Falámos com quatro médicos, que nos contaram como no dia a dia conseguem detetar doenças que, teoricamente, fogem à sua especialidade. Porque um bom médico também deve ser um pouco detetive.
RISCO DE AVC DETETADO PELO… DENTISTA
Um dos primeiros passos que o médico dentista António Coimbra de Carvalho costuma seguir numa primeira consulta é fazer um RX panorâmico da boca inteira (ortopantomografia), exame que permite ver o estado geral dos dentes e detetar vários problemas. E é muitas vezes através deste RX especial que o alarme começa a soar na mente do especialista: “Permite, por exemplo, ver se o paciente tem calcificações nas carótidas, sinal de alerta para um AVC. O procedimento normal, quando detetamos algo fora do nosso campo, é copiar o exame, escrever um relatório e encaminhar as pessoas para o médico assistente.” Foi também através daquele exame que detetou um tumor na cavidade oral, metástase de um tumor primário noutro órgão. Mas a observação clínica e a intuição também são importantes. “Conseguimos, por exemplo, descobrir dois casos de bulimia.” As jovens em questão eram bastante magras, mas o que alertou Coimbra de Carvalho para a perturbação alimentar foi o facto de os dentes, junto às gengivas, estarem erodidos pelo suco gástrico causado pelo vómito recorrente. “Lembro-me também de um paciente que começou a ter as gengivas muito hemorrágicas de repente. Ao fazer-lhe o historial clínico, descobri que também tinha manchas no corpo que não tinha valorizado. Pedi que fizesse análises para despistar uma leucemia. Hoje está bem!”
E há muitas outras doenças que se pode descobrir indo a um dentista: “Uma periodontite pode ser um sinal de doença cardíaca ou diabetes; língua inflamada com aspeto liso pode estar associada a uma anemia; aftas recorrentes podem indicar carência de vitamina B12 ou ácido fólico, e por aí fora…”
PROBLEMA DE TIRÓIDE DIAGNOSTICADO PELO…OFTALMOLOGISTA
Para o oftalmologista Rui Gomes da Luz, o primeiro passo quando atende um paciente é fazer a sua história clínica, “da quantidade e qualidade de informação obtida pode-se vislumbrar um quadro geral que indicará o caminho a seguir na elaboração das hipóteses de diagnóstico”. Para este especialista são vulgares as deteções de hipertensão arterial, diabetes ou colesterol elevado. Há, no entanto, sinais e sintomas que alertam para problemas de saúde não diagnosticados, como é, por exemplo, uma “patologia da carótida, em que o paciente se queixa de uma perda súbita e fugaz de visão e na qual se deteta lesões na retina. O conhecimento da terapêutica instituída é importante porque vários medicamentos podem ter efeitos secundários quando tomados em excesso ou de forma descontrolada. Os depósitos na córnea, alterações na retina e nervo ótico, bem como aumento da pressão ocular, podem ser consequência do exagero e/ou descontrolo terapêutico.”
Já a retração das pálpebras superiores e aumento de pigmentação, por exemplo, podem levar Gomes da Luz a diagnosticar problemas de tiroide, numa fase precoce. Maior certeza terá se estes sintomas forem acompanhados por inflamação e edema, pois isso indica que a situação está mais evoluída.
Queixas de conjuntivites frequentes associadas a constipações e prurido “são indicadores claros de rino-sinusite, de patologia bronco-pulmonar e até infeciosa, como a tuberculose”.
DOENÇA CARDÍACA DESCOBERTA PELA…PODOLOGISTA
Na Clínica do Pé, Raquel Pinto já encaminhou muitos pacientes para outras especialidades. “Há pessoas que chegam aqui a queixar-se de feridas que levam muito tempo a cicatrizar, que sentem um formigueiro no pé…são tudo sintomas de diabetes, mas não sabem que a têm. ”
O cansaço, os tornozelos e pés inchados são das queixas que mais ouve e Raquel Pinto leva-as a sério, porque sabe que podem ser sinal de problemas cardiovasculares: “Perguntamos sempre às pessoas se são acompanhadas por um cardiologista, se não o forem aconselho sempre a fazerem um eletrocardiograma.”
Há também quem chegue ao consultório a dizer que não consegue andar mais de cinco passos sem ter de parar. “Houve o caso de uma pessoa que, depois de ter tido cancro e feito quimioterapia, começou a ter dores nos membros inferiores muito fortes sem razão aparente, e veio cá porque julgava que podia ser um calo ou unha encravada… mas não, são sinais de neuropatia.” Outro dos problemas que já detetou foi psoríase nas unhas. “Têm as unhas numa lástima, já tomaram antifúngicos, locais e orais, e aquilo não passa. Quando lhes pergunto se têm psoríase e não sabem o que isso é, fico alerta, e se têm descamação do couro cabeludo aconselho logo um dermatologista.”
DIABETES REVELADA PELA…DERMATOLOGISTA
A pele é um reflexo do nosso estado de saúde, já sabemos, só não suspeitávamos até que ponto é verdade. De doenças autoimunes, até à diabetes, aos ovários policísticos, às infeções, neoplasias (tumores malignos ou benignos), tuberculose, todos estes problemas de saúde têm manifestações cutâneas. “Podem ser casos simples ou casos bem graves, como uma doente que apareceu aqui na clínica com umas lesões cutâneas muito específicas, exuberantes e de aparecimento súbito mas sem qualquer outro sintoma. Achei muito estranho e pedi para fazer um TAC de imediato. Infelizmente, as nossas suspeitas confirmaram-se, a senhora tinha uma neoplasia do pâncreas e morreu poucos meses depois. Mas este foi um caso extremo, temos casos no nosso dia a dia que não têm um fim tão trágico como este. Por exemplo, ainda nos chegam muitas pessoas às mãos com diabetes e que desconhecem a sua situação. Aparecem aqui com umas lesões cutâneas específicas – necrobioses lipóidicas [placas e pápulas avermelhadas na pele] – que nos fazem suspeitar logo de diabetes.
E há muitas lesões que nos dão pistas para certo tipo de doenças. O pseudoxantoma elástico [doença rara hereditária que apresenta manchas e pápulas amareladas] significa que há lesões a nível cardíaco; o síndroma de Fabry, manchas que parecem rubis vermelhos, põem-nos no caminho de envolvimento neurológico. E as pessoas nem sequer desconfiavam…”, revela a dermatologista Manuela Cochito.
Ficha Clínica
• Podologista, Raquel Pinto Prates, Clínica do Pé, Lisboa, tel. 218.439.319
• Dermatologista, Manuela Cochito, Consultório de Dermatologia, Lisboa, tel. 217.800.610
• Oftalmologista, Rui Gomes Luz, Consultório Médico dos Arcos, Paço d’Arcos, tel. 214.425.842
• Médico dentista, António Coimbra de Carvalho, Clínica Dentária Jardim dos Arcos, Oeiras,
tel. 214.413.039