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Simon Clark

Escreveu este livro para explicar que os médicos são apenas humanos e que é melhor moderarmos as expectativas em relação a ‘milagres’ da medicina?
Sim, de certa forma. Das muitas razões que tive para o escrever uma delas foi tentar dar uma descrição precisa do que é praticar medicina, especialmente medicina ‘perigosa’ como a neurocirurgia. Tradicionalmente, enquanto pacientes olhamos para os médicos como uma espécie de semideuses porque temos medo, somos ansiosos e é assustador pensarmos que o nosso médico possa ser um ser humano falível. O problema é que, apesar de tornar as coisas mais fáceis para nós enquanto pacientes, tem um efeito péssimo nos médicos: corrompe-os – se sentirem que têm que agir como deuses, acabam a achar que o são mesmo. Para uma relação saudável entre médico e paciente, os pacientes devem ter um entendimento realista dos limites da medicina, tal como os médicos devem ser honestos com os doentes e dizer-lhes aquilo que pode e não pode ser feito.

E os seus colegas têm assim tanto esse complexo de Deus? Lendo este livro, não parece que seja o seu caso…
É um paradoxo. Para um cirurgião como eu admitir publicamente os seus erros é preciso ter uma boa autoestima. A tradição inglesa, no geral, é muito contra demonstrações de satisfação pessoal e arrogância. Mas isso mudou. Há 30 ou 40 anos, os médicos tinham uma posição muito mais poderosa do que, hoje, que passou quase ao extremo oposto. Em inglês falamos muito da ‘relação médico-paciente’ mas ela parece estar a desaparecer; a medicina parece estar a ser vista cada vez mais como um negócio não muito diferente de ir ao advogado ou a uma loja. De facto, algo mudou nessa relação e tentei descrevê-lo precisa e honestamente.

E o que mudou, ao certo?
Uma série de coisas. Uma delas é o facto da medicina se estar a tornar tão cara, o que leva muitos governos a declarar que os serviços nacionais de saúde estão a tornar-se muito difíceis de financiar. Como resultado, há um crescimento cada vez maior da medicina privada no Reino Unido, e acredito que também em Portugal. O problema com a medicina privada é que é muito dispendiosa e penso que, com frequência, os médicos e hospitais se deixam corromper por isso e começam a substituir aquilo que é bom para o paciente por aquilo que é bom para o saldo bancário.

Manteve um diário por muitos anos. Este livro é o resultado da releitura de muitos anos de trabalho?
Mantenho um diário desde os 13 anos. E sim, é uma espécie de remodelação dos meus diários. Toda a vida escrevi, sempre gostei de o fazer. Depois de me divorciar da minha primeira mulher, conheci a minha a segunda mulher, que é uma autora inglesa bem-sucedida, a antropóloga Kate Fox, e ela é uma crítica ótima. Uma vez perguntou-me o que tinha feito no trabalho e eu comecei a ler-lhe pedaços do diário. Disse-me ‘Isso é muito bom, pode transformar-se num livro. Porque não falas com a minha agente literária?’ A agente dela confirmou e foi assim que o livro apareceu. Por isso, não é que tenha passado 10 anos a trabalhar nele.

Ao relê-lo, surpreendeu-se com algumas coisas? Mudou muito ao longo dos anos?
Sim, houve mudança. Quando eu era um jovem cirurgião era mais defensivo, mais ansioso, mas isso é natural. À medida que vamos envelhecendo e tendo mais experiência podemos ser mais honestos connosco próprios, mas também com os doentes e colegas. O que não mudou é o facto de ainda estar completamente apaixonado por ser médico e neurocirurgião, ainda que muitas vezes seja terrivelmente doloroso. Mas é por isso que também tem tanto significado. O que a maioria de nós quer realmente da vida é encontrar um sentido para ela e, apesar de já estar parcialmente reformado agora, tenho muita sorte em ter um trabalho que signifique tanto para mim. Quando um médico chega a casa, à noite, não tem que se preocupar com o verdadeiro sentido do seu trabalho – ele é óbvio.

Mas, curiosamente, esta não foi a sua primeira escolha…
Pois não. Venho de uma família muito pouco científica e sem antecedentes na medicina. Tive aquela típica educação da classe média alta britânica, em escolas privadas muito boas, onde passava a maior parte do tempo em aulas de latim e grego antigo. Depois fui estudar para Oxford para me formar em Ciência Política, Filosofia e Economia. Por várias razões, rebelei-me e deixei o curso. Fui trabalhar como auxiliar num hospital no norte de Inglaterra, uma posição muito abaixo na hierarquia clínica. Enquanto estive nesse cargo, assistia a muitas cirurgias. Sempre gostei de trabalhos em que tivesse que usar as minhas mãos e achei que tornar-me médico era a oportunidade perfeita de usar as mãos e o cérebro. Mas quando, sete anos mais tarde, finalmente me tornei médico, até fiquei bastante desiludido. Enquanto estudantes de medicina, o que vemos mais frequentemente são cirurgias ao abdómen, com toda aquela confusão malcheirosa, e não gostei nada. Até aí nunca tinha visto uma operação ao cérebro. E um dia, por acaso, já era médico há um ano e meio ou dois, assisti a uma operação a um aneurisma e tive uma espécie de epifania. Soube imediatamente o que queria fazer. Provavelmente, também fui inconscientemente influenciado pelo facto de o meu filho ter tido um tumor no cérebro, descoberto quando ele ainda era bebé. Teve muita sorte, a cirurgia correu muito bem e hoje, 37 anos depois, está vivo e de boa saúde. Por isso, a minha visão da neurocirurgia era a de algo maravilhoso, glorioso e heróico. É claro que hoje já não penso tanto assim. São os pacientes, as pessoas, que me fascinam e, claro, a relação com os seus cérebros. Mas muitos médicos mais velhos dizem o mesmo. Passei os últimos dois meses no Nepal a trabalhar e apesar de não falar nepalês e de, por isso, ter muito menos contacto humano do que tenho com os pacientes em Londres (ainda continuo a fazer algum trabalho, pouco), continuo a achar os seres humanos incrivelmente fascinantes. Hoje, a minha principal função é ensinar jovens médicos, sobretudo naquilo que tem a ver com erros médicos – ajudá-los a não cometer os mesmos que eu cometi.

Há uns tempos deu uma conferência para jovens médicos, nos EUA, intitulada ‘Os meus piores erros’. Assustou-os?
O livro teve bastante sucesso na América, particularmente com neurocirurgiões, porque digo lá coisas que todos sabemos serem verdade mas que eles não podem dizer, porque o sistema americano é muito comercial e competitivo, altamente motivado pelo medo dos processos jurídicos. Ao mesmo tempo, a cultura norte-americana é muito otimista – “todos os problemas têm solução”, “a morte é opcional”. Por isso, suspeito que os meus colegas americanos até ficaram aliviados e gostaram do facto de um tipo britânico louco dizer abertamente coisas que não se podem dizer. Senti quase que só depois de nos reformarmos é que podemos admitir o quanto temos que fingir e o quanto andámos com palas nos olhos.

E como é que se aprende a lidar com o erro e a assumi-lo?
Quando começamos, em novos, somos treinados por um cirurgião sénior que está acima de nós e que tem a responsabilidade. Não encaramos os maus resultados de frente, desligamo-nos quase completamente do que acontece aos pacientes. E é muito importante desaprender esse hábito à medida que envelhecemos, mudarmos. O grande desafio na medicina é encontrar o equilíbrio perfeito entre a compaixão pelos nossos pacientes e a capacidade de nos desligarmos deles. Se sentirmos por todos eles o mesmo que sentimos por um membro da nossa família, não conseguimos fazer o trabalho e tomamos más decisões. Sinto que errei algumas vezes porque me liguei demasiado aos meus pacientes.

Quais são os erros mais comuns na neurocirurgia?
Têm quase todos a ver com a tomada de decisões. Provavelmente, o mais comum é operarmos quando seria melhor deixar a pessoa morrer. Mantemos vivas pessoas, que ficam com danos cerebrais graves por muito tempo. Mas é muito difícil dizer ao doente ou à família que é melhor aceitar a morte.

Parte do seu trabalho atual é delegar operações a cirurgiões mais novos. Que características procura neles?
É difícil pô-lo por palavras, embora seja uma questão muito importante. Avalio a capacidade de julgamento deles: será que sabem quando parar e pedir-me ajuda? Também não queremos que o médico jovem seja tão ansioso ao ponto de nos pedir ajuda em tudo. Mas o maior risco é o excesso de confiança e não serem autocríticos – é o problema mais comum nos jovens cirurgiões. Escolher esta carreira implica que já se tenha boa autoconfiança, mas o importante é ter capacidade de julgamento para saber quando pedir ajuda.

Já teve que dizer a algum que, apesar das boas competências técnicas, não tinha o perfil certo para o trabalho?
Já. É raro. E é difícil dizê-lo. Mas, de facto, uma pequena parte dos estagiários não tem perfil; não conseguem um bom equilíbrio entre os riscos que podem e não podem correr.

Porque pôs nomes de doenças aos capítulos do seu livro?
Todos os títulos são de diagnósticos médicos. A ideia foi ter um título de capítulo que fosse um termo muito clínico e abstrato, para contrastar com os sentimentos bastante intensos que são descritos. A maior parte dos cirurgiões escolhe esta profissão porque acha que é muito excitante. A razão principal quase nunca é construir um mundo melhor ou ajudar as pessoas. Mas, ao mesmo tempo, o que a torna excitante é querermos que o paciente se saia bem. A cirurgia em si também é muito excitante, particularmente ao cérebro: é como desarmadilhar uma bomba, mas para cobardes – a vida que está em risco é a do paciente. Os nossos grandes triunfos e sucessos decorrem também do facto de termos desastres terríveis e grandes fracassos.

No capítulo inicial tem uma descrição de uma cirurgia e reflete sobre a quantidade de sentimentos, pensamentos e memórias que se juntam naquele pedaço de matéria cinzenta. Nesses momentos nunca dá por si a pensar na alma humana?
Não, porque não acredito na alma humana. Quando lidamos de perto com o cérebro e vemos pessoas com danos cerebrais – sobretudo na parte frontal, que lhes destrói o sentido ético e social, apesar de a parte intelectual poder ficar intacta – é muito difícil acreditar que possa existir alguma essência do ser humano fora do cérebro. Com a nossa visão científica, nem conseguimos começar a explicar como é que sentimentos e pensamentos conscientes podem nascer dos eletrões e átomos que o compõem. Olhar para um cérebro não nos diz nada sobre o sentido da vida, para além do facto de que é muito frágil e misteriosa.

Se tivesse uma máquina do tempo, que conselho daria a si próprio, em jovem?
É engraçado… faço essa pergunta a mim próprio com frequência. Quando fui demasiado confiante, deveria ter parado e pedido ao meu cirurgião sénior que me ajudasse. Vários pacientes tiveram danos porque não o fiz. Mas a cultura em que trabalhava, há 35 anos, punha a ênfase em tornarmo-nos mais independentes. Se pudesse voltar atrás, diria a mim próprio que deveria estar um pouco mais aberto a admitir que não sabia o que fazer e que devia parar. O grande problema é que quando supervisionamos demasiado os jovens médicos, eles não aprendem tanto.

Acha que, dentro de uns anos, vamos ser capazes de tratar a maior parte das doenças do cérebro? Aquela frase ‘não é operável’ vai passar a ser obsoleta?
Duvido… Operáveis ou não, a solução para os tumores e cancros mais comuns será a quimioterapia, terapia genética ou outras. A neurocirurgia atingiu o apogeu e não vejo como poderá melhorar muito mais tecnicamente. O progresso será torná-la desnecessária.

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