Entrevistámos Alexandra Bento, Bastonária da Ordem dos Nutricionistas, sobre o que está a mudar nos hábitos de alimentação dos portugueses.
1. A dieta alimentar dos portugueses está a mudar? Qual a principal ‘tendência que identifica?
Os portugueses estão a consumir produtos de origem animal a mais e produtos de origem vegetal a menos. O padrão alimentar dos portugueses tem vindo gradualmente a afastar-se dieta mediterrânica e, em geral, grande parte da população consome sal, gorduras saturadas e açúcar (especialmente as crianças e os adolescentes) acima dos níveis recomendados. Este é o mais recente retrato dos hábitos alimentares dos portugueses, resultante do último inquérito alimentar nacional. Adicionalmente, Portugal tem intensificado erros alimentares, já que muitos portugueses se deixam mergulhar em mitos, falsos conceitos, modas, dificuldade de perceção em relação àquilo que é a verdadeira mensagem da alimentação saudável.
A tendência alimentar para aumentar os produtos de origem vegetal é sem dúvida saudável. Mas, se os portugueses excluírem todos os alimentos de origem animal, esta tendência tornar-se-á mais restritiva, que em última instância pode não ser saudável.
2. É comum ouvir as pessoas dizer ‘cortei com o açúcar que é um veneno para o organismo’, mas quanto de científico é que tem esta afirmação? E de que açúcar estamos aqui falar dado que está presente em tantos e tão variados alimentos…
A evidência científica atualmente disponível sugere-nos uma relação entre o consumo excessivo de açúcares e o surgimento e desenvolvimento de carie dentária e de excesso de peso, bem como das doenças crónicas relacionadas com o peso a mais. Neste caso em particular, estamos a falar daquele açúcar que é intencionalmente adicionado aos alimentos e às bebidas pelo próprio consumidor, pela indústria alimentar ou na restauração.
3. Assistimos a uma verdadeira ‘guerra’ à lactose. Há fundamento científico para excluirmos os produtos lácteos da nossa alimentação?
Tem vindo a observar-se uma tendência na população portuguesa para a exclusão de determinados alimentos sem que haja um diagnóstico de doença que a justifique. Excluir a lactose sem que haja intolerância é injustificável. A intolerância à lactose é a patologia associada à incapacidade do organismo em digerir e metabolizar a lactose (o principal açúcar do leite). De resto, até ao momento não existe evidência científica que suporte os benefícios para a saúde de uma alimentação sem lactose, para a população em geral.
4. E no caso do glúten? Estamos a ir pelo mesmo caminho…
No caso do glúten, a situação é exatamente a mesma. Estudos realizados na população em geral confirmam o aumento do número de consumidores que adotam uma dieta sem glúten independentemente da presença ou não de uma doença diagnosticada associada ao glúten (seja ela a doença celíaca, a alergia ao trigo ou a sensibilidade ao glúten não celíaca). De facto, de acordo com um estudo elaborado pela Nielsen, os produtos alimentares sem glúten cresceram 13%, face ao ano passado e os mesmos existem cada vez mais em lares onde a doença celíaca não está presente[1]. Contudo, é importante alertar que uma dieta isenta de glúten é indicada apenas no tratamento de doenças associadas ao glúten. Nos restantes casos, não deve haver lugar à exclusão do glúten, até porque não há evidência científica que suporte os benefícios para a saúde de uma dieta isenta de glúten para a população em geral. Adicionalmente a eliminação de determinados alimentos ou nutrientes sem uma patologia que o justifique, por uma crença, por modas ou por alguma passagem de informação que porventura não é credível, pode inclusivamente aumentar o risco de desenvolver uma deficiência de algum nutriente. A decisão para a exclusão de glúten, ou de outro nutriente, deve ser tomada de forma consciente e orientada por um nutricionista, que é o mesmo que dizer que deve haver uma razão clínica para esta resolução.
5. Há uma ‘moda’ também no que diz respeito às proteínas (que queremos ingerir) e à gordura (que é um bicho papão). As prateleiras dos supermercados enchem-se de produtos ‘ricos em proteínas’ e com ‘0% gordura. As pessoas já não procuram as proteínas na carne e no peixe, como era o tradicional, mas nestes ‘substitutos’. Estão eles à altura? E necessitamos mesmo de tanta proteína? E de tão pouca gordura?
A ingestão diária de proteína está relacionada com o peso e com o nível de atividade física dos indivíduos. 57,1% da população portuguesa tem uma ingestão proteica acima do valor recomendado, com especial destaque para o grupo das crianças. Por outro lado, 48,6% dos idosos ingerem quantidades de proteína abaixo daquilo que é a recomendação. No que respeita à gordura, a maioria dos portugueses cumpre a recomendação de ingestão deste nutriente. Tendo em conta este retrato com respeito aos hábitos alimentares dos portugueses, deveremos caminhar no sentido de reverter esta desadequação. Os produtos ‘ricos em proteínas’ poderão fazer sentido para a população mais idosa, para os quais a ingestão proteica tem particular interesse para a preservação da massa e força musculares ou em situações de prática desportiva, com o respetivo acompanhamento de nutricionista. Para a restante população portuguesa, não há qualquer benefício no aumento da quantidade de proteína ingerida.
6.Há alguma justificação – que não ideológica – para deixar de comer carne, nomeadamente a de vaca?
Os portugueses consomem em média 100g por dia de carnes vermelhas (onde se inclui a carne de vaca) e simultaneamente, mais de metade dos portugueses não consome atualmente a quantidade de fruta e produtos hortícolas recomendada pela Organização Mundial de Saúde (pelo menos 400g por dia).
Existe, por isso, justificação para que se caminhe no sentido da redução da quantidade e da frequência de consumo de carne de vaca para níveis enquadrados nas mais recentes guidelines alimentares (entre 100 a 200g por semana), privilegiando simultaneamente o aumento da ingestão de alimentos de origem vegetal. Contudo, os portugueses não necessitam de deixar de comer carne de vaca. Este alimento continua a ser muito importante na nossa alimentação, sendo rica em proteínas, vitaminas (essencialmente B12) e minerais (ferro e zinco).
7.No caso dos adoçantes, a stevia ganha peso. Não acarreta riscos para a saúde? E os restantes adoçantes?
Os adoçantes (ou edulcorantes) apenas podem ser utilizados na alimentação após serem submetidos a um longo processo científico de avaliação de risco que comprove a sua segurança para a saúde humana, realizado por entidades científicas. A nível europeu essa avaliação está a cargo da EFSA (European Food Safety Authority) e envolve uma análise rigorosa de estudos idóneos de toxicidade aguda e crónica, estudos metabólicos, de reprodução, mutagenicidade e carcinogenicidade.
Os adoçantes são porventura uma das substâncias mais estudadas na nossa cadeia alimentar. A sua segurança tem vindo a ser revisitada com regularidade e confirmada por várias entidades regulatórias, designadamente a EFSA.
A DDA (Dose Diária Admissível, que corresponde à quantidade de miligramas de adoçante por kg de peso corporal por dia) é uma recomendação de consumo máximo destas substâncias adoçantes e que normalmente ultrapassa em larga medida, o consumo habitual da maioria das pessoas. Por exemplo, a DDA para os adoçantes à base de stevia corresponde a 4mg/kg de peso corporal por dia. Contas feitas, uma pessoa de 60 kg não deve ingerir mais do que 240 mg por dia deste adoçante.
Contudo, neste contexto, é importante deixar a nota de que o padrão de consumo alimentar individual e potenciais alterações que nele ocorram, no contexto do aumento de consumo de alimentos e bebidas com adição de adoçantes, é determinante para o nível de exposição a estas substâncias. Ou seja, o ideal é preferirmos os alimentos com o seu sabor natural, sem os termos que adoçar com açúcar ou edulcorante.
8.O que está a acontecer à nossa dieta mediterrânea, que parece ser progressivamente abandonada numa sociedade crescentemente preocupada pelo corpo e pela saúde? Seria ela de facto tão ‘má’ para nós?
De verdade é um contrassenso. A crescente preocupação com a saúde deveria ser acompanhada por uma crescente aproximação dos nossos hábitos alimentares ao padrão alimentar mediterrânico. Mas, o retrato da nossa alimentação revela-nos um afastamento deste padrão alimentar salutogénico. Temos de o saber reabilitar, uma vez que é o padrão alimentar do qual há mais evidência científica de que é uma forma saudável de comer e que guarda uma relação muito próxima com a nossa tradição e a nossa gastronomia. Urge encetar esforços para que os portugueses saibam escolher o caminho certo para a sua saúde: uma alimentação variada, equilibrada, com produtos de qualidade, da época e de proximidade e em refeições tomadas com tempo: a nossa prodigiosa dieta mediterrânica.
[1] “Categoria de alimentos sem glúten cresce a dois dígitos”, disponível em https://grandeconsumo.com/categoria-de-alimentos-sem-gluten-cresce-a-dois-digitos/#.XZntCEZKg2w