Eu sento-me no sofá, ela está no chão de pernas cruzadas. É uma alma rara em Portugal (ou sou eu que sou pessimista): é das mulheres mais giras que já vi, e não há aqui um grama de vaidade. É muito esquisito. É esquisito porque ela inclusive serve-se de si própria como modelo: fez uma coleção de autoretratos chamada ‘Playing with myself’ onde se recria em várias situações (inclusivamente uma série com o nariz partido, quando apanhou com um varão de cortinado em madeira maciça) ou a fenomenal coleção da ‘Plastic Bitch’, onde usa desperdícios de plástico para se recriar como versões futuristas e irónicas da Maria Antonieta ou da Estátua da Liberdade. Tudo é aproveitado para fazer arte (e humor), de um acidente doméstico à sustentabilidade.

O lado artístico também não se restringe a uma área, mas em todas há o gosto por contar uma história, por surpreender, por fazer pensar. Esta é literalmente a mulher dos sete ofícios: é arquiteta, realizadora, professora, escritora, fotógrafa, argumentista, e falta-me um, mas hei-de lá chegar. Isto além de dois filhos que acompanha de perto.

Conversamos numa tarde de muito calor, num sábado que ambas roubámos à praia. E foi bem roubado. Enfim, pela parte que me toca, obviamente.

Um dos rapazes

Começo por querer saber se destes sete ofícios, já queria ser algum deles em pequenina, mas parece que não. “Em pequenina não queria ser nada. Tive uma infância muito especial. Nasci no Porto, e fui criada na Boavista em casa dos meus avós, que tinham um jardim gigante. Eu passava os dias encarrapitada numa árvore a ler.”

Ia ao colégio (de freiras, porque a família era conservadora e regrada) e voltava para as árvores. E até aos 16 anos não teve (outra) vida. “Mas eu gostava. Era – literalmente – bicho de mato, no colégio tinha uma amiga, usava aqueles aparelhos de dentes horrorosos e óculos de fundo de garrafa. Se sentia falta de outras coisas? Claro que sentia, mas nem sabia bem de quê. E nem sabia como escapar.”

Nas férias, havia mais campo, quando ia para o Marco de Canavezes com os primos. E não ficou a odiar árvores? “Não, pelo contrário. A maioria das pessoas é fascinada pelo mar, não vivem sem estar perto do mar, e eu gosto muito de água mas quando preciso de recuperar energias vou para o pé das árvores.”

Aos 17 anos cortou o cabelo, tirou os óculos, cresceu, e de repente o olhar dos outros mudou. “Senti muito essa diferença, principalmente com os rapazes. Eu estava habituada aos meus primos, era muito Maria-rapaz, e era muito táctil, de abraços e beijos, mexia muito nas pessoas, e de repente as pessoas começam a retrair-se. Foi um choque. De repente percebi que já não era um dos rapazes, era uma mulher, e foi muito assustador, porque era uma coisa que eu não geria.”

De patinho feio a cisne

Não partilhou as suas dores de crescimento’ com ninguém, até porque nessa altura ainda não se falava em nada disso com a facilidade com que o fazemos hoje. Estávamos longe do neo-feminismo, no #metoo, da informação globalizada: as raparigas cresciam em silêncio e sem falar do que as preocupava. “Eu nem sequer sabia o que era o período… Quando me aconteceu da primeira vez, já tinha 14 anos, perguntei a uma empregada o que era aquilo.”

Recorda uma história sinistra que podia ter acabado em tragédia. “Uma vez estava de férias na praia de Esposende. Eu tinha 11 anos, o meu pai foi dar um passeio e deixou-me a brincar ao pé das rochas. De repente aproximou-se um homem com um aspeto horrível, uns óculos de fundo de garrafa, e começou a meter conversa, a perguntar se eu sabia o que era isto e aquilo, e às tantas pega-me na mão e pergunta se eu quero ir brincar com ele para as dunas.”

Mesmo sendo criança, intuiu o perigo e instintivamente inventou uma saída: “Disse-lhe que o meu pai estava aí a chegar e ia ficar muito zangado, e ele acabou por desistir e afastar-se. Um mês depois, apareceu na televisão o caso de uma rapariga violada naquele sítio, naquelas dunas, com a cabeça esmagada. Percebi que devia ter sido o mesmo homem mas nunca contei isto a ninguém. Tens medo, tens vergonha, tens nojo, percebes que há qualquer coisa que não está bem mas não percebes o quê. Achei que devia ir à polícia falar no homem de óculos verdes, mas claro que uma criança não faz isto.”

Mas nessa altura, coisas destas aconteciam recorrentemente às raparigas, e aconteceram-lhe muitas outras. “Eu tinha uma autoestima péssima, o que também não ajudava. Achava-me horrível, embora a minha mãe me estivesse sempre a dizer que era linda.”

Os pais eram ambos professores de fisico-química mas a filha nunca quis ser professora (mais tarde acabou por sê-lo e descobriu que adorava). “Eu nem sabia bem o que queria. Um dia ia no autocarro aproxima-se uma senhora e pergunta-me: ‘Não queres ser modelo?’

AHHHHHHH, modelo! Profissão nº 7, eu sabia que eram 7. “Eu disse-lhe que estava a estudar mas dei-lhe o número de telefone. Eram a Glória e o Miguel Arcanjo, que tinham feito o primeiro curso de manequins do Porto. Quando fizeram o segundo, ela ligou-me. Eu tinha acabado de entrar em arquitetura, e fui lá dizer-lhes que não tinha dinheiro para pagar o curso. Mas andei lá para a frente e para trás a ‘desfilar’, não tinha jeito nenhum, e vim-me embora tristíssima. Quando chego à rua vejo um deles correr atrás de mim: ‘Combinamos assim, vais fazer o curso e depois pagas com trabalho.”

E assim foi. Então e a pergunta que se impõe: uma autoestima não melhora bastante depois disto? “Não, ficou ainda pior. Sentia-me infiltrada. Ia fazer trabalhos com todas aquelas mulheres lindas, e pensava ‘algum dia alguém vai descobrir que eu sou uma fraude, alguém vai reparar que eu não pertenço aqui.’ Mesmo ‘infiltrada’ ainda desfilou para a Ana Salazar, para o José António Tenente, e trabalhou como modelo fotográfico durante muitos anos mas não era um futuro que lhe interessasse: “Na verdade servia-me para ganhar dinheiro para viajar e para comprar roupa, mais nada. Fiquei talvez com dois amigos, era um mundo muito complicado, com muita droga e muito alcool, e não era uma carreira que me interessasse.”

Amores à primeira vista

Então carreira nº1 já despachámos, vamos à nº 2, arquitetura. “Eu queria seguir Belas Artes, mas no Porto nos anos 80 ninguém vivia de ser pintora nem escultora nem realizadora, muito menos sendo mulher. Então escolhi arquitetura, que era o que mais se aproximava.”

Cedo percebeu que não era aquilo que queria fazer na vida. “Quando comecei o curso, foi mesmo antes dos computadores. Lembro-me que fomos visitar o atelier de um jovem arquiteto (era o Souto Moura) e toda a gente estava a desenhar no mesmo papel vegetal com tinta permanente, com tinta da china, a rasparem com lâminas, pela noite dentro, aquilo era giríssimo. De repente, entram os computadores e os projetos em 3D em que estava cada pessoa atrás de um ecran, e aquilo que me tinha apaixonado, o trabalho de equipa, desapareceu e perdeu todo o encanto.”

Mas como era teimosa, mesmo desencantada fez o curso todo até ao fim e ainda mais o estágio. Entretanto, apaixonou-se pelo cinema. Via tudo o que apanhava. “E apaixonei-me por muitos filmes sem os ter visto, porque na altura esvrevia-se muito sobre cinema”. Gostava da luz, gostava de contar histórias, mas mais uma vez, a família torceu o nariz.

“Ainda por cima os meus pais eram amigos do pai do João Canijo e diziam-me sempre ‘nem penses que vais acabar como ele!’ (risos) Claro que eles achavam que o cinema não era um modo de vida. Ainda por cima eu era a melhor aluna do colégio e o meu pai meteu na cabeça que ia ter uma médica na família. De repente ela quer ir para artes, olha o desperdício!”

Já que não podia usar o dinheiro do pai, foi fazer um ano de Erasmos em Barcelona, onde conseguiu um estágio numa escola de cinema e percebeu que gostava mesmo daquilo. E viveu os anos 90 num mundo muito à frente de Portugal. “Eu tinha amigas casais de lésbicas com filhos, que na escola eram tratados como as outras crianças. As noites eram completamente loucas, havia uma vida noturna fenomenal, e em Portugal vivia-se ainda um atraso bastante considerável em relação a tudo isso.”

Pensou mesmo ficar lá. Mas veio a Portgal e apaixonou-se. Foi o fim de Barcelona. “Vim visitar uma amiga e o Pedro abriu-me a porta. E pronto. Tive dois maridos e em ambos foi tiro e queda: assim que os vi, percebi que estava tramada. Foram 10 anos do primeiro e 13 do segundo, por isso alguma coisa deve haver de verdade nestes amores à primeira vista”.

Vemos mais do que pensamos que vemos, é isso? “Deve ser. Porque nós nem sequer falámos. O Pedro estava a viver no Brasil eu em Barcelona, e nem era suposto cruzarmo-nos. Só nos envolvemos meses mais tarde, mas assim que o vi percebi que ele ia ser importante na minha vida.”

Em busca da viúva perdida

Cláudia tinha começado a publicar contos na revista ‘Ficções’, e depois o primeiro livro, ‘O caderno negro’. Mas foi então que começou a sua missão de ‘desenterradora de mulheres’ (sou eu que lhe chamo assim, ela acha apenas que as mulheres são muito mais interessantes que os homens, principalmente as que são difíceis de encontrar).

“O Pedro sabia que eu tinha uma paixão pelo Julio Cortázar, o escritor, e eu tinha uma proposta de documentário sobre ele. Nunca tive jeito para angariar fundos. Um dia ele disse-me ‘ se queres filmar isto, arranjamos uma câmara e vamos”.

E foram. Partiram para o sul de França à procura de pessoas que tivessem conhecido o escritor. “Chegámos a uma terrinha, batemos às portas e perguntámos ‘A viúva do senhor Cortazar vive aqui?’ Riram-se na nossa cara. “Ó minha senhora, era mais fácil entrevistar a Madona, a senhora é embaixadora e vive em Paris, boa sorte com isso.” Mas acharam tanta graça que ficaram com o contacto, e dias mais tarde Cláudia recebe um telefonema: era a viúva, Ugné Karvelis. Lá voltaram outra vez para o sul de França. Ficaram três dias e três noites a dormir no sofá de Cortázar.

E o que é que aconteceu a todo esse material? “Está todo guardado. Fiquei amiga da Ugné e quando ela morreu, fechei tudo numa caixa e nunca mais tornei a abri-la. Falei com todas as pessoas que tinham conhecido diretamente o Cortázar. Até fui a casa de uma argentina que reconstruiu um castelo medieval pedra a pedra, outra que vivia numa mansão onde o Cortázar se casou e onde passámos uma noite, filmei por todo o lado. Nunca tive dinheiro para fazer uma montagem séria de tudo isto…”

O fim da imortalidade

Tinha acabado de publicar o primeiro livro quando tudo parou: nasceu o primeiro filho, Lourenço. O que é que ser mãe mudou na sua vida? “Deixei de ser imortal. Até aí eu fazia o que me apetecia, o medo não constava na minha lista. Com aquele bebé, percebi o que era ter medo de falhar àquela pessoa. Passei a ter medo de andar de avião, por exemplo. E depois, deixei de ser inatingível. Já me tinham acontecido muitas coisas más e eu achava que resistia a tudo. E de repente ficas vulnerável, tens um ponto fraco. Todas as barreiras que levaste a vida toda a construir deixam de funcionar.” Ainda por cima o Lourenço nasceu depois de cinco tentativas falhadas. “Era minha sexta gravidez. Acho que da primeira vez tinha tanto medo da maternidade que abortava repetidamente. Vi coisas terríveis nas salas de espera das maternidades, mas só nos diziam ‘não há razão nenhuma para que não engravidem’ e finalmente aconteceu. Portanto aquela criança passou a ser o centro da minha vida.”

Continuou a fazer aquitetura até que o marido lhe disse: ‘Agora eu seguro as pontas e tu vais fazer cinema.” Até hoje, está-lhe grata por isso. “Tive dois maridos e nenhuma dessas relações resultou para a vida, mas ambos me ajudaram muitíssimo e foram importantíssimos na minha vida. Fiquei com dois amigos extraordinários que me deram muita força.”

Foi finalmente estudar cinema a sério e deixou a arquitetura. “Além do mais, nos anos 90/2000 a arquitetura em Portugal ainda era um mundo muito machista. Para já, era mulher e não era homem, e depois era arquiteta e não era engenheira, portanto não era respeitada. Ia para as obras e ouvia dos construtores civis ‘a senhora está-me a dizer como é que isto se faz? Fiz assim a minha vida toda’. Tinha sempre que andar de calças, tinha que pensar como é que ia vestida para a obra para impor respeito. Um homem nunca se preocupa com coisas destas, nem lhe passam pela cabeça.”

Mas o cinema não é também um meio masculino? “É. Claro que hoje as coisas estão a mudar, mas quer na arquitetura, quer no cinema quer também na escrita, os homens protegem os homens, mas as mulheres também protegem os homens, que é incrível. Por isso acho que as mulheres têm mesmo de tomar consciência disso e serem mais unidas. Há tantas realizadoras fantásticas sem trabalho…”

Problema: também não se encaixa em nenhuma das ‘capelas’ organizadas. “Nós em Portugal somos muito de coleiras, e quando tens vários talentos, a malta baralha-se e não sabe onde te encaixar. És tudo e não és nada! Como sou escritora não me consideram como realizadora, como sou realizadora não me consideram como argumentista, como sou argumentista não me consideram como fotógrafa! Se um homem tem muitos talentos, é um tipo excecional. Se uma mulher tem muitos talentos, acham que se fazes muita coisa, é porque não fazes nada bem.”

E sim, pode-se ter muitos talentos. “Quando se fala em talento só me lembro do Oscar Wilde, quando lhe perguntaram na alfândega se tinha alguma coisa a declarar e ele respondeu ‘só o meu talento’ (risos). Não tenho essa veleidade. Acho que a arte nasce contigo, acho que há pessoas que têm a sorte de a poder expressar e viver, mas há muitas que nascem com talento mas sem oportunidade. O que eu acho é que, para fazer qualquer coisa bem, durante esse tempo tens de te dedicar em exclusivo.”

‘Plastic bitch’

Foi o que aconteceu com os ‘retratos pintados’, autoretratos com várias séries de fotografias onde se auto-encenava em várias situações. “Comecei em 2010 porque não tinha dinheiro para realizar, e então comecei a contar histórias visualmente de outra maneira. Eram uma espécie de autocrítica à forma como vivíamos, encenando-me a mim própria. Fiz uma ‘Herdeira’ em que a personagem está numa bela sala com a mesa posta com todas as pratas e está a comer jóias! Agora estou a fazer uma série chamada ‘Plastic bitch’ sobre o consumo dos plásticos domésticos. Dei-me conta disso com mais força no Covid. Eu estava fechada em casa com dois filhos, e dei-me conta da quantidade absurda de plástico que os três gastávamos durante um mês. Era assustador. Multiplica isto pelos andares de todo o prédio, por todos os prédios da rua, por todas as ruas do país…”

Hoje não estamos mais conscientes? “Estamos, mas ainda não há vontade política para abordar este problema de forma séria. Não sou pessimista: conseguimos travar muito o consumo de tabaco, por exemplo, e a indústria do tabaco era igualmente poderosa. Portanto, devagar vamos lá. Mas acho que toda a gente devia fazer a sua parte.”

Começou então a refletir o que é que, enquanto artista, podia fazer. “Lembrei-me que a Maria Antonieta fazia ‘statements’ políticos com as suas cabeleiras, que chegavam a ter metros de altura. Então construí uma peruca branca gigante, feita de embalagens do McDonalds, boiões de iogurte, talheres de plástico, tudo o que fosse plástico branco, misturado com rendas, pérolas e plumas. Construí uma escultura de metro e meio e fotografei-me vestida de Maria Antonieta num retrato de dois metros de altura. Já foi exposta uma vez e vou agora expô-la outra vez. Depois fiz uma Maléfica com embalagens de carne, uma Ofélia a afogar-se em plástico, mas cada uma destas fotografias são meses de trabalho em que tens de ter um estúdio, um assistente, etc.”

Paralelamente, dá aulas de cinema e realização, e escreve argumentos. Foi a autora do argumento do filme ‘Snu’, co-autora da primeira série de ‘A espia’, fez alguns trabalhos para a Opto.

Quando o mundo se esquece

Conheceu o segundo marido, o realizador Edgar Pêra, na manifestação dos ‘Indignados’, em 2011. Um mês depois, estavam casados. “Foi outra vez uma cena à filme. Foi muito estranho, conheci-o, estivemos juntos uma semana, depois desaparecemos da vida um do outro, eu fui à Madeira dar aulas, e quando volto está ele no aeroporto à minha espera, com um ramo de rosas em punho, de joelho no chão a pedir-me em casamento.”

Aceitou. Claro. “Não sei se aceitei porque tinha vergonha da figura que estávamos a fazer ou se foi mesmo um ato de loucura (risos)’. Conheceram-se a 15 de outubro, casaram a 15 de novembro, e pouco tempo depois engravidou pela segunda vez. “Ele tinha 50, eu tinha 43, e foi totalmente diferente do Lourenço. A gravidez foi muito mais calma. Mas, pela segunda vez, a minha carreira foi por água abaixo. Fiquei em casa a tomar conta de uma criança, e o mundo voltou a esquecer-se que eu existia. “

Afirma que nunca teve coragem para pôr o filho na creche. “Fiquei três anos em casa com o Lourenço e dois anos com o Henrique. Achei que não havia dinheiro que pagasse esse tempo, mas paguei de outra forma. Quando as pessoas não te veem, esquecem que existes.”

Além disso, ser a mulher de Edgar Pêra também não ajudava. “Às tantas eu já nem dizia quem era o meu marido, adorava-o mas odiava ser ‘a mulher de’, ainda por cima sendo também realizadora. O meu filho Henrique só descobriu que eu também fazia filmes há pouco tempo! Mas o pior para mim foi deixar de escrever.”

Tinha acabado de ganhar um prémio de teatro da SPA, com a peça ‘Londres’, tinha publicado o segundo livro de contos, e quando planeava voltar ao ativo, morrem os pais. Depois da morte da mãe, em 2016, entrou numa espiral descendente.

A incrível história de Leonor

Quase com toda a certeza, vocês não sabem quem foi Leonor de Almeida. Não, não é a Marquesa de Alorna. Quer dizer, é, mas aqui não é essa. A primeira frase do livro ‘Tatuagens de luz’ diz tudo: “Num dado momento da minha vida, procurar a Leonor foi a única barreira possível entre mim e a loucura.”

Tudo começou com um quadro que Cláudia herdou. Depois da mãe morrer, às voltas com o tormento da insónia, da depressão e da incapacidade para criar, o quadro do esgrimista tornou-se a sua mais íntima companhia pela noite dentro. “Sempre tive uma fixação por aquele quadro, um esgrimista do surrealista Moniz Pereira, e lembro-me dele em casa da minha avó, depois em casa da minha mãe, e quando ela morre ele passa para mim”, recorda Cláudia. “Por isso ele funcionava como uma espécie de portal para a minha mãe. Lembro-me da minha mãe me ter dito ‘devias escever sobre a senhora que vendeu este quadro à tua avó. Era a esteticista dela, e era uma poeta incrível, devias escrever sobre ela”. E eu pensava, como é que a minha mãe, uma mulher inteligentíssima com 3 cursos superiores, me manda escrever sobre a esteticista da minha avó” (risos).

Agora, decidiu seguir-lhe o rasto. Quem seria a misteriosa esteticista também poeta também dona de arte surrealista que por momentos cruzara a vida da sua família? “Fui procurar na antologia da Natália Correia e de facto encontrei uma Leonor de Almeida, com poemas magníficos. Comecei então à procura dela. O problema é que não encontrava nada, era como se ela nunca tivesse existido”.

Quanto mais lhe escapava, mas a perseguia. “ Ela tinha publicado 4 livros que não encontrei em lado nenhum e a última coisa que se sabia era que em 1960 tinha ido para a Dinamarca. Não havia data de nascimento, não havia data de morte, não havia nada salvo os poemas. E como eu não conseguia escrever nada sobre nada, essa busca era uma forma de me ligar à minha mãe, era uma coisa que eu gostaria de ter feito com ela e para ela.”

Mas Leonor escapava-se de todas as maneiras. “Ainda por cima ela aldrabava a data de nascimento, aldrabou várias vezes em vários sítios e em vários anos. A certa altura consegui descobri-la nos anais da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, portanto‘ela foi um ‘homem de letras do Porto’ (risos).”

Aos poucos reconstruiu o puzzle de uma mulher incrível: Leonor de Almeida foi poeta, enfermeira, mãe, viajante, aventureira (e sim, esteticista), mas até agora não se sabia nada da sua vida. Ao longo de 3 anos de coincidências surreais, Cláudia foi construindo o seu retrato até à coincidência final (atenção que é um spoiler, mas prontos): “Ao fim de três anos de becos sem saída, quando já não conseguia descobrir mais nada, fui arrumar o atelier e cai uma fotografia, uma polaroide de 1971 onde a minha avó tinha escrito os contactos da Leonor, que me ajudaram a chegar à família dela. Ela tornou-se amiga da minha avó, e na última frase da última carta que lhe escreveu perguntava-lhe se o bebé já tinha nascido. Esse bebé era eu.”

Um artista deve ter consciência social?

E pronto – tenho a dizer-vos que este é um dos livros mais improvavelmente interessantes que li nos últimos tempos. O que acontece depois da primeira página é uma busca de uma mulher já morta por outra mulher. E o enredo transforma-se quase num filme de ação, em que a persistência da ‘detetive’, alguns golpes de sorte e um enorme sentido de ritmo conseguem transformar a procura de uma poetisa desconhecida num carrossel de emoções.

Percebemos que a descoberta de Leonor foi a salvação de Cláudia, à medida que o encontro de duas escritoras através dos tempos se transforma numa comovente entreajuda feminina: Leonor é retirada dos escombros do passado (desculpem lá, está-me a dar para o drama), Cláudia é retirada dos escombros do presente. E o leitor segue a busca com igual prazer. Sentimo-nos como naqueles filmes em que o herói entra num táxi e grita ao taxista “Siga aquele carro!” e o taxista obedece sempre e sem nunca achar isto minimamente estranho.

Então e isto não dava um filme? “Pedi subsídio ao ICA, mas acabei por desistir. Agora estou com outro projeto também sobre mulheres, e fiquei muito contente porque o meu filme ‘4 mulheres à beira da água’ foi selecionado para dois festivais, um cá e outro no Japão. Escrevi-o para mulheres que não têm grandes oportunidades de terem bons papéis principais. Envelhecer para uma mulher é sempre injusto, mas no cinema é ainda pior.”

Tem dois filhos rapazes: como é que se educa um feminista? “No básico. Lá em casa eles fazem o mesmo que eu, cozinham, põem a mesa, arrumam. Aliás, o último autoretrato que fiz sou eu vestida de criada francesa e eles de lordes ingleses e eu estou a servi-los (risos). Eles participam nos autoretratos desde que nasceram, tenho retratos do Henrique recém-nascido e eu de super-mulher com uma esfregona na mão (risos). Se somos um país machista? Claro que somos. Mas continuo a achar que estamos no bom caminho. Adoro homens mas acho que nós mulheres temos de nos apoiar muito mais umas às outras.”

Do ponto de vista de quem cria, as mulheres são mais interessantes’ “Somos muito menos previsíveis. Somos mais complicadas, somos gatos e os homens são cães. E a mim interessam-me sobretudo as mulheres mais velhas, por isso é que escrevi papéis principais para mulheres com mais de 50 anos: a Mina Andala, a Maria do Céu Guerra, a Ana Padrão e a Lara Li. A partir de certa idade, começas a ser a mãe de, avó de, ou a tia de, e não seres a criada de já vais com muita sorte. E se fores de origem africana, ainda pior.”

Um artista tem de ter consciência social? “Acho que não tem de ter. Eu tenho, e gosto disso. Se faço uma fotografia vestida de varina que em vez de sardinhas carrega bolas de futebol, a malta ri-se mas fica a pensar. É o que eu pretendo. Acho que há artistas que perdem muito quando se posicionam politicamente. Mas no meu caso gosto de dar o meu contributo pelas mulheres, pelo planeta, pela sustentabilidade. Tento chamar a atenção para isso e tento educar bem os meus filhos. Mas não posso fazer muito mais.”

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