… a internet
Foi lá que se conheceram. Foi amor à primeira tecla. O pior é que aquilo que os juntou ameaça separar-vos. A primeira coisa que ele faz quando chega a casa é sentar-se à frente do ecrã. E depois perde a noção do tempo. Ao princípio era o Messenger, depois o Hi5, agora apaixonou-se pelo Facebook. Tem 572 amigos. Está quase ao nível do Bill Gates. Manda beijinhos, abracinhos e galhetas a torto e a direito. Assina todas as causas e mais alguma, desde ‘Parem de usar os Cães como Isco para os Tubarões’ até ao grupo de apoio ‘Quem me Interromper no Próximo Episódio da Anatomia de Grey Leva com um Martelo Pneumático no Toutiço’. Já recebeu não sei quantas ‘ribbons’ por ‘best farmer’, e agora planta megamorangos.
Da última vez que lá foi ver, encontrou-se num mar de 45 (45?!) comentários ao facto de lhe ter dado ‘Henrique VIII’ no teste ‘Que tipo de rei seria você’. Você nem quer pensar no que isso significa. Também fez o teste das rainhas, e saiu-lhe a Sissi. Nem quer pensar no que seria a Sissi casada com o Henrique VIII, coitadinha. Só pensa na quantidade de mulherio que por lá anda e que você nem sabe quem são. Ele também não, mas isso não parece atormentá-lo. Sai dali directo para a cama, demasiado estafado para fazer outra coisa senão dormir e sonhar com as vacas que foram parar ao seu celeiro.
… o trabalho
Quando ele começou a chegar tarde todas as noites, ainda pensou que a culpa fosse da secretária. Aquela badameca da Vanessa, com idade para ser neta dele (enfim, se tivesse sido pai aos 7, como os índios da Amazónia), a roçar-se na secretária (a mesa) e a dizer–lhe coisas inconcebíveis, do tipo que se quisesse uma secretária (mulher) loura que ligasse para outra agência que ela tinha mestrado e MBA tirado em Bruxelas e não admitia certas coisas, e a largar-lhe os dossiês na secretária (a mesa) antes de se afastar a fazer clac-clac dos saltos, como você viu uma vez que lá foi. E ele a babar-se.
Mas não. A culpa não era da Vanessa, que até tinha um namorado que servia à mesa no Meridien e lhe dava bavaroise de framboesa à boca todas as noites. Não. A culpa era mesmo dos relatórios. Dos clientes. Dos resultados. Dos gráficos. Das pageviews.
E ele a chegar a casa depois das 11h. Ela a ressonar. Ou no Facebook a trocar receitas de tarte de maçã com a Ana Isabel (viúva da Playstation) e a Antoninha (viúva do trabalho, como ela). Há 20 anos que não conversam. Nem sequer tem bem a certeza de ele ter notado o nascimento da Luisinha. E também não tem muita certeza de ele reparar se você, amanhã, fechar o portátil e se mudar para casa da Antoninha.
… a Playstation
Pronto, não é a primeira mulher casada com um guerreiro, mas quer dizer, dantes, para o melhor ou para o pior, chegava uma altura em que a guerra acabava… A guerra virtual dura para sempre. Ao princípio, ainda tinha uma vaga ideia de onde é que ele andava, agora já lhe perdeu o rasto. Havia uns jogos em 3D com combatentes do mundo inteiro, e o Grand Theft Auto em que o mais inócuo que se fazia era mesmo roubar carros.
Às vezes também joga um dos FIFA’s, ou diverte-se a rodar entre galáxias com mais quatro amigos, cada um em seu canto do universo, desculpem, mundo. Inda tentou juntar-se a ele. Depois umas voltinhas por uma cidade que era uma teia de ladrões, gatunos, criminosos e sociopatas, inda conseguiu dar uma martelada na cabeça de uma velhinha (prometendo ir confessar-se na manhã seguinte, ‘ai senhor padre, assassinei uma velhinha!’), mas entregou os pontos no Campeonato de Fórmula Um, quando acabou espatifada contra o muro dos patrocínios sem dó nem piedade: “Ana… olha… Não tás a guiar o carro de cima, tás a guiar o carro de baixo…” Às vezes junta-se com o Zé Pedro e fazem campeonatos em que o Zé Pedro invariavelmente ganha (o Zé Pedro tem 11 anos e é o filho da porteira). Quando se deita, já vai tão estafado de Combater o Mal que nem tem alento para mais nada. Mas, pronto. A sina das mulheres sempre foi sacrificar os maridos em prol da Paz no Mundo.
… o golfe
Há uma anedota sobre golfistas que segue da seguinte maneira: era uma vez um homem que ia jogar golfe todos os dias, fizesse o tempo que fizesse. Um dia saiu de casa de madrugada e lá foi ele direito ao relvado, mas trovejava e chovia de tal maneira que até ele acabou por desistir e voltou para casa. A mulher ainda estava na cama, por isso ele tirou a roupa encharcada e tornou a aninhar-
-se na almofada. “Que tempo horrível!”, desabafou. “Podes crer”, respondeu ela sem se voltar. “E acreditas que o parvo do meu marido foi para o golfe?”
Pronto, a ideia é mesmo essa: enquanto eles vão fazer sei lá o quê, às vezes não há mulher que aguente.
E o golfe não é excepção: ele é viciado, ela não sabe a diferença entre um taco de golfe – que ele está sempre a explicar que (suspiro) não são tacos, são ferros! Tacos são de basebol! E do chão! E do México – pronto, entre um ferro de golfe e um ferro de engomar.
Ele não se incomoda nada. Faça o tempo que fizer – como o da anedota –, lá está ele de taco – desculpem, ferro – em punho, avançando campo fora com a destreza de um coelho.
Bem, é verdade que podia ser pior. Podia ser obcecado com o ‘Dungeons and Dragons’. Podia coleccionar bonecos do Startrek. Podia ser viciado em sites de mulheres nuas. De homens nus. De pepinos nus. Claro que também podia ser melhor. Podia ser viciado em arrumar a cozinha. Em ir buscar o Joãozinho à escola. Em arranjar canos-
-e-coisas-que-pingam. Podia ser viciado em spas e iriam os dois passar três dias em tinas de rosas a ser esfregados com vinho e especiarias e a fazer envolvimento em chocolate preto e algas do mar Morto e a sobrevoar Alcanena de balão.
Onde é que íamos? Ah sim. O golfe. Suspiro.
… o surfe
Apaixonou-se por ele assim que o viu sair da água, tão louro e tão bronzeado e com um ar tão saudável. O pior é que se arrisca a passar a vida toda a vê-lo entrar e sair da água com um ar louro e saudável. Você é a que fica à espera dele na areia, como uma gaivota friorenta. A alternativa é ficar no carro a ler revistas velhas. No Verão, gasta dez frascos de protector solar 60. No Inverno, fica abraçada ao ‘kispo’ e ao termos de chocolate quente. Vive, como ele, ao sabor das marés. Sabe prever o seu estado de humor pelo estado do mar (ai tudo menos flat, tudo menos flat!). No aeroporto, você leva as malas e os miúdos, e ele vai carinhosamente abraçado à Outra (a prancha).
Já tentou juntar-se à leva de surfistas, mas depois de tentar equilibrar-se lá em cima sem resultado e de ter levado com a prancha na cabeça (como todas as amantes, a tipa não perde uma oportunidade para se vingar), regressou ao ponto cruz. Está farta de ir de férias para o Havai ou para a Ribeira de Ilhas, está farta de ver os campeonatos de G-Land Billabong Pro. Isto deve ser karma. Numa outra vida, deve ter sido mulher de um funcionário público, pálido e enjoado como um vampiro, e com alergia à areia. Às vezes, deseja voltar a essa outra vida.