*artigo publicado originalmente em outubro de 2016
“Os problemas mais comuns são os mais banais e aqueles que se podem tratar melhor”, assegura a oftalmologista pediátrica Ana Serôdio. “São aquilo que chamamos as ametropias, defeitos refrativos do olho que normalmente se corrigem com óculos: miopias e hipermetropias. Nem consideramos doenças até cerca das 5 dioptrias. Acredito que a maioria dos defeitos acabam por ser corrigidos naturalmente, quando detetados muito cedo, com uma lente ou outro tipo de correção.”
Professores e educadores “podem ser os maiores aliados de um oftalmologista”, quando estão atentos aos sinais de que algo não está bem. “Quando o professor ou educador recomenda que eles sejam vistos numa consulta de oftalmologia, quase sempre têm razão nas suas suspeitas. Há tempos, uma mãe contava-me que a filha nunca lhe ligava nenhuma quando ela a ia buscar à escola. Nunca lhe acenava quando ela chegava, ao contrário dos outros miúdos. Depois, na consulta, percebemos que ela era míope, passou a usar óculos e a fazer tudo isso, muito contente.”
Eis alguns dos mais comuns problemas de visão nas crianças:
Miopia
Um defeito refrativo que não permite ver nitidamente ao longe – embora ao perto a criança não manifeste problemas. “Frequentemente, um olho míope tem um eixo anteroposterior maior que o normal, por isso, a imagem vai ‘focar’ à frente da retina. Este eixo tem tendência a aumentar à medida que as crianças crescem.”
Tal como a hipermetropia, vem muitas vezes acompanhada de astigmatismo (não é frequente este problema aparece sozinho). “O olho não é uma esfera perfeita e regular, por isso tem partes mais ‘abauladas’ do que outras. Quase todos nós temos um bocadinho de astigmatismo, provocado pelo peso das pálpebras. Isso causa uma ligeira distorção das imagens. Muito típico é trocar o H pelo M, o P pelo F, o O pelo D. No caso da miopia, quando muito este astigmatismo estabiliza, ou então vai aumentando.”
O mito – “Se não usares óculos isso piora!”: “Tenho de lembrar sempre os pais que a miopia aumenta porque eles crescem e o olho cresce também. Usar os óculos, estar bem corrigido, não afeta em nada a progressão do problema. Isso quase só acontece nas hipermetropias com ambliopia, porque o olho preguiçoso tem de ser estimulado”, explica
a oftalmologista.
Em casa: “Crianças (e adultos) míopes semicerram os olhos para ver ao longe.” Muitos pais apercebem-se disso quando os filhos estão a ver televisão, por exemplo. “Preferem fazer atividades ao perto, como estar a jogar no telemóvel ou a ler do que a jogar à bola ou outras atividades que envolvam objetos que não veem ao longe.”
Na escola: “São capazes de ser muito bons na leitura do livro, mas enganam-se a copiar do quadro.” Em idades mais precoces, pode nem ser tão fácil de despistar porque, apesar de verem mal ao longe, “as crianças têm um poder de focagem maior que o nosso.”
Hipermetropia
Ao contrário da miopia, quem sofre dela tem mais dificuldades em focar imagens, quanto mais perto elas estiverem. Mas com mais do que 4-5 dioptrias de hipermetropia, a criança de tenra idade já começa a ver mal ao longe também. Também ao contrário da miopia, nas crianças a hipermetropia tem tendência a reduzir quando corrigida corretamente.
Pode vir acompanhada de astigmatismo, que tem tendência a reduzir se a visão da criança for corretamente corrigida. “Quanto mais cedo for corrigido, melhor”, alerta.
Na escola: “Os educadores normalmente dão por isto quando eles estão a fazer atividades como trabalhos manuais. Podem começar a afastar a cabeça do caderno ou então só conseguem estar concentrados durante poucos minutos, depois desfocam e dizem que não querem fazer mais. Não sabem explicar que está tudo desfocado. Começam a manifestar estes sinais na pré-escolar, que depois continuam no primeiro ciclo. Já vi crianças com este problema que são rotulados de hiperativas e que, afinal, sofrem de hipermetropia – as crianças têm um poder de focagem muito grande, mas só durante 2, 3, 5 minutos. Uma hipermetropia de 3 dioptrias, relativamente frequente numa criança em idade escolar, cansa muito a visão. Mas se lhe mostrar as letras, ao longe, dizem-nas todas – eles chegam (involuntariamente) a enganar-nos a nós! São considerados miúdos que aparentam ser desconcentrados.”
Em casa: “Um sinal frequente nos mais pequenos é eles mostrarem-se muito trapalhões e instáveis a andar.” É um problema que pode afetar o desenvolvimento motor das crianças. “Tornam-se inseguros a andar ou subir escadas, vão contra as coisas.”
Ambliopia ou ‘olho preguiçoso’
Resulta frequentemente do facto de a criança ter uma visão muito boa num dos olhos e muito má em outro. Falamos aqui da ambliopia relacionada com defeitos refrativos; existe a grande ambliopia, mais rara mas que envolve uma grande perda de visão. “Pode ter 5 dioptrias num dos olhos e 2 no outro – se existirem mais de 3 dioptrias de diferença já é uma preocupação. Quase sempre, afeta os miúdos com hipermetropia simples ou com astigmatismo – num míope é raro encontrar amblíopia com esta causa porque vê muito bem ao perto. Mas se a condição for detetada aos 2 anos ou mais cedo ficam muito bem corrigidos e recuperam.
Mas é difícil de corrigir, tem de ser operado? Não, se for detetado a tempo. “Precisam de ser acompanhados até terem a mesma visão nos dois olhos – o que se consegue corrigindo com a oclusão [tapar] do olho que está bom (que tem menos dioptrias), que deveria ser feito antes de eles irem para a escola.”
Estrabismo
É frequentemente consequência da ambliopia. “Pode ser alternante nos dois olhos, ou só num olho. A visão binocular alinhada e simultânea resulta do facto de não existir uma grande diferença de refração nos dois olhos – ou vemos bem com os dois, ou temos mais ou menos o mesmo número de dioptrias em ambos. Quando a diferença de dioptrias entre os dois olhos é muito grande, como no caso dos amblíopes, o olho que vê pior tem tendência a entortar para dentro, resultando no estrabismo convergente. Como ver exige uma visão neuronal adequada, o cérebro ‘acaba com a imagem’ do olho que vê pior e a parte neuronal relacionada com o processamento da visão atrofia. É essa falta de estímulo que torna o olho ‘preguiçoso’.”
Crianças com hipermetropias superiores a cerca de 5 dioptrias têm frequentemente estrabismo. “Às vezes o estrabismo aparece depois dos 18 meses, quando há um grande desenvolvimento psicomotor e a criança se começa a interessar mais pelas coisas e a cansar os olhos, entortando o olho para dentro. Se não for logo corrigido e endireitado, vai ter ambliopia. Grande parte dos estrabismos corrige-se ao corrigirmos a hipermetropia da criança.”
Quem sofre de estrabismo pode deixar de ter visão 3D (estereópsia). “Precisamos de alguma sobreposição da imagem dos dois olhos para ter visão 3D.”
Daltonismo
É uma condição genética e afeta cerca de 6% dos rapazes em idade escolar. “Devo ter visto 7 raparigas daltónicas ao longo da minha carreira.” Pode chegar a afetar a aprendizagem. “Tive o caso de um miúdo que ficou retido no 1.º ano. Achei estranhíssimo porque era muito esperto. Tinha imensa dificuldade a copiar para o quadro, enganava-se imenso e dizia que se desconcentrava. Percebemos que a professora usava verdes, cor-de-rosa, vermelhos, para escrever no quadro de ardósia e que havia muita coisa que ele não via porque era daltónico.”
Os daltónicos podem ter dificuldade em distinguir algumas cores. “O vermelho e, sobretudo, o verde (o mais frequente, que os faz confundir verdes e castanhos). Problemas em distinguir o azul e o amarelo são mais raros. Mas, normalmente, um daltónico convive muito bem com a condição.”
Exames à visão: com que idade?
Os primeiros exames aos olhos são feitos pelo pediatra de desenvolvimento, quando nascem e aos 6 meses. A primeira consulta de oftalmologia deveria ser feita até aos 3 ou 4 anos. “Daí para a frente, uma consulta de rotina de 2 em 2 anos, se a criança não tiver problemas maiores. Já as crianças com miopias devem ser vistas todos os anos, porque ela aumenta com frequência”, aconselha Ana Serôdio. Mas atenção, que os testes de optometrista não são exames de oftalmologia. “Uma criança com hipermetropia pode acertar as letras todas de uma tabela ao longe.”