Estima-se que 200 milhões de meninas e mulheres vivas hoje tenham sido submetidas à mutilação genital feminina (MGF). Além disso, todos os anos, cerca de três milhões de raparigas correm esse risco, a maioria das quais antes de completarem 15 anos.
Os dados são da Organização Mundial da Saúde (OMS) e mostram-nos uma realidade difícil de engolir sobre a prática, que envolve a excisão parcial ou total da genitália externa feminina. Reconhecida internacionalmente como uma violação dos direitos humanos das raparigas e das mulheres, é, também, uma forma extrema de discriminação de género, refletindo a desigualdade profundamente enraizada entre os sexos.
Existe ainda outra questão a ter em conta, sublinha a instituição: “Viola os direitos à saúde, segurança e integridade física; o direito de estar livre de tortura e tratamento cruel, desumano ou degradante; e o direito à vida quando o procedimento resulta em morte”. No entanto, ainda é realizada em pelo menos 30 países, concentrando-se principalmente nas regiões ocidental, oriental e no nordeste do continente africano, bem como em algumas nações do Médio Oriente e da Ásia.
Sem esmorecer, a Organização das Nações Unidas estabeleceu o objetivo ambicioso de erradicar todas as formas de MGF até 2030, mas isso exigirá mudanças nos métodos existentes para enfrentar o problema.
A propósito do Dia da Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina, assinalado anualmente a 6 de fevereiro, falámos com Catarina Marques Rodrigues. Jornalista e fundadora do Gender Calling, uma plataforma de jornalismo sobre mulheres e desigualdades, tem dedicado a carreira a vários trabalhos sobre este tema e explica-nos que ainda há um longo caminho a percorrer para mudar mentalidades.
Quais são as razões para a mutilação genital feminina ainda existir?
É uma prática que está assente em questões culturais, sobretudo na submissão da mulher ao homem. Defende-se que a mutilação dos órgãos genitais femininos é importante para manter a virgindade e a fidelidade das mulheres aos maridos e garantir que estão “puras e sem grandes desejos sexuais”, numa lógica de que o prazer que importa é o do homem. É um ritual de honra da família e uma passagem de tradição às filhas e às netas, para serem aceites na comunidade. Quem a defende invoca também razões religiosas: há líderes islâmicos que continuam a defender que a mutilação genital feminina é uma recomendação do Islão, o que já se provou não ser verdade. Alguns dos países onde a prática se mantém são a Guiné-Bissau, a Guiné-Conacri e o Senegal. Devido à imigração, temos também em Portugal mulheres que foram submetidas à prática.
Fala-se muito na questão cultural, mas não estaremos a falar de uma forma de controlar a sexualidade de jovens adultas e mulheres que se tornou a norma social em algumas culturas?
Sim, estamos a falar de violência com base no género de que é exemplo a mutilação genital feminina, mas também os casamentos forçados, os casamentos infantis e a violência sexual. Controlar a sexualidade das mulheres é controlar a sua identidade, a sua liberdade de escolha e a sua vida, porque as fragiliza física e mentalmente. Tornam-se deslocadas da família, da vida em comunidade; tornam-se dependentes financeiramente do homem. O abuso do corpo é muito mais do que físico.
Quais são as consequências para a saúde física, psicológica e sexual das vítimas desta prática?
O corte total ou parcial dos genitais é um ritual que pode durar poucas horas, mas deixa marcas para a vida toda. No momento, são dores inqualificáveis acompanhadas de fortes hemorragias, que podem mesmo levar à morte da bebé/criança. Se o corte não for feito segundo as regras de higiene, a possibilidade da transmissão de infeções e doenças é tremenda. O trauma psicológico convive com as mulheres durante anos e, geralmente, é um momento que nunca esquecem. Ao longo da vida, têm mais probabilidade de contrair infeções sexualmente transmissíveis, ter dificuldades em engravidar, desenvolver uma fístula obstétrica e vaginal, e passar por partos dolorosos. Outra consequência é a ausência de prazer sexual, que é um direito que lhes foi roubado. A maioria experiencia stress, ansiedade, dificuldades em dormir e outras patologias do foro psicológico.
Assim sendo, o que impede a MGF de ser completamente erradicada?
Existem várias convenções regionais e internacionais que exigem que a mutilação genital feminina seja crime, e em alguns desses países já está mesmo consagrada na lei como tal — na Guiné-Bissau, por exemplo, é crime desde 2011. Em Portugal, é crime autónomo desde 2015, sendo que há uma pena aplicável de prisão de dois a dez anos — a primeira condenação foi em 2021, a uma mãe que autorizou que a filha fosse mutilada. Não há um problema de leis, há um problema de implementação dessas leis, que está muito dependente de uma mudança cultural, de mentalidades sobre o papel da mulher e do homem; da divulgação de mais conhecimento sobre as consequências nefastas da prática; de desconstrução das razões invocadas para a sua continuação. O objetivo é trabalhar com as gerações que serão pais e mães no futuro para travarem a continuação de um ritual que só traz malefícios à vida das mulheres e das famílias.
Sabemos quem são as vítimas, mas quem perpetua esta prática?
São as famílias, que acreditam que o ritual ajudará à integração das meninas na sua futura família e na comunidade. Quem perpetua a prática acredita que é uma tradição, que é o suposto. Os rapazes têm um papel determinante em erradicá-la, visto que a razão para a sua continuidade é muitas vezes colocada no gosto do homem. Se eles se afirmarem contra a mutilação genital feminina, as próprias mulheres vão ter mais receio em seguir.
Como se pede desenvolver melhores leis anti-MGF, mais alinhadas com os direitos humanos?
As leis já existem, para quem as queira respeitar. Podemos e devemos desenvolver mais campanhas de sensibilização; mais trabalho com as comunidades e com as associações locais, que conhecem as mulheres e os homens e abordá-los diretamente; mais investimento na escolarização das crianças e dos adultos; mais divulgação de informação credível sobre o impacto da prática e sobre a não existência de vantagens para ninguém. Conhecimento é poder, sobretudo quando se tenta romper com rituais tão antigos.
Esteve recentemente na Guiné-Bissau, onde a excisão ainda é realizada na clandestinidade. Qual foi a realidade que encontrou?
Encontrei jovens mulheres que foram submetidas à mutilação genital feminina, que estão revoltadas com o que lhes aconteceu mas que já falam disso abertamente. Garantem que não farão o mesmo às suas filhas, juntam-se a movimentos, usam as redes sociais para participar em campanhas contra a MGF — o digital veio dar-lhes muito poder. Os casos de mutilação genital feminina diminuíram desde que foi consagrada como crime, mas continua a ser feita na clandistinidade e, agora, em bebés cada vez mais pequenos, que não poderão contar o que lhes aconteceu porque não se vão lembrar. Além disso, há quem aproveite para furar as orelhas enquanto faz o corte, para que o choro seja confundido com o choro da dor nas orelhas. Infelizmente há sempre quem crie táticas para fugir à lei, para não ser denunciado.
Como foi a experiência de falar com associações e entrevistar sobreviventes da prática?
Foi muito intensa, porque exige uma grande empatia e uma capacidade de ouvir sem condescendência. Eu sou jornalista há 10 anos e tenho feito várias reportagens sobre este tema, também aqui em Portugal, em bairros nos arredores de Lisboa onde moram comunidades com raparigas que foram excisadas. Para promover a igualdade de género é preciso pormo-nos no lugar daquela mulher, embora nunca seja possível sentirmos o que ela sente. Tento sempre tratar a história com respeito e cingir-me aos factos para poder ser profissional, mas confesso que depois, ao pensar sobre o que me foi contado, já me emocionei várias vezes.
Tendo em conta que existe uma grande comunidade bissau-guineense (e não só) em Portugal, o que dizem os dados sobre a prevalência de casos no País?
O número de casos registados pelas autoridades de saúde está a aumentar, porque os profissionais de saúde estão hoje mais formados sobre o que é a mutilação genital feminina e sabem como identificá-la nas consultas de ginecologia, nos exames ou nos partos, por exemplo. Em 2023, foram detetados 223 casos de mutilação genital feminina, o que é um aumento de 17,3% face a 2022. E já este ano foram detetados mais 15 casos. Reforço que um aumento de registos não significa necessariamente um aumento de casos — pode haver casos que antes não eram identificados pelos profissionais porque não estavam tão alerta para a prática.
O que podemos fazer, em Portugal, para prevenir e combater esta prática tradicional nefasta para as mulheres e crianças do sexo feminino?
Se temos em Portugal mulheres que foram submetidas à mutilação genital feminina, então também é
um problema português. Não podemos permitir que se perpetue esta violação dos direitos das mulheres, dos seus direitos sexuais e reprodutivos que, no limite, é uma violação dos direitos humanos e vai contra várias convenções internacionais assinadas por Portugal. Há que investir nas redes que estão em contacto com as comunidades provenientes de países mais propícios à realização da prática, dar formação aos profissionais das escolas situadas nessas regiões para que estejam a par caso haja alguma alteração de comportamento ou alguma queixa, investir em encontros comunitários para se conseguir quebrar o silêncio, sensibilizando também os homens e trazendo-os para a conversa (visto que elas, muitas vezes, só participam com a permissão do marido), investir na capacitação da saúde, também nas zonas mais críticas. É importante também que a população em geral saiba que esta é uma prática que se mantém, para que se possa insurgir contra ela, e aí entra o papel de trazer as histórias destas mulheres para o espaço público – é essa a minha missão.
O que acha do objetivo das ONU de erradicar a MGF até 2030? É viável?
A ONU já anunciou que, este ano, cerca de 4,4 milhões de meninas estão em risco de serem submetidas à mutilação genital feminina. É preciso um investimento global intenso. Faltam apenas 6 anos, por isso parece-me ambicioso, até porque as Nações Unidas também já anunciaram que, se nada for feito, o número de casos pode mesmo aumentar para 4,6 milhões em 2030.
Qual a importância dos ativistas locais, como a Catarina, para ajudar a atingir esse objetivo?
Eu sou jornalista e criadora de conteúdos sobre igualdade de género nas redes sociais. Tenho, por isso, uma comunidade de pessoas que se interessa por estes temas. A influência é fantástica, porque permite que uma mensagem se espalhe infinitamente — é nesse poder que acredito. Tento trazer diariamente as histórias das mulheres, os relatos e os factos, e sei que tudo isso ajuda a que outras pessoas se queiram envolver também. A violência com base no género é um flagelo que atravessou gerações e gerações de mães e avós, mas que pode ter um fim se assim o quisermos. Há que fazer a nossa parte.