Na nossa edição de novembro de 2021 celebrámos os 80 anos de carreira da maior diva do nosso país na sua sala, a ver fotografias e a fazer festas à Fedra. Recorde a entrevista de Catarina Fonseca, com fotos de Miguel Ângelo.

“Olhe que ela não é muito amigável.” Eu olho para a Fedra e a Fedra olha para mim. Finalmente deixa-se cair em cima dos meus pés. Tomo aquilo como um sinal: um cão é que manda sempre numa casa. Vamos lá começar a conversa.

A Fedra está estrategicamente entre mim e a minha ‘ídola’. Em toda a volta, por toda a casa, há fotografias, cartazes, livros, recordações. “Não há acervo disto em Portugal”, ressalva o realizador Tiago Durão, namorado de Lídia Muñoz, que nos faz companhia durante a conversa. “A avó sempre guardou tudo. Está ali o cartaz dos ‘Vizinhos do Rés-do-Chão’, por exemplo. E ali ‘O Homem do Ribatejo’. Fui eu que os emoldurei. Às vezes abro um livro e salta-me um bilhete da ‘Zerlina’ ou uma fotografia da ‘Casa do Lago’.”

Eu tenho uma fotografia dessas. A primeira vez que vi Eunice, na peça ‘Memórias de Sarah Bernhardt’, foi em 1984. Eu tinha 14 anos, óculos e ar de nerd. A Eunice tinha uma cabeleira gigante que eu sempre achei que era peruca (“Não era, era o meu próprio cabelo”, diz-me agora, “só que frisado”), maquilhagem de clown, e passava mais de duas horas de palco dando vida a outra diva. Saí em estado de choque e decidi ali mesmo ser atriz (felizmente que não cumpri todas as promessas que fiz). Voltei quatro vezes para a ver, sem saber bem o que me levava ali. Hoje sei.

Agora tenho a diva aqui, na minha frente, e o velho fascínio regressa. Nem sei por onde começar. Como resume Tiago Durão, autor do documentário sobre a sua vida ‘Eunice ou carta a uma jovem atriz’, “na minha avó está toda a história de um século de cultura portuguesa. Ela nasce numa altura em que rádio pouco há, televisão não existe, em cinema só havia o Manoel de Oliveira a começar, e ao longo do tempo a Eunice vai marcar tudo isto: o teatro, o cinema, a televisão. Mande-me um nome para cima da mesa, e trabalhou com a avó.”

O palco nas veias

Decido começar pelo princípio, que é o que mais me fascina porque é o que está mais longe e é mais exótico. As suas origens não davam um filme, davam vários filmes. O antepassado mais ilustre é António Augusto de Campos, primogénito do Conde de Pinhel. Como Augusto não queria mais nada senão fados e guitarradas, o pai chamou-o e impôs-lhe o casamento com uma mulher mais velha. Em vez da viúva rica, Augusto casou com uma tecedeira da Covilhã, ficando assim deserdado mas desobrigado.

O casal formou um grupo de teatro e teve três filhos. Uma dessas filhas, Augusta, conheceu Francisco do Carmo e formaram também eles uma troupe de teatro ambulante, que percorria as pequenas terras. Cansados da correria, acabaram por assentar arraiais na Amareleja.

Do outro lado da árvore genealógica estão os Cardinali Muñoz, e passamos do teatro para o circo mas as paixões continuam. Reinava no século XIX uma italiana artista de volteio a cavalo que certo dia se apaixonou por um violinista espanhol, de seu romântico nome Angel Muñoz. A paixão foi tão grande que Angel largou tudo para ficar com Albina, e a família formou um novo circo que levava alegria aos sítios mais longínquos do país.

O encontro entre estas duas famílias de artistas, os Carmo e os Munõz, dá-se com Hernâni Muñoz, músico, bailarino e afinador de pianos, e Mimi Carmo, atriz, e desse amor (adivinhem lá) nasce uma nova troupe, os Mimi Muñoz. Em 1928 nasce também a primeira de três filhos, Eunice, que subiu ao palco aos quatro anos.

A filha recorda as diferenças entre os pais. “O meu pai vinha do circo. Tinha ascendência italiana e espanhola, a minha mãe era portuguesa. E tinham temperamentos diferentes. Ele era muito bravo, saltava para o conflito com uma facilidade tremenda. A minha mãe era mais calma e muito inteligente. Eu tenho coisas dos dois.”

Ainda havia a tremenda avó Augusta, que viu atuar com 7 anos. “Lembro-me muito bem de a ver. Era uma grande atriz. Era fantástica.”

A transição para o teatro dito clássico faz-se pela mão de Amélia Rey Colaço, em 1941, quando precisou de quatro raparigas para se juntarem a Maria Lalande na peça ‘O Vendaval’. Nem de propósito, Tiago põe-me o livro no colo. Está assinado pela autora, Virgínia Vitorino. “Ainda se lembra de alguma das suas deixas?”, pergunto. Eunice olha para mim como se eu fosse louca, e ri-se. “Claro que não. Por favor. Foi há 80 anos.” Toma lá.

O glamour de um mundo perdido

Mas foi aí o princípio de tudo. A partir de então, Amélia Rey Colaço, a grande senhora do teatro português, considera-a sua discípula e herdeira. Além de D. Amélia, Eunice contracenou com todos os nomes mais célebres: Palmira Bastos, Maria Matos, Raul de Carvalho, Ribeirinho, Vasco Santana, Villaret, Maria Helena, Maria Lalande, Irene Isidro… “Mas mestres, só tive dois”, explica. “A D. Amélia e o Mestre Francisco Ribeiro. A mestra era uma mulher muito à frente do seu tempo. Aprendia-se muito com ela e eu aprendi tudo: a andar, a falar. Era muito calma mas sabia o que queria. Era muito exigente, mas um encenador tem de o ser. O Mestre Ribeiro era um homem que muita gente achava difícil e violento, e era, mas sempre teve um fraco por mim, não sei porquê. Gostava muito de mim e ensinava-me tudo.”

Com apenas 14 anos matriculou-se no Conservatório, que na altura era uma obrigação decretada por lei para quem queria ser ator. Ainda hoje Eunice defende a importância da formação: “É muito importante estudar teatro a sério. A mim deu-me ferramentas, noção de passado, saber o que estava a fazer.” Enquanto estudava, foi fazendo pequenos papéis ao lado dos atores mais importantes da altura e aos 18 anos, na noite em que se formou no Conservatório, o seu nome já aparecia nos cartazes do mesmo tamanho que o de Mirita Casimiro e Vasco Santana.

Muito mais tarde, nos anos 60, chegou a contracenar com a mãe, Mimi Muñoz (em ‘Cenas da vida de uma atriz’ e na ‘Dama das camélias’). Era difícil contracenar com uma mãe? “Não, era exatamente a mesma coisa que contracenar com outra atriz qualquer. Em cima do palco não éramos mãe e filha. Éramos só atrizes. O mesmo acontece com a minha neta Lídia, nesta peça que fazemos agora, ‘A margem do tempo’.” Recorda que teve receio quando a neta lhe disse que queria ser atriz. “Tinha receio porque ela tinha de ter talento. Eu nessa altura não sabia se ela o tinha. Agora sei. É brilhante. E é bom saber que tenho uma seguidora. Nesse aspeto estou descansada.”

Nasce-se com talento? “Tem de haver sempre pelo menos uma réstia de talento. Ao resto chega-se com inteligência e um pedaço de trabalho.” Afirma que a neta ensinou mais à avó do que a avó à neta: “Ensinou-me, por exemplo, a ver-me ao espelho. É curioso que toda a gente pensará que é o contrário, que sou eu que lhe ensino a ela, mas é ela que faz com que eu descubra muitas coisas.” A própria Eunice afirmou uma vez que ser ator era mostrar o espelho às pessoas… “E hoje continua a ser essa a missão de um ator. A nós, atores, o teatro dá-nos acima de tudo um pedaço de magia.”

Está-se a perder essa magia, esse glamour do teatro que havia nos anos 40? “Está. Dantes, o teatro era uma festa. Gostava que se recuperasse isto, mas também percebo que o mundo mudou muito. O que é que substituiu esse glamour? Francamente, não sei. Sei que não é igual, nem podia ser.”

Conhecer outros mundos

O cinema foi outra aventura. Faz ‘Camões’, a superprodução de Leitão de Barros, que lhe valeu, com apenas 17 anos, o prémio Melhor Atriz do SNI. E fez mais 12 filmes, entre os quais ‘O Homem do Ribatejo’, onde não apenas atuava mas cavalgava pelas lezírias. “Aprendi a andar a cavalo de propósito para o papel”, recorda. “Só caí uma vez, e foi de propósito, porque tinha de o fazer para o papel. Atirei-me lá de cima.”

Em 46 veio a terceira aventura: aos 19 anos casa-se com o arquiteto Rui Couto, que fizera os cenários de ‘Camões’, onde se conheceram. Foi um casamento breve, de que nasceu a primeira filha, Susana. Mas não deixou os palcos e levava a bebé para o camarim. “Certa vez, na peça ‘Noite de 16 de janeiro’, chegou a hora de subir à cena e comecei a sentir que estava a pingar leite”, recorda. “Era uma cena que se passava no banco dos réus, num tribunal, mas não pude evitar. Nunca soube se o público deu por isso ou não.” Ser mãe tornou-a uma pessoa diferente? “Claro que tornou. Mudei mesmo muito. Fiquei mais sensível, mais frágil. Mais atenta.”

Tempos depois, decidiu parar. Tinha feito drama, comédia, opereta, revista, mas precisava de conhecer outras vidas. Com apenas 23 anos, mas já 10 de carreira, não conhecia nada além do mundo do teatro. Então arranjou emprego como caixeira numa loja de cortiças no Príncipe Real e depois como secretária numa fábrica de cabos elétricos, onde conheceu o engenheiro Ernesto Borges, com quem viria a casar-se. O que é que encontrou fora do teatro?  “Fora do teatro encontrei acima de tudo outra gente, outras pessoas, outras mentalidades. Era disso que eu estava à procura. Porque o teatro é um ambiente muito fechado. Não se conhece nada do mundo, lá dentro. É tudo muito bonito, no teatro, mas é tudo tão diferente da realidade… Eu senti isso e resolvi sair.” Achou que tinha de escolher o teatro em vez de ser o teatro a escolhê-la. Acena. “Tal qual. Foi mesmo isso.”

Quatro anos depois, resolveu voltar: porque o marido a convenceu e porque os colegas pediram. “Há uma carta no Museu Nacional do Teatro a pedir o regresso da Eunice ao teatro”, conta Tiago Durão. “E repare que ela tem só 23 anos!”

Reestreou-se, portanto, no Teatro Avenida, em 1955, naquela que foi, segundo o crítico Vítor Pavão dos Santos, “a mais sensacional reaparição de uma artista teatral que teve lugar este século em Portugal”. E voltou no papel da guerreira Joana d’Arc. O que é que tinha mudado, na altura de entrar num palco (na guerra)? “Quando voltei, o mundo do teatro continuava lá. Estava lá tudo. Foi o que sempre foi.” Mas agora, era uma escolha. Não tornou a abandonar o teatro, embora se afastasse pouco depois para ter mais um filho. Teria 4 de Ernesto Borges: Joana, António, Pedro e Maria.

O milagre de Eunice

Como era fazer teatro antes e depois do 25 de Abril? “O que mudou mais foi sem dúvida nenhuma a censura”, conta. “Muitas peças foram censuradas. Por exemplo, só conseguimos fazer a ‘Mãe Coragem’ nos anos 80. Até ao 25 de Abril tinha de se ir à volta do poder. Era acima de tudo incómodo.”

Entre muitas peças, uma delas ficaria célebre: ‘O Milagre de Ana Sullivan’, que conta a história comovente da relação entre Helen Keller, cega, surda e muda, e a sua professora, Ana. Ao lado de Eunice estava Guida Maria, então com apenas 14 anos (‘Coitadinha’, diria Eunice mais tarde, ‘andávamos as duas cheias de nódoas negras’). A peça teve uma produção atribulada: “A atriz principal teve de desistir”, conta Tiago Durão. “Então o Vasco Morgado ligou à avó e disse que era a única que podia fazer a Ana. Problema: tinha apenas alguns dias para decorar o papel. Então a avó foi para um hotel, para estar totalmente concentrada. A escritora Alice Ogando disse mesmo que tinha posto em causa toda a sua carreira, tal era a probabilidade de as coisas correrem mal.”

Estava nervosa na estreia? “Claro que estava”, responde Eunice. “Mas eu ficava sempre nervosa. Não era coisa que passasse com o tempo.” Ritual antes de entrar em cena, havia: “Persignava-me sempre. Mas não era a única. Muitos atores faziam isso.”

Seguiram-se êxitos como ‘Fedra’, em Cascais, onde Eunice conheceu o tradutor da peça, o poeta António Barahona da Fonseca, relação da qual nasceria a sua última filha, Eunice (ou Bara). Casariam em 1970, na mesquita de Lourenço Marques seguindo o rito islâmico e adotando os nomes de Mina e Muhammad Rashid.

Já depois do 25 de Abril, o cume da sua carreira foi a ‘Mãe coragem’ que Amélia Rey Colaço tentara fazer em 55 mas que fora então proibida. Finalmente levada à cena em 1986, no Teatro Aberto, com encenação de João Lourenço, conta a história de uma vendedora ambulante que perde os filhos na guerra.

Nunca fugiu de papéis complexos, fisicamente exigentes, como ‘Zerlina’, ou ‘O ano do pensamento mágico’. Como decora os papéis? “Ando por aí. Fiz quilómetros de corredor.”

Precisamos de atores

Outra aventura foi um género totalmente novo: ‘Passa por mim no Rossio’, onde Filipe La Féria recria o teatro de revista e Eunice evoca Estêvão Amarante e Ivone Silva. “’Era tão divertido de fazer como de ver”, recorda hoje. “Era um trabalho muito diferente de tudo, uma magia, uma emoção, muita gente em palco.” Além de La Féria, enumera os encenadores com quem trabalhou: “O João Perry, o Carlos Avillez, o João Lourenço, o Ricardo Pais, o Cintra, o João Mota, o Vítor Garcia…” Como diz o Tiago, foram todos…

Eram pessoas difíceis? Abana a cabeça docemente, quase surpreendida, “não, não eram difíceis”. Pico-a: “Então são os atores que são difíceis?” “São”, responde Tiago Durão. “A avó é difícil, eu sou difícil, a Lídia é difícil. A Simone disse uma vez, quando o Carlos Cruz lhe perguntou porque é que ela era tão agressiva, que ‘tinha de se defender’. Porque nós estamos habituados a que nos ponham a mão na boca. E também há um sentido muito reativo, muito inconformista, nunca estamos totalmente satisfeitos, a obra nunca está completa. Mesmo para um realizador, há sempre uma luz ou um cenário para mudar. E temos de saber abandonar uma obra. Uma obra acabada é sempre uma obra abandonada.”

Do sofá, a avó acrescenta: “Um ator é sempre impaciente.” Sorri. Agora é paciente à força, desde que vários problemas de saúde destruíram a sua rotina. “Há uma alteração de vida, tem de se ir ao hospital, é chato fazer exames, tratamentos”, nota Tiago. “Mas depois recupera-se o ritmo de vida normal.”

Afinal, um ator não é aquele que recomeça constantemente? Parece que não. “Isso é bonito e romântico visto por fora, mas é muito duro visto por dentro, porque uma pessoa habitua-se a trabalhar quatro ou cinco meses, dois anos a fazer um filme, com aquelas pessoas, e de repente essa relação acaba, vai cada um para seu lado e nunca mais se veem”, explica Tiago. “Isso dá uma vida feita de quebras constantes, vínculos perdidos.” A avó confirma: “Há esse luto do fim, claro.” Mas o teatro também lhe trouxe amigos preciosos, como a atriz brasileira Fernanda Montenegro: “É uma pessoa maravilhosa. Mas conversamos menos sobre teatro e mais sobre outras coisas.

Como é a Eunice público? Consegue ver as peças de outros atores inocentemente? “Consigo totalmente. Vejo tudo no maior estado de pureza. Cheguei a ver peças várias vezes, quando me interessavam.”

“A avó tem uma coisa que eu acho admirável”, acrescenta Tiago, “vê um filme, como aconteceu com o documentário, e dez dias depois vê o mesmo filme com o mesmo encanto, como se fosse a primeira vez.”

Também gosta de reler livros preferidos: “Continuo a gostar de ler e de reler. E gosto muito de ler os russos. Dostoievski, Tolstoi. Têm um lado muito dramático, muito teatral, se calhar por isso é que gosto tanto deles.” Continua a ter fé no teatro: “Continuamos a precisar de teatro, para termos uma referência na vida. Para nos sabermos contar. Mas eu sou suspeita, não é…”

Trazer novos públicos ao teatro

A televisão trouxe-lhe um público diferente desde que em 93 se estreou com ‘A Banqueira do povo’: “Sempre achei isso importante, trazer novos públicos ao teatro.”

O neto não concorda. “Acho que isso é mito. Acredito que haja pessoas que tenham ido ver a avó ao teatro por causa das coisas que fez em televisão, mas não acredito que vão ver os novos atores. Ou seja, isso não é mito quando estamos a falar de pessoas como a minha avó, mas é quando se fala de recém-chegados.”

Pronto, deixemos a televisão porque há uma coisa verdadeiramente importante que não quero sair daqui sem tirar a limpo. A Eunice contracenou com todos os atores de Portugal: Curado Ribeiro, Estêvão Amarante, Virgílio Teixeira, Jacinto Ramos, Alves da Cunha, já para não falar nos mais ‘recentes’ Guilherme Filipe ou Diogo Infante. “Vamos lá saber: qual era o mais giro? O Curado Ribeiro?” Abana a cabeça. “Pois toda a gente dizia que sim, mas eu não lhe achava muita graça…(risos) Afinal, não me casei com nenhum ator. Casei com um poeta.” Então, o que é que um homem tinha que ter para lhe achar graça? “Charme. É fundamental. E não é tão comum como isso.”

Fico a pensar na palavra charme, tão bonita. Pergunto-lhe a sua palavra preferida: “Trabalho. Com trabalho, consegue-se tudo.”

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