que me comovi demais.”

As outras crónicas’ – António Lobo Antunes, D. Quixote, E27,70

Palavras-chave

Relacionados

Mais no portal

Mais Notícias

Conheça a nova flagship store da Molteni&C em Lisboa

Conheça a nova flagship store da Molteni&C em Lisboa

12 coisas que adoramos nos avós!

12 coisas que adoramos nos avós!

Dacia Spring: o 100% elétrico mais acessível ganhou um grande upgrade

Dacia Spring: o 100% elétrico mais acessível ganhou um grande upgrade

Amendoim: Os benefícios inesperados do consumo desta oleaginosa

Amendoim: Os benefícios inesperados do consumo desta oleaginosa

“Queremos um carro da Xiaomi em todas as ruas do mundo”

“Queremos um carro da Xiaomi em todas as ruas do mundo”

Adia várias vezes o alarme de manhã? O problema que pode estar por detrás da

Adia várias vezes o alarme de manhã? O problema que pode estar por detrás da "mania"

Quando os médicos têm dúvidas

Quando os médicos têm dúvidas

Um viva aos curiosos! David Fonseca na capa da PRIMA

Um viva aos curiosos! David Fonseca na capa da PRIMA

Grandioso banquete reúne membros da realeza no Louvre

Grandioso banquete reúne membros da realeza no Louvre

Ana Garcia Martins partilha fotos da sua nova casa

Ana Garcia Martins partilha fotos da sua nova casa

De novo num

De novo num "jumpsuit", Charlene do Mónaco revela o seu lado mais sedutor

Alexandra reage após comentários negativos:

Alexandra reage após comentários negativos: "Ambos sofremos, mas estive sempre ao teu lado e nunca coloquei em questão abandonar-te"

Vencedores e vencidos do 25 de Abril na VISÃO História

Vencedores e vencidos do 25 de Abril na VISÃO História

Barack Obama apoia candidatura de Kamala Harris

Barack Obama apoia candidatura de Kamala Harris

A inovação nas frotas e na mobilidade

A inovação nas frotas e na mobilidade

Letizia, Leonor e Sofia, três

Letizia, Leonor e Sofia, três "looks" bem distintos

Os detalhes e inspirações do vestido de noiva de Isabela Valadeiro

Os detalhes e inspirações do vestido de noiva de Isabela Valadeiro

Letizia com visual florido em visita a Barcelona

Letizia com visual florido em visita a Barcelona

Maré vermelha nas cotadas de luxo. Louis Vuitton lidera derrocada

Maré vermelha nas cotadas de luxo. Louis Vuitton lidera derrocada

Valor do grupo Jerónimo Martins em bolsa afunda após anúncio de quebra dos lucros

Valor do grupo Jerónimo Martins em bolsa afunda após anúncio de quebra dos lucros

Letizia surpreende com

Letizia surpreende com "look" brilhante

O Pavilhão do Conhecimento celebra 25 anos com um dia inteiro de festa – a entrada é gratuita

O Pavilhão do Conhecimento celebra 25 anos com um dia inteiro de festa – a entrada é gratuita

Telescópio James Webb deteta exoplaneta seis vezes maior que Júpiter

Telescópio James Webb deteta exoplaneta seis vezes maior que Júpiter

Geoscope – Observatório Astronómico de Fajão: Ver as estrelas numa Aldeia do Xisto

Geoscope – Observatório Astronómico de Fajão: Ver as estrelas numa Aldeia do Xisto

CPI ao caso das gémeas: Um “desconforto”, uma revelação inesperada, as grandes incógnitas e o que vem a seguir

CPI ao caso das gémeas: Um “desconforto”, uma revelação inesperada, as grandes incógnitas e o que vem a seguir

Sete documentários e filmes para entrar no espírito dos Jogos Olímpicos

Sete documentários e filmes para entrar no espírito dos Jogos Olímpicos

Equipa do Técnico conquista segundo lugar em competição  de barcos elétricos

Equipa do Técnico conquista segundo lugar em competição de barcos elétricos

À beira da piscina com estilo

À beira da piscina com estilo

HP Envy 16: Uma workstation portátil para profissionais

HP Envy 16: Uma workstation portátil para profissionais

Quis Saber Quem Sou: Será que

Quis Saber Quem Sou: Será que "ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais?"

“Queremos um carro da Xiaomi em todas as ruas do mundo”

“Queremos um carro da Xiaomi em todas as ruas do mundo”

Os Piores Monstros do Mundo

Os Piores Monstros do Mundo

Sebastião da Gama - Carne e espírito na Arrábida

Sebastião da Gama - Carne e espírito na Arrábida

A Dama Pé de Cabra

A Dama Pé de Cabra

Geoscope – Observatório Astronómico de Fajão: Ver as estrelas numa Aldeia do Xisto

Geoscope – Observatório Astronómico de Fajão: Ver as estrelas numa Aldeia do Xisto

Em Ibiza, um refúgio aberto ao exterior numa ode ao verão

Em Ibiza, um refúgio aberto ao exterior numa ode ao verão

Homem do Leme: Artifícios

Homem do Leme: Artifícios

Como as alterações climáticas estão a mexer com o tempo (mas não com o tempo em que está a pensar)

Como as alterações climáticas estão a mexer com o tempo (mas não com o tempo em que está a pensar)

A casa de Cristiano Ronaldo em Cascais está pronta? Georgina Rodriguez revela imagens da mansão!

A casa de Cristiano Ronaldo em Cascais está pronta? Georgina Rodriguez revela imagens da mansão!

Ao fim de 500 anos de ausência, os veados estão de regresso a Cascais

Ao fim de 500 anos de ausência, os veados estão de regresso a Cascais

De Zeca Afonso a Adriano Correia de Oliveira. O papel da música de intervenção na revolução de 1974

De Zeca Afonso a Adriano Correia de Oliveira. O papel da música de intervenção na revolução de 1974

Sede da PIDE, o último bastião do Estado Novo

Sede da PIDE, o último bastião do Estado Novo

XIV Congresso dos Lusitanistas - lugar de entendimento, agregação e diversidade

XIV Congresso dos Lusitanistas - lugar de entendimento, agregação e diversidade

Reciclagem de embalagens: pode brincar-se com temas sérios?

Reciclagem de embalagens: pode brincar-se com temas sérios?

Pigmentarium: perfumaria de nicho inspirada na herança cultural da República Checa

Pigmentarium: perfumaria de nicho inspirada na herança cultural da República Checa

Parceria TIN/Público

A Trust in News e o Público estabeleceram uma parceria para partilha de conteúdos informativos nos respetivos sites