
O autor de ‘Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades’ foi muito mais do que isso: exilado em Paris antes do 25 de Abril, ajudou a criar vários coletivos artísticos, foi autor, músico e produtor, além de ator e fundador do ‘Teatro do Mundo’. E ao longo dos anos, deu imensas entrevistas onde refletia sobre o mundo em que vivia.
Agora reunidas, estas entrevistas contam não apenas a sua vida mas são o espelho de um país que mudou radicalmente entre 1970 e 2019. Nestas conversas encontramos vários temas: desde reflexões sobre aquilo que se canta, as funções sociais da canção, o universo da gravação, a outras mais abrangentes, como a atividade política, as várias esquerdas, o teatro e o cinema.
Como afirmam no prefácio os autores da coletânea, acima de tudo JMB refletiu sobre a canção como arma de sensibilização e solidariedade política em períodos de resistência e de ideais revolucionários. “A ideia de universalidade prendia-se também com uma noção de ausência de neutralidade na prática artística, ou seja, a ideia de que a criação artística é inevitavelmente comprometida.”
É muito interessante ler sobre temas que ainda hoje são atuais. Por exemplo, a moda de musicar poetas. Afirma JMB logo em 1970: “A canção não pode ser um veículo para ‘divulgar’ a poesia, ela não pode ser utilizada como sucedâneo para fazer chegar ao povo a poesia que o condicionamento cultural impede.”
As entrevistas anteriores ao 25 de Abril lembram-nos como aconteceu há tão pouco tempo. Um tempo onde “todos os partidos são ilegais, qualquer tipo de associação é ilegal” mas onde apesar de tudo já havia “forças a tentarem organizar-se”. A forma de atuar da censura, os autores e livros proibidos, a consciência política dos portugueses, como viviam os exilados em França, as execráveis condições de trabalho, o racismo (“A minha mulher foi várias vezes insultada por estar a falar em português em voz alta”). Se voltasse a Portugal nessa altura, tal como outros exilados, seria julgado no Tribunal Militar como desertor, e possivelmente mandado para as colónias para a linha da frente.
O exílio foi, diz sempre, ‘um pesadelo’, vivido da única forma que conseguiu: “Estar aqui em França como se estivesse para sempre, mas no primeiro minuto em que puder voltar para Portugal, volto.”
Com o passar do tempo e o regresso a Portugal, certos temas e preocupações mantêm-se: a criação artística, a relação entre o poder e a arte, a relação entre liberdade criativa e militância, a solidariedade, o espírito de crítica: “Nos sítios onde ajudei a criar instituições, fui sempre pondo-as em causa… Quando as coisas estabilizam, entram em ruptura.”
As entrevistas revelam um homem que gosta de pensar sobre a sua música, mas também aberto ao talento dos outros. “Esta minha polivalência permite-me fazer coisas que adoro: produções de outras pessoas, de grandes talentos qte tenho privilégio de por vezes dirigir nos começos: Amélia Muge, Gaiteiros de Lisboa, Camané, Canto Nono, etc.”
Fala até de violência doméstica, numa das últimas entrevistas: “É a única parte do Estado Português em que não houve revolução de 74”.
E na última entrevista resume tudo quando afirma: “Eu gosto de falar desde que isso sirva para alguma coisa. Falar por falar, não.” Já em 2018, as suas palavras são quase proféticas: choca-o o retrocesso em ralação à liberdade, progresso e bem-estar, a ‘asiatificação’ do trabalho, a revolta, morte e horror por esse mundo fora. Mesmo assim, mantém o otimismo essencial e o amor pela música, que define como “uma relação de amantes”: “Foi sempre uma relação muito próxima, muito apaixonada, mas também muito livre e muito solta.”
Ao contrário do que possa parecer, não é apenas uma quase-autobiografia de JMB, um livro saudosista para os seus admiradores, aqueles que o conheciam e que acompanharam a sua carreira, aqueles cresceram ao som da sua música e da sua voz. É também uma oportunidade para pensar temas tão atuais como a função da música, que peso têm as canções, que mundo queremos para nós, e se arte tem mesmo o poder de mudar a vida.
José Mário Branco: entrevistas para a Imprensa 1970-2019 – Org. Ricardo Andrade, Hugo Castro e António Branco, Ed. Tinta da China, E24,90