Longe da ideia que muita gente ainda tem, de águas de cheiro básicas que não duram nada, os perfumes naturais atuais, criados por grandes perfumistas, enquadram-se de pleno direito na alta perfumaria. É todo um mundo que vale a pena descobrir, onde o verdadeiro luxo é o respeito ambiental.
Até ao final do século XIX todos os perfumes eram naturais, feitos a partir de matérias-primas extraídas diretamente de flores, rizomas, folhas e outros ingredientes de origem vegetal ou animal. Mas em 1889 deu-se a revolução: nesse ano, o perfumista Aimé Guerlain (filho do fundador da casa Guerlain) criava aquele que é considerado o primeiro perfume moderno, Jicky (que ainda existe), uma fragrância de uma originalidade absoluta que combinava as matérias-primas naturais com ingredientes sintéticos recém-inventados. O uso de notas criadas em laboratório mudou tudo, num Big Bang olfativo que expandiu o universo da perfumaria para além dos limites que a natureza lhe impunha: os perfumes deixaram de evocar simplesmente o aroma de uma flor ou de um bouquet e passaram a invocar emoções.
O Chanel Nº5, criado em 1925, estabeleceu definitivamente este rumo com a sua composição quase abstrata. Os perfumistas passaram a ter um leque de notas até aí inimaginável para as suas criações: aromas que não há forma de extrair, como o do lírio do vale, ou o cheiro a maresia, passaram a fazer parte da sua paleta. E embora haja moléculas sintéticas tão ou mais caras do que algumas naturais, o uso das matérias-primas de síntese permitiu também democratizar o uso de perfume porque tornou a sua produção mais acessível (e mais sustentável quando estamos a falar de matérias primas raras). Os perfumes convencionais atuais contêm entre 50% e 90% de ingredientes sintéticos e há alguns que usam apenas matérias-primas de síntese, por opção conceptual.
“A perfumaria convencional opta muitas vezes por ingredientes sintéticos e artificiais porque têm um custo mais baixo e os resultados são suficientemente bons para satisfazer os consumidores, especialmente em mercados menos exigentes em termos de qualidade, como a China, a América do Sul ou África”, diz o perfumista Jimmy Boyd, criador da marca de perfumes naturais com o seu nome. Todos os ingredientes usados em perfumaria, quer sejam sintéticos ou naturais, obedecem às diretrizes de segurança da International Fragrance Association (IFRA), nomeadamente em relação às percentagens máximas permitidas, estabelecidas com base científica continuamente atualizada, reconhecidas em todo o mundo e seguidas compulsoriamente por todos os seus membros (mais de 80% dos produtores de perfumes a nível mundial). Mas as preocupações ecológicas, e a apetência por produtos mais naturais e sustentáveis, estão a aumentar a procura (e a oferta) de perfumes que primam pela naturalidade: e isso está a fazer uma nova revolução na perfumaria.
Muito mais do que um simples regresso às origens
À semelhança do que aconteceu na cosmética, também nos perfumes há uma procura crescente de fórmulas com ingredientes naturais, sustentáveis e bio. Alguns dos ingredientes usados na perfumaria convencional (álcool desnaturado por ftalatos, agentes fixadores, conservantes, óleos minerais, filtros UV, corantes), muitos dos quais de origem petroquímica, são suspeitos de toxicidade para o ambiente e de serem potenciais perturbadores endócrinos. Mas a utilização de moléculas inventadas em laboratório permite a criação de fórmulas olfativas complexas e originais (sem elas não teríamos fragrâncias com notas marinhas, por exemplo) e duradouras, além de permitir preservar matérias primas naturais que, se usadas em excesso, correriam risco de extinção. E depois de dois séculos a usar perfumes com uma grande riqueza olfativa, notas improváveis, como caramelo ou cachemira, e uma durabilidade de várias horas, os nossos narizes já não se contentariam com aromas básicos que desaparecessem ao fim de meia hora: o que é um verdadeiro desafio para um perfumista que queira criar um perfume natural.
Para começar, enquanto na perfumaria convencional há cerca de 5 mil notas disponíveis para escolher e combinar, o número reduz-se para apenas 500 na perfumaria natural e menos ainda quando se trata de matérias-primas bio. Para complicar, há notas que, na sua versão natural, são caríssimas, outras que é proibido utilizar (porque provêm de espécies vegetais ou animais protegidas, por exemplo) e outras que só existem em versão sintética porque é impossível extraí-las de forma natural (é o caso da nota de figo). “Fazer um perfume natural é muito difícil e caro, e se for bio é infinitamente mais difícil porque há muito poucas essências biológicas”, explica Jimmy Boyd. “O consumo de perfumes, e consequentemente de matérias-primas para os produzir, está a aumentar nos mercados asiáticos, africanos e sul-americanos, e, por outro lado, devido às alterações climáticas, os produtores de óleos essenciais naturais não conseguem produzir o suficiente para responder à procura, o que faz aumentar muito os preços. No Brasil, a produção de laranjas diminuiu por causa do clima, em Madagáscar já não há óleo de cravinho, no Haiti já não há vetiver, o preço da baunilha aumentou 20 vezes nos últimos 3 anos…”
Com tudo isto somado, fazer um perfume natural nos dias de hoje é um pouco como dizer a Leonardo da Vinci para pintar a Mona Lisa usando apenas um décimo da sua paleta de cores… Mas há grandes perfumistas, muitos deles vindos da perfumaria convencional, a responder a este desafio e a criar perfumes naturais com uma bela riqueza olfativa, muito originais, cheios de nuances, e com uma boa remanescência (aquilo que em perfumaria se chama ‘sillage’ ou rasto).
O desafio da naturalidade
Matérias-primas controladas desde a sua produção para assegurar que as plantas usadas são cultivadas sem pesticidas e preferencialmente em modo biológico; essências obtidas sem recurso a solventes químicos, por processos que respeitam o ambiente; álcool de origem vegetal extraído do trigo ou da beterraba; ausência de ingredientes de origem animal, filtros UV, corantes, conservantes e almíscares sintéticos, são as principais características dos perfumes naturais. Para garantir a durabilidade sem usar fixadores sintéticos, os perfumistas utilizam aqui moléculas naturais menos voláteis, como o benjoim, a baunilha ou a fava tonca. Alguns perfumes naturais utilizam uma percentagem ínfima de moléculas sintéticas, para tornar a paleta olfativa mais ampla e rica, mas escolhidas a dedo para excluir tudo o que seja minimamente suspeito ou controverso.
A maioria usa frascos e embalagens recicláveis (nalguns casos recarregáveis) e biodegradáveis. Estas marcas fazem também um esforço para manter os seus perfumes acessíveis, apesar de os ingredientes que utilizam serem muito caros. O facto de não terem grandes campanhas de marketing nem embaixadoras conhecidas também ajuda a controlar os custos e, curiosamente, muda completamente a forma como escolhemos o perfume. A existência de um conceito publicitário a dizer-nos para que estilo de mulher é aquele aroma, uma embalagem chamativa e um rosto aspiracional associado à fragrância influenciam subconscientemente a nossa escolha, às vezes mais até do que o próprio aroma. Mas quando o que temos à nossa frente é apenas um frasco de linhas simples, é mais fácil ‘ver’ o perfume, perceber se realmente gostamos e se tem a ver connosco. Nós tornamo-nos as suas embaixadoras e ele, por seu lado, torna-se o verdadeiro reflexo da nossa personalidade.
Outra particularidade de um bom perfume natural é a forma como evolui na pele e se adapta a ela: enquanto uma fragrância com uma alta percentagem de moléculas sintéticas tende a cheirar mais ou menos ao mesmo em todas as pessoas, quando há uma maior naturalidade o aroma é menos reconhecível e mais personalizado. Veja abaixo as nossas sugestões: as que se vendem em lojas cá podem ser testadas ao vivo e as que se vendem apenas pela internet têm, quase todas, tamanhos de ensaio para experimentar.
Floratropia
Com fórmulas 100% naturais, vegan e sem petroquímicos, são perfumes formulados de forma a respeitar e promover a biodiversidade das plantas e apoiar os artesãos-produtores que as cultivam e transformam. Têm recargas e frascos recarregáveis e 3% das vendas são entregues à ONG Noé para apoiar ações que visam preservar a flora aromática. No site da marca, floratropia.com.
Aimée de Mars
Criadora da ‘aromaparfumerie’,esta marca faz a fusão da alta perfumaria com a aromaterapia, através de óleos essenciais. São vegan, contêm entre 96% e 100% de ingredientes de origem natural e biológica, e água da antiga nascente de Saint Genou, reputadamente equilibrante. No site da marca, maisondemars.com.
Essential Parfums
Uma marca de alta perfumaria natural que dá carta branca a grandes perfumistas para criarem o aroma que desejam. Para garantir um preço acessível sem cortar na qualidade, optaram pela venda direta. Fórmulas entre 86% a 96% naturais, com matérias-primas sustentáveis e de comércio justo, e embalagens eco responsáveis. Nas boutiques e site Skinlife.
Jimmy Boyd
Marca de ‘perfumaria emocional’, criada pelo perfumista que lhe dá o nome. As matérias-primas aromáticas são de origem natural, cultivadas em modo tradicional e biológico ou colhidas de forma sustentável se forem silvestres. Os perfumes são vegan e sustentáveis, com fórmulas 97% biológicas certificadas e frascos recicláveis. Nas lojas e site Organii.
Aqua Allegoria, de Guerlain
Com 11 fragrâncias diferentes, dos cítricos aos florais, esta linha de colónias usa até 95% de ingredientes de origem natural, rastreáveis, renováveis e com cadeias de abastecimento sustentáveis. O álcool usado é proveniente da beterraba cultivada de forma biológica. Em perfumarias e no site da marca, Guerlain.com/pt.
Acorelle
100% Naturais, bio certificadas, vegan e sustentáveis, as fórmulas das eaux de parfum desta marca têm um benefício adicional: são inspiradas nos princípios da olfatologia e contêm óleos essenciais ativos que agem sobre as emoções. Isentas de qualquer elemento petroquímico ou sintético, contêm água floral bio. Nas lojas e site Organii.
Hermetica
Perfumes clean, sem álcool e com uma ação hidratante. As fórmulas, vegan, sustentáveis e desenvolvidas com recurso a química verde combinam técnicas ancestrais de alquimia com ingredientes naturais. Há vários aromas, que podem ser usados sozinhos ou combinados com a fragrância Source1. Nas boutiques e site Skinlife.
Colonia Futura, de Acqua di Parma
A mais sustentável e natural das colónias da marca tem 99% de ingredientes de origem natural, entre os quais bergamota da Calábria D.O.P. e extratos de plantas de comércio justo; a tampa é de plástico reciclado e reciclável e o rótulo é feito de desperdícios de pedreiras. Em perfumarias e no El Corte Inglés.
Honoré des Prés
Perfumes 100% naturais e bio certificados, com um espírito eco chique divertido. As fórmulas, sem qualquer ingrediente sintético ou agressivo, são construídas em torno de extratos puros, por vezes inesperados, como a cenoura. Algumas fragrâncias são da autoria da grande perfumista Olivia Giacobetti. No site da marca, honoredespres.com.