Há uns tempos, liga-me uma amiga que tem uma filha de 14 anos. “Imagina”, angustia-se ela, “o que é que a Maria me disse ontem que queria ser!” Comecei a pensar no que é que seria assim tão dramático: acompanhante de luxo? Stripper? Detetora de minas terrestres? Engolidora de facas? Do outro lado do telemóvel ela explode: “Famosa! Diz que quer ser famosa!”
Deu-me uma certa vontade de rir, mas falando com outras mães percebi que a Maria não era caso único.
Na net, os jornais ingleses e americanos preocupam-se com esta ‘moda’ de adolescentes que passam as aulas a sonhar acordados com holofotes que, na maioria das vezes, não acontecem, e quando acontecem, muitas vezes dão mau resultado. Há dois anos, um estudo da Associação Britânica de Professores pediu a 300 professores para perguntarem aos seus alunos o que queriam ser na vida. Dois terços dos rapazes aspiravam a tornar-
-se estrelas pop ou jogadores de futebol. As meninas queriam ser estrelas pop ou… mulheres de jogadores de futebol. Estudar? Para quê? Afinal, podiam ser ricos e famosos em qualquer concurso de celebridades.
O lado negro das celebridades
Só se espanta com isto quem tiver uma alma muito inocente. Afinal, as crianças sempre foram o barómetro do status numa sociedade. No ‘meu tempo’, queríamos ser médicos ou professores porque era aí que estava o prestígio. Hoje, o que eles veem é que o irmão mais velho que tirou psicologia aplicada está a vender bilhetes no cinema e que o primo que foi aceite num casting de novelas aparece em todas as revistas.
As crianças são basicamente aquilo que os adultos querem que sejam: se lhes apresentamos a fama vazia como apetecível, é de estranhar que a agarrem?
O dinheiro, o mini-caniche e os folhos cor de rosa, da Paris Hilton, eles veem. O que eles não veem, o lado negro da fama, nunca lhes é apresentado. Correndo os comentários a um artigo do jornal inglês ‘The Guardian’ intitulado precisamente ‘Kids want to be famous’ (Os miúdos querem ser famosos) encontro um comentário angustiante: “Muitos adolescentes que querem ser famosos têm, tal como muitas estrelas, falta de autoestima, e necessitam desesperadamente de aplausos. Por isso é que descarrilam tão facilmente se a fama acontece. São frequentemente pessoas introvertidas e tímidas que, uma vez famosas, acham a luz demasiado forte. É como se quisessem aproximar-se demasiado do sol. Alimentam-se do seu calor, mas acabam queimados. Têm uma relação de amor-ódio com a imprensa, porque precisam de atenção mas não controlam o ‘argumento’ da sua vida. Quem deseja isto para um filho?”
Fama sem esforço
Já deprimida, resolvo procurar quem me tire dúvidas. Vou bater à porta do psicólogo Quintino Aires, presença frequente na nossa televisão, que sabe melhor do que ninguém de que se fala quando se fala em famosos. Então explique-me lá, porque é que os miúdos agora querem todos ser famosos?
“E não queremos todos?”, pergunta logo. Pronto, vou ao tapete à primeira estocada. Arruína-me imediatamente perguntas 2 a 25. Aliás, arruína-me imediatamente o alinhamento todo, e a vantagem é que não estamos em direto no jornal da noite da Sic e ninguém vê o meu ar de totó. “Ah, queremos?” Então não eram só os, como é que era, os que tinham falta de luz própria?
“Ser famoso é bom, é sinal de que os outros nos apreciam”, explica Quintino Aires. “Além disso tem de facto muitas vantagens, e por isso é natural que um jovem queira ser famoso. E mais: quando um jovem não quer ser famoso, é caso para perguntar que medos é que este rapaz ou rapariga tem. Tem receio que olhem para ele, tem receio que falem da sua vida, do confronto com as pessoas? Portanto, querer ser famoso é normalíssimo e saudável.”
Então o que é que está mal? “O que está mal é que os jovens querem ser famosos sem fazerem rigorosamente nada para isso!”, explica Quintino. “Nunca acham que a fama vem do trabalho. Mesmo quando arranjam emprego, querem tudo imediatamente e em grande. Já não há a tradição em que se começava pela base. Agora eles querem chegar e estar logo a mandar em tudo.”
A fama instantânea também é uma tentação num mundo que não oferece grandes oportunidades aos jovens. Não é natural que eles digam, ‘Vemos tanta gente que não tem trabalho, para que é que vou estudar?’. “Pois. Mas o que ninguém lhes diz é que essas pessoas não têm emprego por várias razões: porque não estão a lutar por ele, porque as coisas não caem do céu à primeira, porque às vezes é preciso começar por baixo ou dar a volta por outro lado. Mas como eles sempre estiveram habituados a ter tudo, continuam à espera que tudo lhes caia no colo. Além disso, ninguém lhes diz que aquela pessoa pode ter uma licenciatura em psicologia e estar num cinema a vender bilhetes, mas se não tivesse a licenciatura não teria a capacidade de pensar, de ser mais ativo interiormente. Tudo para eles tem de ter uma contrapartida económica. O raciocínio para eles é ‘O que é me dão?’.”
Adolescentes para sempre?
Pronto, é oficial: estou outra vez angustiada. “Significa o quê, então, a fama, se não é consequência de um esforço? “Nada. Não significa nada”, sorri. “Isso lembra-me as etapas de desenvolvimento infantil: dos 5 aos 7 anos, os meninos querem ser astronautas e as meninas bailarinas. Mas não há então, obviamente, a noção de que é preciso um percurso para chegar lá. Agora parece que essa etapa não vem dos 5 aos 7, mas dos 20 aos 30.”
Claro que isso não nasce de geração espontânea: temos os adolescentes que criamos. Os jovens são hoje vítimas de uma ratoeira que não conseguem controlar porque nem têm consciência dela: nasceram num tempo em que não interessa a ninguém que as pessoas cresçam. Os pais inseguros e carentes querem mantê-los inconscientemente numa infância que os mantenha presos a eles, as marcas que descobriram o mercado da juventude querem mantê-los num estado de adolescência infinita e insegura que os leve a comprar cada vez mais. “Verdade total,” confirma Quintino. “À nossa sociedade não interessa que a pessoa se torne responsável. O trabalho não é valorizado. Há 10 anos, qual era o objetivo de um jovem? Investir na Bolsa, que para eles significava ganhar dinheiro sem trabalhar. Hoje há outra variante: jogar poker. Há adolescentes a abandonar os estudos para jogar poker em casa. Ao princípio ganham balúrdios, sim, mas o sistema está feito para a pessoa, ao fim de um certo tempo, começar a perder. Mas é o mesmo raciocínio do famoso instantâneo. Eles acham sempre que vão ser mais espertos que os outros e que a eles não lhes vai acontecer nada.”
Então e onde andam as famílias? “As famílias são tão deslumbradas quanto eles”, responde Quintino Aires.
Obesos na alma
Quantas vezes os sonhos de fama não são herdados das famílias, que supostamente os deviam proteger? Lembro-me das entrevistas de alguns pais de jovens atores, afirmando que os filhos poderiam, depois das novelas, retomar os estudos. Seria interessante saber quantos o fizeram. “Raramente recomeçam, porque os anos vão passando…”, nota Quintino.
Lembro-me de uma crónica do jornalista Mário Crespo, publicada há três anos na Activa, que já na altura me impressionou. Dizia ele: “Estes miúdos que estão nas novelas juvenis deviam estar no mundo real de uma escola ou universidade em vez de perder tempo num mundo de faz-de-conta, trocando um futuro sólido por uma quantia que será sempre irrisória. Se ninguém lhes disser que como atores e atrizes são quase todos intoleravelmente maus e que esta máquina de sonhos está a triturar promessas roubando-lhes a oportunidade académica à mesma velocidade que a guerra colonial o fez, em gerações anteriores, este infernal ciclo de exploração vai continuar.”
Talvez a comparação seja pesada, mas faz-nos pensar. “Nas filas para os castings, muitas vezes são os pais que lá estão a inscrever os filhos!”, nota Quintino. “Portanto, isto não é uma coisa que os jovens estão a fazer às escondidas ou contrariando a vontade dos pais, que até seria saudável. Tudo isso resulta da nossa cultura. Repare que não se ensina ninguém a cozinhar. Quando eles têm fome, vão comprar comida feita ao supermercado.”
As famílias querem ter orgulho nos filhos, mas às vezes é um orgulho vazio. “Se eles não fizeram nada, têm orgulho em quê? Compram fama pronta como compram comida pronta.” Tal como ficam obesos no corpo, também ficam obesos na alma? “Claro. E o que é um obeso? É alguém que tem gordura sem estrutura. A alma fica à deriva. Por isso é que temos miúdos tão vazios e tão incapazes de comunicar.”
E depois do adeus?
Em Portugal, não há quem não recorde o drama do Zé Maria, o primeiro vencedor do ‘Big Brother’. Começou nas obras do Alentejo, acabou nas obras do Alentejo, com um percurso de ascensão e queda à vista de todos, símbolo acabado de um inocente devorado pelo sistema. Isto leva-nos à terceira parte do tríptico da fama: quero ser famoso-sou famoso–deixei de ser famoso. Geralmente, a fama desaparece tão depressa como chegou. Um dia somos os maiores do mundo e no outro dia estamos de volta à nossa invisibilidade. Como é que se lida com isto? “Se se tivesse o entendimento que a fama e o sucesso vêm do trabalho, isto já não acontecia”, reforça Quintino. “O Zé Maria passou meses naquela casa, e enquanto isso aconteceu, teve o que teve. Quando saiu, ele devia ter percebido que, fora daquele sítio, já não teria esse tipo de retorno. Quando deixa de haver esforço, deixa de haver fama.”
Problema: o mero facto de se aparecer na televisão cria um famoso. Somos famosos na medida em que aparecemos. Só existimos enquanto reflexo nos olhos dos outros… “Mas sempre foi assim”, lembra Quintino. “Só que dantes, como não tínhamos a televisão, não era à escala universal. Queríamos ser famosos na nossa rua. Hoje queremos ser famosos no mundo inteiro. A questão é, como somos muito invejosos, quando alguém é famoso eu não pergunto o que é que essa pessoa fez para chegar lá. Faz-me lembrar aquilo que estava escrito às vezes nas tabernas: ‘Todos veem os copos que eu bebo, ninguém vê os tombos que eu dou”, ri. Ou como dizia o Solnado: “Em Portugal todos querem ser Camões mas ninguém quer ser zarolho…”
Educar para o esforço
E no meio disto tudo, é possível educar para o esforço? “Claro que é. Habituar o cérebro a lidar com o esforço não é nada de extraordinário, é só construí-lo, é só pôr limites, como faziam no passado, voltar a dizer não. Claro que para os pais isso dá trabalho. É preciso persistência, coragem e confiança em si próprio, na sua posição e nas suas capacidades.”
E quando o seu filho lhe vier dizer que quer ser famoso, lembre-lhe que aquilo que os miúdos dos ‘Morangos’ trabalham, não se mostra. Vemos os peitorais do Cristiano Ronaldo, mas não vemos o trabalho que isso dá. A fama é suportada pelo nosso valor: se não se tem nada para dar, é-se engolido e cuspido, à la Zé Maria. Por isso, quem quer fama tem primeiro de descobrir aquilo em que é muito bom: e estar preparado para dar sempre o litro.
O casting do ‘Ídolos’ acaba por ser educativo.“Eles não estão habituados a ser rejeitados e ficam de rastos. Têm que aprender a aguentar um não. E perceber que o comportamento é uma construção, não um dom com que se nasce. Sermos nós dá trabalho.”
Lembro-me de uma professora dizer que as pessoas não vão ao ginásio porque não descobriram o prazer do esforço. “É o mesmo problema: a maioria das pessoas vai ao ginásio não para aprender a viver melhor, mas para ficar com um corpo como o das socialites. Quando percebem que dá trabalho, desistem. O exercício físico é uma das melhores formas de aprender o prazer do esforço. Quando aprender isso, pode ser tudo na vida.” Até famoso…