Em março de 2011, Auriol Dongmo fez manchetes ao sagrar-se campeã europeia do lançamento do peso nos Europeus de Atletismo de Pista Coberta, em Torun, na Polónia. A atleta luso-camaronesa fez assim jus ao nome, que tem origem no latim e significa “dourado”, ao trazer ouro nesta modalidade pela primeira vez para Portugal.
O momento alto na carreira foi a confirmação de que a vinda para este jardim à beira-mar plantado, em busca de melhores condições de treino e de estar mais próxima de Fátima (ou não fosse uma famosa devota de Nossa Senhora de Fátima), tinha sido uma aposta ganha. Pelo caminho, deu um novo fôlego ao panorama nacional desta disciplina do atletismo e mostrou-nos que vale sempre a pena seguirmos os nossos sonhos.
Auriol nasceu no norte dos Camarões, em Ngaoundéré, no dia 3 de agosto de 1990. Conta-nos que teve uma infância feliz e, embora não tenha nascido no seio de uma família abastada, nunca lhe faltou nada. Lembra-se de brincar muito na rua com amigos, vizinhos e colegas de escola. Em criança, gostava de jogar futebol e voleibol, mas, em termos de competição, dedicou-se ao basquetebol e ao andebol. Isto até ao momento em que o lançamento do peso se cruzou no seu caminho, de forma inesperada, por sugestão de terceiros — primeiro de um professor de educação física na escola, e depois de um treinador nacional que observou a jovem e constatou que esta tinha perfil para vingar no desporto.
“Inicialmente não fiquei muito motivada, porque sempre pensei, talvez por uma questão cultural, que era um desporto para homens“, admite. “Tudo mudou em 2011, quando me sagrei campeã dos Camarões pela primeira vez. Percebi que tinha jeito para a modalidade, porque conquistei um título com apenas um ano de trabalho, e concluí que, com algum esforço, poderia ir mais além”.
A decisão de ser lançadora estava tomada, mas, numa fase inicial, a família de Auriol não concordou. O pai, por exemplo, considerava que se tratava de uma atividade para praticar no âmbito escolar, mas não para ganhar a vida e fazer carreira. “Para o meu pai, o andebol seria a melhor opção”, partilha. “Mais tarde, com os resultados obtidos e alguma pressão da comunidade, acabaram por aceitar – hoje sentem muito orgulho em mim”.
A jovem continuou a treinar num clube local e foi campeã dos Camarões pela segunda vez em 2014. Foi ainda campeã africana em duas ocasiões, em 2015 e em 2016, ano em que teve a oportunidade de preparar a olimpíada do Brasil no Norte de África, a convite de um clube marroquino. Contudo, o sonho de Auriol trouxe-a até Portugal. Uma grande mudança de vida que surgiu com um empurrãozinho da própria atleta, que, apesar de não gostar muito de redes sociais, decidiu recorrer a uma famosa plataforma para propor-se ao Sporting. O resto é história.
Como é que se lembrou de criar um perfil no Facebook para contactar o Sporting?
Naquela altura, pensava que a melhor forma de iniciar uma conversa seria pela redes sociais. Quando contactei o Sporting, já estava em Marrocos e fi-lo por simpatia pelo símbolo do clube. O meu signo é Leão e escolhi Portugal, especificamente, porque sou devota de Nossa Senhora de Fátima. Não sabia se seria bem-sucedida, porque achava que o SCP poderia não responder ao contacto espontâneo de uma atleta. Mas, ao mesmo tempo, tinha alguma esperança. Eu já era campeã dos Camarões e, além disso, pesquisei e percebi que não havia lançadoras do meu nível em Portugal.
A iniciativa acabou por dar frutos. O que encontrou com a vinda para Portugal em 2017?
Profissionalmente, no Sporting e em Portugal, tive a possibilidade de praticar e fazer carreira no meu desporto de eleição, bem como de evoluir tecnicamente e nas marcas obtidas. No que diz respeito à qualidade de vida, gosto do convívio das pessoas. Fui bem recebida pelos portugueses e pelos leirienses. Também gosto muito da gastronomia portuguesa! Por exemplo, adoro um bom bacalhau à brás, uma grelhada mista e a típica morcela de arroz de Leiria.
Como devota de Nossa Senhora de Fátima e uma pessoa bastante crente, em geral, acredita que esta oportunidade lhe estava destinada?
Embora tenha fé, tenho obviamente de trabalhar. A crença por si só não produz resultados. Para mim, a fé e o trabalho são dois ingredientes necessários para o sucesso.
Nos primeiros tempos em Portugal, sentia a necessidade de provar que seria uma aposta ganha? Se sim, queria prová-lo a si mesma ou aos outros?
Embora não trabalhe para os outros, obviamente que é importante agradar e obter resultados em nome dos portugueses que me acolheram tão carinhosamente.
O seu processo de naturalização ficou concluído em outubro de 2019. Ainda se lembra do que sentiu nesse momento?
Fiquei muito feliz! A vida também ficou mais fácil quando me tornei cidadã portuguesa e europeia, porque agora estou autorizada a competir por Portugal em eventos internacionais como, por exemplo, os Jogos Olímpicos.
Em 2018, ficou grávida e teve de interromper a competição. Alguma vez desligou o modo atleta?
Não, nunca me desliguei do desporto. Treinei até aos sete meses de gravidez.
O regresso ao trabalho aconteceu apenas um ano depois. O que é que a Auriol mãe ensinou à Auriol atleta?
A maternidade influenciou no sentido em que passei a ter mais responsabilidade e fiquei com mais força para trabalhar, lutar e ser mais persistente. Ser mãe ensinou-me a nunca desistir.
Quão exigente é conciliar a maternidade com a vida de atleta de alta competição?
É muito difícil, mas eu tive a sorte de encontrar uma rede de apoio, principalmente a ama do meu filho, a Ana Lopes, e a família dela. Eles apoiam-me e permitem que eu faça os meus treinos e deslocações em competição.
Acabou por bater o recorde nacional do lançamento do peso por três vezes em 2020, fazendo-o saltar para os 19,65 metros. Lembra-se do que lhe passou pela cabeça nesses momentos?
Fiquei muito feliz, mas continuei a querer mais e melhor. Acho sempre que ainda posso melhorar essas marcas.
Além do óbvio, em que medida sair com ouro de Torun, nos Europeus de Pista Coberta, representa um momento particularmente especial para si?
Foi a minha primeira representação da Seleção Nacional e ganhar a medalha de ouro foi um grande orgulho. Foi a prova de que os sacrifícios valeram a pena.
Depois de ter sido bicampeã no continente africano, sentiu que todos os olhos estavam postos na sua prestação com as cores nacionais?
Como era campeã africana, quando mudei de nacionalidade, havia uma grande expectativa em relação aos meus resultados. Era óbvio que tinha muitos olhos postos em mim e, felizmente, as coisas acabaram por correr bem.
Agora está de olhos postos em Tóquio. O que é que a preparação para um evento desta magnitude exige?
Um atleta que está prestes a participar nos Jogos Olímpicos tem de trabalhar muito. A preparação exige dedicação, resiliência e fé. Como se trata da maior competição desportiva mundial, isso dá-nos uma responsabilidade extra, mas também uma grande motivação.
Qual é o papel do Paulo Reis nesse processo, tanto na parte física quanto na psicológica?
O meu treinador é excelente. Em toda a minha carreira nunca tive um treinador como o Paulo. Ele está sempre lá para nós, tanto no desporto como na vida pessoal. Ele sacrifica a sua vida pessoal para se dedicar aos atletas. É uma motivação constante.
Em que medida a vontade de ganhar representa uma grande pressão?
É a maior de todas. Como é óbvio, não queremos desiludir todos aqueles que depositam esperanças em nós. Costumo dizer que o primeiro adversário somos nós próprios.
Nas vésperas do início dos Jogos Olímpicos, qual é o seu estado de espírito?
Penso que é o mesmo de todos os atletas: ansiedade e muito stress, porque nunca sabemos como será o resultado final. Mas é um stress controlável. Há colegas que fazem meditação, mindfulness, etc., eu rezo.
Que mensagem quer deixar aos portugueses antes de partir para o Japão?
Vou dar o meu melhor. Deus fará o resto.