
Numa edição [dezembro de 2024] dedicada à importância do sentido de pertença à comunidade, falar do SNS era inevitável – um sistema que reflete o princípio de que todos cuidam de todos. Mas por que entrevistar um economista sobre o SNS? Basta ver os noticiários para entender que, quando o tema é saúde e SNS, os custos ocupam sempre o centro das discussões. Por isso, a decisão de entrevistar Julian Perelman foi imediata, isto porque numa sessão pública promovida pela associação Causa Pública, no princípio do ano, sobre políticas de saúde, o nosso entrevistado foi um dos participantes e revelou um mundo de informações que são importantes e devem ser partilhadas. Venha daí conhecer essas e muitas outras!
Para começar peço-lhe que faça um diagnóstico muito resumido do SNS: os benefícios mas também os grandes problemas.
O grande benefício do SNS é ser financiado através de impostos que são progressivos, ou seja, as pessoas mais ricas pagam mais do que as mais pobres, e depois quem adoece vai ao médico e recebe serviços em função da sua doença, sem ter de pagar, mesmo se forem doenças graves que custam muito caro a tratar. É um sistema redistributivo, solidário na saúde. Comparando com outros países, conseguiu-se, ao longo dos anos, atingir níveis de esperança de vida muito elevados, dos melhores do mundo, taxas de mortalidade infantil e materna baixíssimas. É um serviço que tem tido muita qualidade e tem permitido garantir bons cuidados de saúde à população portuguesa. Vou dizer algo que poderá ser polémico: nós conseguimos bons resultados de saúde com gastos baixos.
Baixos?
Se compararmos o que se gasta em Portugal com o que se gasta na Alemanha, na Suíça, ou em França, é muito menos e, no entanto, conseguimos níveis de saúde também muito elevados, próximos dos que são observados nesses países. Comparado com os Estados Unidos então… bem, é incomparável, nós gastamos muitíssimo menos, 5-6 vezes menos, e a nossa saúde é bem melhor do que a saúde dos americanos e também muito menos desigual.
E quais são os problemas do SNS?
São vários. Há certos cuidados de saúde aos quais o SNS dá uma resposta muito fraca ou insuficiente, o que faz com que as pessoas tenham de pagar do seu bolso. A ausência de resposta à questão da saúde mental para mim é gritante. E depois temos o dentista, os óculos, a fisioterapia, os medicamentos… as pessoas continuam a ter de pagar do seu bolso, o que representa um encargo muito elevado para as famílias mais pobres. Neste momento, em Portugal, em média, cada pessoa gasta €800 por ano.
Para quem tem salários ou pensões baixas pagar essa quantia é um problema.
Para pessoas pobres é um fator de empobrecimento porque têm de escolher entre ir ao médico ou pagar a casa. Em Portugal, 1/3 das despesas de saúde são pagas pelas pessoas, do seu bolso, o que é valor elevadíssimo comparado com outros países.
Outra falha tem a ver com problemas organizacionais que levam a tempos de espera longos. Como as pessoas não têm que pagar, há um preço que é implícito, que é a espera, mas quando é longa isso leva a muito descontentamento o que faz com que recorram cada vez mais ao privado, inclusive, pessoas que não têm dinheiro.
Uma terceira falha é a falta de investimento na saúde pública. Tudo o que é pensar na saúde da população, na prevenção da doença, na promoção de bons hábitos alimentares, na melhoria de condições de vida, das condições de trabalho.
Pensar em poupar no futuro…
A saúde está em todas as políticas. No urbanismo, por exemplo, os bairros onde as pessoas vivem, a qualidade das casas, o acesso a alimentos saudáveis, tudo isto tem impacto na saúde. E isso é um ponto fraco em Portugal. Neste momento, temos uma população envelhecida e doente. As pessoas envelhecem mal e isso tem muito a ver com as condições de vida, os hábitos, e há pouca capacidade de ação, e aqui não é só o SNS, é dos governos, qualquer que seja, em atacar as causas mais profundas da saúde.

“Temos um SNS ultra escrutinado, cheio de regras para tudo e mais alguma coisa, e depois temos um setor privado na saúde que faz o que lhe apetece.”
O que está por trás do tempo de espera?
O grande problema do SNS é a gestão dos profissionais. Há muitos a ir para o estrangeiro, para o setor privado e há uma incapacidade cada vez mais gritante em dar resposta. Como é que conseguimos atrair e reter profissionais no SNS, em particular os médicos de família? Há profissionais que vão para o Reino Unido, Alemanha, Suíça, onde os salários são melhores. Como o setor privado também não fornece cuidados para doenças mais graves, consegue ter lucros e parece pagar melhor.
Agora, como o SNS é pago através de impostos, e não se quer aumentar impostos, pelo contrário, parece que o caminho é diminuir, é difícil aumentar muito o orçamento do SNS. E parece-me impossível que o SNS consiga competir com os salários que oferecem no estrangeiro e no privado. Portanto, tem que oferecer outras coisas, apesar de, obviamente, a questão salarial ser importante.
Está a referir-se a que coisas?
Tradicionalmente, o que o SNS oferece é mais algum prestígio, era aí que se fazia investigação, onde estava em inovação, portanto, esse seria um caminho que deveria ser retomado. Há muitos jovens médicos que querem fazer investigação, mas também querem mais flexibilidade, não querem estar presos a horários rígidos de 40 horas com as urgências. Temos de pensar nos profissionais que são mães, pais, nas grávidas… tem de haver flexibilização. O SNS tem gerido os recursos humanos de maneira muito centralizada e essa flexibilização devia poder ser feita ao nível mais local, mais perto dos profissionais. Com pessoas satisfeitas, mais motivadas, mais valorizadas, o SNS podia funcionar com menos pessoas.
Não são precisos mais profissionais?
O número de profissionais tem aumentado no SNS desde 2015. Foram contratados 25-30 mil profissionais nestes 8-9 anos e, no entanto, os problemas mantêm-se. Portanto, é um problema de gestão que tem de ser resolvido. Penso que é possível fazer melhor com menos pessoas desde que sejam valorizadas, acompanhadas, que haja flexibilidade, e, com menos pessoas, podia pagar-se melhor.
Quando se fala no Orçamento de Estado para a Saúde de x milhões, esse dinheiro vai todo para o SNS?
Essencialmente para o SNS. Para pagar os profissionais de saúde e depois os medicamentos, dispositivos médicos, os exames, os investimentos nas infraestruturas.
E parte desse dinheiro não vai parar o setor privado?
Ah sim, claro. Há que pagar a comparticipação dos medicamentos, portanto esse dinheiro vai para as farmácias e depois para a indústria farmacêutica, que o Estado financia. Podemos dizer que é dinheiro que vai para privado, embora neste caso, não há alternativa, o Estado não produz medicamentos.
Mas poderia produzir?
Isso é outra discussão, mas sim, poderia e acho que até deveria produzir. Estamos com um problema relativamente grave de escassez de medicamentos básicos, amoxicilina, paracetamol… e acho que o Estado podia-se chegar à frente, mas não é simples.
Voltemos ao orçamento…
Quando uma pessoa vai ao centro de saúde e precisa de fazer exames ou análises, o SNS não consegue dar vazão e as pessoas vão ter de os fazer num laboratório ou clínica privada e aí também é dinheiro que é reencaminhado para o setor privado.
Depois há coisas que os hospitais até têm meios para fazer, mas não conseguem e têm de enviar para o setor privado. Por exemplo, a lista de espera para cirurgia, se não conseguem dar resposta no tempo garantido, mandam fazer no setor privado.
E sabe-se qual é a percentagem do orçamento do SNS que vai para o setor privado?
Para 2022, último ano disponível, 15% da despesa do SNS foi para o privado, sem contar com a compra de medicamentos (2.200 milhões). Contando com medicamentos, o valor chega a 27% (3.800 milhões). É muito substancial.
E essa percentagem tem crescido?
Sim, o SNS não consegue dar resposta, os utentes, sobretudo quem tem mais dinheiro, vai para o setor privado. Por sua vez, este, para poderem responder a uma maior procura, tem de ir buscar profissionais ao SNS, e o SNS mais fica mais desfalcado, com mais problemas, o que faz que mais gente tenha de ir ao privado, e assim sucessivamente. Para voltar atrás, o SNS teria que ganhar capacidade de trazer esses profissionais de volta para o SNS e isso não é fácil.
Não é fácil, mas não é impossível…
Há 2 maneiras de dar a volta a isso. O SNS poderia melhorar em termos de gestão, fazer mais com menos se houvesse realmente uma valorização dos profissionais, flexibilidade, capacidade de os cativar com todo o tipo de de coisas interessantes.
Ou então, dar esta luta do SNS, tal como conhecemos, como perdida e considerar que se vai transformar num serviço de compra ao setor privado. O SNS, em vez de ser um serviço público, passaria a ser mais um seguro público, portanto os nossos impostos ficariam totalmente dependentes do setor privado. E isto é o que muita gente em Portugal, sobretudo os mais liberais, gostariam de ver. Há países onde esse sistema funciona muito bem, como na Holanda e na Alemanha. Mas isso só me inspira muito medo, não acredito nesse modelo no contexto português.
Porquê?
Porque o setor privado na Holanda, é essencialmente não lucrativo e altamente regulado. O nosso setor privado é lucrativo, são 3 ou 4 grandes grupos que dominam o mercado, têm um poder negocial muito grande e são, inclusive, detidos por grupos estrangeiros.
O nosso Estado tem uma capacidade de regulação muito fraca e, portanto, aí eu vejo o Estado e os contribuintes a ficar na mão desses grandes grupos privados com pouca capacidade negocial ou de auditoria. Não é um caminho que eu desejo para o SNS.
Os nórdicos têm um SNS como o nosso?
Sim, a Dinamarca, Suécia e Noruega têm um SNS forte, também financiado por impostos progressivos, e altamente descentralizado. Os municípios têm um grande poder na gestão dos hospitais, centros de saúde e profissionais. Há centralismo nas contribuições, ou seja, as pessoas pagam ao Estado e depois este redistribui o dinheiro pelos municípios e são estes que fazem a gestão. O que é ótimo, porque, senão haveria municípios muito ricos, poderia oferecer serviços fantásticos, e outros muito pobres, que não o poderiam fazer, e isso criaria grandes desigualdades.
Há pouco disse que os portugueses pagam do seu bolso €800/ano para a sua saúde. É mais do que os nórdicos desembolsam?
Sim, os portugueses pagam o dobro, e os ordenados na Noruega são infinitamente superiores aos nossos, mas também pagam impostos mais altos.
O SNS deles recebe mais dinheiro?
Muitíssimo mais, mais financiamento, descentralização, e uma capacidade de implementação de medidas que às vezes falha em Portugal. E de acompanhamento das medidas. Por exemplo, no setor do medicamento, os nórdicos decidiram que os novos medicamentos são muito caros, e que as pessoas têm de utilizar genéricos e biossimilares. Criaram logo uma task force, que vai de hospital em hospital convencer os médicos que os genéricos são tão bons como os outros, fazem uma monitorização e acompanhamento, detectam os problemas… ou seja, há uma capacidade depois de ir ao terreno e de implementar as medidas que muitas vezes em Portugal falha.
Na sessão da Causa Pública falou sobre o portal da transparência do SNS, o que é e para que serve?
O portal foi criado em 2016-17, e a ideia é fornecer uma série de informações sobre o que está a acontecer no SNS. Podemos ver número de consultas hospitalares e no centro de saúde, número de internamentos, de urgências… tudo o que é serviços. Há muita informação mensal, por região, por hospital. Depois temos informação sobre recursos humanos, ou seja, se eu quero saber quantas pessoas estão a trabalhar no SNS em Novembro de 2024, vou lá e vejo. Está dividido por médicos, enfermeiros, e sei em que hospitais estão a trabalhar. Tem informação sobre a lista de espera, tempos de espera, despesas com medicamentos. É um portal da transparência no sentido em que as pessoas podem ir ver como é que as coisas estão a correr. É uma ideia fantástica mas tem limitações.
Quais são elas?
A primeira é que a informação é muito sumária. Por exemplo, quando se diz que mais 30 mil profissionais foram contratados para o SNS, quantos desses estão em horário completo? Quantos estão a tempo parcial? Nós podemos aumentar o número de profissionais, mas ficar com menos horas. Às vezes falta informação que seria muito relevante para compreender melhor o contexto. E depois, alguns indicadores são descontinuados, desaparecem, alguns ficaram parados em 2021. Vai muito ao sabor de quem está no poder, que transparência quer transmitir.
“Há muitos jovens médicos que querem fazer investigação, mas também querem mais flexibilidade, não querem estar presos a horários rígidos de 40 horas com as urgências. Temos de pensar nos profissionais que são mães, pais, nas grávidas… tem de haver flexibilização.”
Esse portal também é uma boa fonte de informação para o setor privado…
Isso é outra questão. Há transparência no SNS mas o setor privado é completamente opaco. Isso faz com que o SNS e o Estado estejam a negociar com privados sem saber quantas camas há, que serviços que prestam, não sabemos os preços, não sabemos quanto pagam aos médicos, não sabemos a qualidade… A Entidade Reguladora da Saúde tem essa incumbência de verificação da qualidade, mas muitas vezes essa informação não é pública e não é monitorizada o suficiente. Inclusive há situações que para mim são bastante chocantes como a questão da Obstetrícia. A Ordem dos Médicos diz que um serviço de obstetrícia tem de ter x médicos, enfermeiros, anestesistas, senão fecha. E o privado? Não tem de ter essas regras? Os serviços de obstetrícia no privado são auditados da mesma maneira, também têm de fechar?
O setor privado está a crescer, cumpre um papel importante, presta serviços ao SNS, por isso têm de ser feitas auditorias com as mesmas normas, qualidade, e essa informação tem de ser pública. No fundo, temos um SNS ultra escrutinado, cheio de regras para tudo e mais alguma coisa, e depois um setor privado que faz o que lhe apetece.
Que mensagem gostaria de deixar aos portugueses sobre o SNS?
Para contrapor ao discurso que tem aparecido diria que o SNS é um sistema solidário, um património comum, uma construção coletiva que nos pertence, e que, apesar dos relatos muitos alarmistas que têm surgido, o SNS continua a dar resposta – o número de consultas, cirurgias, internamentos, tem aumentado. É verdade que tem um problema grave do tempo de espera, os hospitais são pouco confortáveis, às vezes falta humanidade no trato, mas os cuidados são de qualidade. A sobrevivência das pessoas com cancro é das mais elevadas da Europa, os portugueses têm acesso no SNS a tratamentos de topo, os mais recentes, mais inovadores. É um serviço no qual, apesar de tudo, podemos confiar.