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Tem-se falado muito de acolhimento, de refugiados, de integração, mas a presença de alunos estrangeiros em Portugal não é de hoje. Segundo o Ministério da Educação, o número de alunos internacionais matriculados em escolas públicas portuguesas aumentou 47% em apenas dois anos: em 2020 eram 83.307. E com os últimos desenvolvimentos mundiais é muito provável que este número aumente. Os brasileiros estão em maioria devido à facilidade da língua, mas há escolas com nacionalidades muito variadas: desde alunos dos PALOP até chineses, paquistaneses, russos e ucranianos (cuja presença no nosso país não é de agora).

Vou saber o que está por detrás disto tudo: como acolhemos quem chega, muitas vezes tão diferente de nós e muitas vezes tão maltratado de corpo e espírito? “Um dos piores pontapés que os teóricos da educação, como é o meu caso, têm dado é pensarem primeiro nas diferenças e só depois nas semelhanças”, começa Ricardo Vieira, antropólogo e professor da Escola Superior de Educação e Ciências Sociais do Instituto Politécnico de Leiria, investigador do CICS.NOVA e que muito antes destes assuntos serem moda já estudava a multiculturalidade e a educação intercultural.

Mea culpa, penso eu, que ainda há pouco vos falei de diferenças. “Isto é o resultado de uma cultura herdada do Estado Novo, que fabricou uma escola diferente até para os homens e para as mulheres. Mesmo nos liceus, rapazes e raparigas estavam divididos por um muro. E não eram ucranianos, nem negros, nem asiáticos, éramos portugueses mas separados por género. É isso que nós queremos para a escola de hoje, esse tipo de separação entre as pessoas?”

Tudo começa na ideia de cultura dominante (passem o chavão, que já vão perceber). “Há quem diga: ‘eles vêm para cá, que cumpram as nossas regras’. Mas quem é o ‘nós’? “Há um padrão assente numa espécie de cegueira cultural que acha que os ‘outros’ devem ser iguais a ‘nós’. Mantemos uma ideia de cultura muito uniforme, muito padronizada, muito folclorista. O problema nem é o ‘nós e os outros’, o problema é achar que o ‘nós’ é homogéneo e os outros idem. De certeza que hoje na Rússia há gente a chorar pelos ucranianos…”

O que mais nos unifica enquanto povo é a língua. “Mas mesmo a nossa língua é feita de muitas outras línguas! Portanto, aquilo que nos une também é construído com base na diversidade! A isto chama-se interculturalidade. Não é de agora que Portugal é uma cultura feita de outros povos, e hoje com uma muito maior mobilidade cada vez acontece mais sermos feitos de outros.”

A educação deve espelhar a língua: deve acolher várias influências. “A interculturalidade no ensino tem de ser não apenas esse convívio mas a partilha entre culturas”, defende Ricardo Vieira. “Eu aprendo alguma coisa consigo, a Catarina aprende qualquer coisa comigo. Isto não significa esquecer a sua cultura, mas enriquecê-la.” E Portugal nunca foi um país monocultural. Até gostamos de achar que somos tolerantes. “Verdade. Mas veja: a ‘tolerância’ não é solução. Eu não quero que me tolere, quero que me respeite. Eu não tenho de concordar consigo mas tenho de respeitar a sua maneira de viver. Portanto, a tolerância não basta. É preciso descobrir o respeito.”

Agora ouvem-se muitas línguas diferentes e esta realidade está a aumentar a cada dia. “Há quem veja nisto um problema e uma ameaça, mas isso não está no nosso ADN. Repare nas crianças: se as largar num recreio, elas brincam. Uma criança árabe até pode brincar de forma diferente de uma portuguesa, mas elas entendem-se porque no ADN humano sempre esteve esse contacto. Mas depois vem a educação formal e estraga tudo.”

Encontrar espaços comuns

Olhemos então para as escolas de hoje: como podem os professores lidar com 25 nacionalidades diferentes? O professor, que tem de encontrar maneiras novas de ensinar matemática e português através desse espaço comum. “Se eu não souber nada da Ucrânia, eu não consigo ensinar português a uma criança ucraniana”, nota Ricardo Vieira. “Se um professor tiver seis nacionalidades diferentes numa aula, ele tem de saber um pouco de todas? Sim, tem. Porque nós não podemos apagar a memória cultural dos outros. A inclusão é essa grande utopia no bom sentido: nós podemos viver juntos tendo em comum certas coisas e sendo diferentes noutras. A gestão das diferenças na sala de aula tem de ser feita educando as crianças para viverem juntas e para aprenderem a dialogar.”

E está otimista em relação a isso? “Nem por isso. Desconfio muito que todas estas boas intenções estejam a ser cumpridas. Chegaram os computadores e a tecnologia, mas a mentalidade, que é o mais importante, não mudou. Isso é preocupante. A formação dos professores não pode ser apenas técnica: tem de ser acompanhada por esta conversa que tivemos aqui os dois. Portanto, amemos a nossa cultura de origem mas sejamos cidadãos do mundo.”

Voltemos então ao local onde tudo se passa, a escola. Uma professora que sabe por experiência própria aquilo que eu só sei de teoria é Paula Jaulino, que no ano passado ensinou Geografia a uma turma do 8.º ano com seis nacionalidades diferentes. Os seus alunos vêm da Moldávia, Ucrânia, Brasil, Venezuela, Rússia, e Bulgária, que a escola agrupou na mesma turma para se sentirem mais apoiados. Estas crianças têm aulas de português como língua não materna, o que faz com que mais depressa se integrem. Mas nem sempre esta integração é suave.

“Havia uma menina búlgara que me chegou em novembro e não falava uma palavra nem de português nem de inglês”, conta Paula. “Eu tinha tanta pena dela! Não percebia nada, eu não conseguia comunicar com ela e não havia nada que pudesse fazer.” Essa aluna foi colocada apenas em aulas de português até ter um nível de compreensão suficiente para acompanhar as aulas. “Era uma dor de alma vê-la a copiar coisas do quadro sem fazer ideia do que escrevia” recorda Paula.

Traz para as aulas mais do que os temas ditados pelo programa: traz a sua própria experiência de duplamente emigrante, com a qual muitos dos seus alunos se identificam. “A minha família emigrou para França quando eu tinha 6 anos e só voltei a Portugal aos 12. Lembro-me perfeitamente do que é cair de paraquedas num sítio, deixar os meus amigos para trás e sentir-me completamente outsider, por isso partilhei essa experiência com eles. Quando fomos para França, os meus pais disseram-me ‘agora esqueces tudo o que sabes e não vamos mais falar português’, e foi o que aconteceu, tanto que não me lembro da minha vida para trás desse momento.”

Mas lembra-se bem do regresso, com uma idade ainda menor do que aquela que agora têm os seus alunos: “Tive de reaprender português, por isso sei o que é viver não uma mas duas mudanças de país e de língua. Cheguei a uma escola de Leiria onde não conhecia ninguém e foi uma transição difícil. Os meus colegas gozavam comigo porque fazia traduções à letra, por exemplo em francês diz-se ‘faire du velo’ e eu dizia ‘fazer bicicleta’… Claro que era uma risota.”

Agora os miúdos estão mais atentos às dificuldades dos colegas, mas nem tudo são rosas. “Não vamos achar que todos os miúdos são empáticos porque há muito cyberbullying, por exemplo.”

Claro que aquilo que as tecnologias têm de perverso também podem ter de bom: “Os miúdos refugiam-se nos telemóveis para manter laços com os países de origem, ao contrário do que aconteceu comigo, que perdi todos os amigos quando vim para Portugal.” Ponto contra: os telemóveis aproximam mas também afastam, impedindo que socializem com os outros nos intervalos. “Mas isso é um mal de todos”, nota Paula. “Os miúdos portugueses também passam os intervalos nos telemóveis. Até sou apologista de usar o telemóvel como ferramenta na sala de aula, mas em termos de socialização é péssimo. Os telemóveis fazem com que os miúdos socializem menos, se integrem mais devagar e sejam vítimas de um tipo de bullying mais cruel.”

Em termos culturais, muitas destas crianças têm tradições diferentes: “Muitas têm religiões diferentes, têm hábitos alimentares diferentes, mas nunca notei contrastes gritantes.” Conselho para outros professores nas mesmas situações: “Manter a calma e ser empático. Estamos pouco habituados a calçar os sapatos dos outros e a pensar no que é que gostávamos que fizessem connosco ou com os nossos filhos.”

Recorda uma pergunta que fazia aos seus alunos há uns anos: ‘Se fosses refugiado e tivesses que pegar numa mochila, o que é que levavas?’ “Agora com a guerra os miúdos chegam mais facilmente a essa empatia porque há mais notícias na televisão, mas quando foi do Afeganistão eles nem sabiam onde é que ficava. E as crianças nessas condições estão muito pior do que eu estava quando mudei de país. Uma coisa é ser emigrante, outra é ser refugiado. Se para mim já foi duro, nem imagino o que será para eles.”

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