
Desde cedo que o Lipedema existe em mim e, apesar de não ser uma presença consentida, sinto que (quase) todas as decisões importantes que tomei foram influenciadas pela sua presença. Ainda que não conhecesse o seu nome, sentia, todos os dias, o peso de quem carrega uma doença que nos muda de dentro para fora e de fora para dentro. Primeiro, o corpo que muda de forma incompreensível e inaceitável, para quem, como eu, estava na adolescência, onde a imagem dum corpo feminino adulto é idealizada e, progressivamente, confrontada com uma realidade distante da que via ao espelho e em outras meninas da minha idade. O meu corpo transformou-se, acentuando cada vez mais a diferença entre o tamanho das minhas pernas e o resto do meu corpo. Nesta altura, onde a única constante é a mudança, e onde a autonomia nos dá mais poder e responsabilidade, é inerente fazermos escolhas que nos permitam alcançar os nossos objetivos.
Fiz as escolhas óbvias – mais exercício, dieta, roupas mais largas – mas estas escolhas nunca trouxeram resultados. Trouxeram culpa, incompreensão e vergonha. Ciclos de tentativa e erro, onde nunca se acerta, porque o Lipedema não se trata com remédios, nem com dietas restritivas, nem com horas infinitas de treino cardio. Com a progressão da doença, reativa às mudanças inerentes às várias fases da vida de uma mulher – anticoncecionais, maternidade, envelhecimento –, as dores foram-se instalando, limitando atividades banais, a desproporção foi-se acentuando e, aquele corpo que devia ser “casa”, deixou de ser “meu”.
Durante muitos anos, vivi com sensação de não viver no meu verdadeiro corpo, o corpo que tinha interiorizado não era aquele, era o corpo duma pessoa que tem um estilo de vida saudável, que faz exercício, que faz o que fazem as pessoas que têm “corpos normais”. Senti-me muitas vezes cansada, desanimada, incompreendida e culpada, embora não soubesse o que poderia estar a fazer errado. Todos os médicos que procurei, de várias especialidades, me diziam que “tinha má circulação, excesso de gordura nas pernas, mas não tinha peso a mais, que era o meu biótipo”. Não! Eu não era uma mulher com curvas, eu era doente e, embora não o soubesse, nem soubesse como se chamava esta doença, eu sabia que alguma coisa estava errada.
Nestes anos, principalmente nos primeiros anos, perdi muito mais de que o corpo proporcional, perdi confiança, autoestima, limitei- me nos contactos e nas atividades que implicavam algum nível de exposição. Sinto que todas as escolhas que fiz, nessa altura, tinham sempre um filtro – Lipedema – ainda que eu não lhe desse um nome. Muitas vezes pensei: “Se não tivesse estas dores, eu podia.…”, “se não tivesse este peso, este cansaço, eu podia.…”, “se não tivesse que mostrar as pernas, eu podia….”.
Aos 45 anos, após mais uma crise inflamatória, sem solução nem compreensão clínica, encontrei, na pesquisa que nunca desisti de fazer, a resposta a todas as perguntas que já tinha feito, num título dum artigo – “magra com pernas gordas? Você deve ter lipedema”. Reconheci-me de imediato e nesse dia ganhei asas, ganhei controle, independência e a leveza que nunca tinha sentido. Ainda sem saber, nesse dia, abri a porta para o resto da minha (qualidade de) vida. Na altura, encontrei o Dr. Olivas Menayo, tive o diagnóstico e iniciei o tratamento conservador e, posteriormente, fiz a cirurgia que me trouxe a “casa”. Lembro-me que o pós-operatório foi mais leve que as dores que sentia na minha rotina diária e lembro-me de ser uma surpresa que se podia viver sem dores. Neste processo, senti, sobretudo, que ganhei poder e controle sobre o meu corpo, que agora não preciso de pensar se posso, só preciso de pensar se quero; agora sei o que fazer, como tratar e o que esperar quando faço – ou não – o que é preciso. Agora eu tenho Lipedema, mas ele não me tem a mim.
Nesta jornada, ganhei uma nova dimensão de mim e de autocuidado, ganhei conhecimento, ganhei pessoas e ganhei um novo propósito: acolher e acompanhar quem ainda está noutra fase desta jornada. O lipedema é uma doença física, que nos limita e afeta sistemicamente — mas os seus impactos não se restringem apenas ao corpo. Instala-se de forma insidiosa, alterando a nossa relação com a imagem corporal, a autoestima e até a forma como nos posicionamos no mundo. Rouba-nos os pensamentos, mina a autoconfiança, distorce a forma como nos vemos, como nos gostamos, como nos damos aos outros. Por isso, é essencial que o tratamento do lipedema vá além das abordagens médicas e fisioterapêuticas, e inclua de forma integrada e prioritária o acompanhamento psicológico. Viver com lipedema implica, muitas vezes, enfrentar sentimentos de frustração, vergonha e isolamento. Este desgaste emocional prolongado contribui para quadros de ansiedade, depressão e baixa autoestima.
Sendo psicóloga, e tendo em conta a minha experiência pessoal, propus-me a ajudar outras mulheres que, tal como eu, precisam de se sentir seguras, reconhecidas, compreendidas e ressignificadas. Mulheres que, após anos de afastamento, estão a reconstruir a relação com o corpo, a promover a aceitação e a desenvolver estratégias de gestão emocional saudáveis, fundamentais para o sucesso do tratamento.
Aspetos emocionais mal geridos podem comprometer a motivação e a consistência necessárias para lidar com as exigências da reabilitação física. Mais do que um complemento, a dimensão psicológica deve ser tratada como um pilar central no cuidado do lipedema. Porque cuidar da mente é, também, cuidar do corpo. E só com um olhar verdadeiramente integrativo conseguiremos promover, não apenas a saúde física, mas também o bem-estar e a qualidade de vida das pessoas que vivem com esta condição, porque o Lipedema é para sempre.
É um caminho que exige força, resiliência e consciência de que somos muito mais do que a doença que enfrentamos. Tendo como lema: “O lipedema é o meu desafio, não o meu limite”.
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