Vivemos numa ‘cultura de superfície’. A expressão é do pedopsiquiatra Pedro Strecht, que no livro ‘O corpo é que paga’ (Ed. Contraponto) reflete sobre a relação conflituosa entre o corpo e a mente dos mais novos numa era em que a imagem é tudo e a padronização da beleza física se torna cada vez mais tirânica. É verdade que os adolescentes sempre se preocuparam com a sua imagem, mesmo quando as únicas redes sociais eram o grupo de amigos que se juntava no pátio da escola e quando muito o telefone. Afinal, é na juventude que somos mais giros (pelo menos teoricamente, e se falarmos em beleza física) e há que tirar partido disso. Mas o que é que mudou, no espaço que separa apenas uma geração?
Já devem ter adivinhado a resposta: mudou o meio através do qual comunicam, e mudando o meio, isso transformou totalmente a relação dos adolescentes (e a nossa) com o seu corpo. “O mundo parece circunscrever-se cada vez mais a um ecrã”, afirma Pedro Strecht. Vivemos de superfície plana, do nosso reflexo no ecrã. Talvez por isso tenham também aumentado as situações de hiperatividade, agressividade, angústia, depressão.
Mas vamos por partes: nada melhor do que expor ao médico as minhas principais dúvidas de adulta angustiada: afinal, que tipo de geração estamos a criar quando os deixamos ser educados por ecrãs? Como é que esquecemos a culpa de pais sobrecarregados com uma vida infernal e também eles viciados (é a palavra certa) e apanhados na armadilha da cultura de superfície e conseguimos ajudá-los? Como é que, nas palavras de uma das minhas entrevistadas para este artigo, recuperamos para eles a magia da adolescência?
Sentei-me na cadeira de paciente e fiz as perguntas de uma adulta um bocado à nora.
Vivemos numa cultura de superfície
Ponho a primeira pergunta a Pedro Strecht: se falamos da relação do adolescente com o seu próprio corpo, o que é para si mais preocupante hoje?
“A distorção da imagem corporal e, com ela, uma perspetiva rápida da perfeição. A não admissão e integração da noção de falha, de incompletude, da diferença”, responde-me. “O ser humano não é nunca total, a noção de normalidade passa por integrar aspetos positivos (bons) e negativos (maus) do seu corpo, da sua personalidade, da sua relação consigo mesmo e com os outros. E os adolescentes não fazem isso.“
Sabemos por experiência própria que ser adolescente sempre implicou uma relação complicada com um corpo em mudança. Mas hoje os adolescentes são cada vez mais confrontados com uma exigência brutal em relação à sua imagem. Eles estão em exposição constante, o que leva a uma valorização excessiva do que é superficial.”A ditadura da imagem corporal tem, hoje em dia, contornos fortíssimos junto das raparigas adolescentes, mas também do grupo dos rapazes: é completamente transversal a esta nova geração e a muitos dos adultos que a rodeiam”, confirma Pedro Strecht. “Existe na moda e no conceito de beleza, mas também em marcas de produtos diversos, em atitudes e comportamentos que se tornaram muito expressivos e que prometem um falso paraíso: dietas, ginásios, cirurgias… Aos pais pede-se sempre um papel regulador, de filtro e contenção, dos mais novos.”
Afirma no livro ‘O corpo é que paga’ que vivemos numa ‘cultura de superfície’. Por um lado, assiste-se à excessiva valorização do corpo, por outro a uma diminuição da vida psíquica e espiritual. Muitos querem ser Youtubers profissionais (e muitos são) ou ganham fama no Tik Tok ou no Instagram, que acham uma forma fácil de ter sucesso.
As redes sociais, curiosamente, vieram reforçar um dos perigos mais comuns na adolescência: o narcisismo. “Sim, um dos riscos das redes sociais é o reforço da imagem perfeita que não só se deseja mostrar, como espera sempre uma rápida aprovação – um ‘like’ -de reforço narcísico”, afirma Pedro Strecht. “Ainda bem que um adolescente se arranja, veste roupa que gosta e com a qual se sente bem, cuida de si diariamente, ou tem uma alimentação saudável e pratica desporto. O patológico é quando tudo isto se amplia, distorce e se torna central, dominando o modelo de relação intra e interpessoal, numa estruturação narcisista de personalidade que, aliás, é uma verdadeira pandemia emocional dos tempos atuais.”
Estamos a criar ‘desempáticos’?
A imagem de Narciso – quando nos enamoramos do nosso reflexo– é cada vez mais comum. E, curiosamente, parece estar ligada até à reemergência de ideias populistas. O narcisismo resulta do “uso e desuso do corpo enquanto expressão de uma estrutura mental que cada vez mais oferece resistência a processos de contenção, organização, mentalização e associação de diferentes vivências psíquicas”, nota Strecht no seu livro. Uma personalidade narcísica tem como objetivo o uso do outro. “O sujeito comunica com o outro não na perspetiva verdadeira de uma relação mutuamente gratificante mas de forma parasitária, e apenas por aquilo que alguém lhe pode vir a trazer em benefício pessoal.” Não admira que a empatia, nos nossos dias, esteja tão ameaçada…
Essa capacidade e se pôr no lugar do outro, a característica que em si define o ser humano, pode ser comprometida pelo narcisismo que estamos a adubar nos mais novos e que assenta na validação constante. “Quanto mais se alimenta, mais pede reforço e confirmação, numa vivência de contínua insatisfação pessoal, familiar e social, que nenhum suporte parece conseguir satisfazer”, nota Pedro Strecht. “A possibilidade de uma autêntica capacidade de atenção e permeabilidade surge assim comprometida, tal como tudo o que eventualmente representa um movimento emocional assente na noção de existência de algo ‘para além de si’.”
Uma imagem também pode ser uma forma de… exercer poder. “O corpo enquanto sinónimo de perfeição surge atualmente como forma de afirmação de ‘poder’ o próprio indivíduo sobre o seu semelhante”, explica Pedro Strecht. A exibição da beleza física é imediata, e é “uma maneira fácil de mostrar domínio sobre o próprio e sobre qualquer outro.” Como combater: mostrar-lhes que eles são muito mais que um corpo bonito, que uma imagem numa rede. Dar-lhes outros interesses, outras pessoas, outras realidades.
Um mercado a explorar
Ok, então o que temos: uma geração educada por ecrãs e ‘likes’, que constrói a sua identidade no reflexo dos olhos – ou do ecrã – do outro, o que está a resultar numa verdadeira ‘epidemia narcísica’ de jovens obcecados com a sua imagem.
Vou procurar a minha próxima entrevistada: nada melhor do que uma mulher que lida diariamente com o olhar das próprias raparigas sobre o seu corpo. “Eu acho que tive imensa sorte: tenho 36 anos, cresci numa ‘bolha’ de tempo em que ser adolescente ainda era uma coisa mágica, e hoje sinto-me a anos-luz da geração mais nova”, conta Sofia Santareno. Cirurgiã plástica e Diretora Clínica da The Dr. Pure Clinic, muda todos os dias a vida de pessoas a quem dá uma nova autoestima. Mas é também uma das mais determinadas defensoras de que a transformação do corpo não é para ser tomada de ânimo leve. E a conversa que tivemos é das mais interessantes para quem queira perceber o que se passa no mundo de espelhos em que vivemos.
“A exposição constante do corpo é fruto dos tempos que vivemos”, nota Sofia Santareno. “A evolução tecnológica e da globalização colocam-nos automaticamente dentro de um fluxo de informação gigante que vem muitas vezes de sociedades mais avançadas em algumas coisas. Nos EUA, aos 16 anos uma adolescente tem autorização para conduzir e assume-se como mulher feita. Há uma sexualização cada vez mais precoce também fruto da tecnologia, da globalização, das séries que passam essa imagem, de uma transição cultural importante, e de uma autonomização tecnológica cada vez mais precoce. Os pais cada vez trabalham mais e não conseguem entreter os jovens, e quando eles próprios usam as tecnologias, colocam-se numa posição em que também não as podem negar aos filhos.”
Aqui está feito o resumo do nosso mundo. Mas este é um mundo que tem camadas escondidas, de que muitas vezes não nos apercebemos.
“Aquilo de que muitas pessoas e certamente muitos jovens não se apercebem é que nada disto é inocente”, explica Sofia Santareno. “Por trás de uma rede, de um chat, há muitas indústrias que seguem e estudam os universos das crianças e jovens como potenciais e poderosos mercados a explorar. Uma rapariga, quando chega à pré-adolescência, já é um mercado enorme, e neste momento ainda não há um controlo do que é que se pode vender a clientes adolescentes, que pela sua idade têm uma capacidade de explorar os pais no sentido de pedir alguma compra. Portanto, há todo um mercado de moda e beleza que começa muito cedo.”
O sexo vende
A socialização virtual coloca-nos numa posição em que temos de parecer bem visualmente. Mas essas presenças são cada vez mais rápidas, mais precoces, menos acompanhadas. “Neste momento, o sexo vende” alerta a cirurgiã Sofia Santareno. “A informação em relação ao sexo, na sociedade portuguesa, ainda é tabu, e portanto as empresas servem-se desta desinformação para explorar os jovens. Tenho várias pacientes com filhas adolescentes e que me dizem: ‘A minha filha tem 14 anos e eu não consigo ter mão nela. As amigas já todas perderam a virgindade, têm sexo oral como se fosse banal, só falam em unhas de gel, extensões e decotes’. Isto para mim é assustador porque é tirar às meninas a possibilidade de terem um crescimento gradual e sereno, tirar-lhes a hipótese do ‘namoro’ com elas próprias, de perderem a virgindade com alguém de quem realmente gostem e numa altura em que estejam preparadas para isso.”
Na adolescência o corpo muda tanto que é normal haver algumas questões de insegurança que precisem de ser trabalhadas a nível psicológico. “Mas colocar na equação mais o mercado da beleza com procedimentos injetáveis e cirurgias, não é aceitável.”
Aquilo que deve ser corrigido
Claro que outra coisa totalmente diferente são as patologias congénitas com que algumas pessoas nascem e que devem ser corrigidas. “Dentro das cirurgias indicadas estão o Síndrome de Poland, que se caracteriza pelo subdesenvovimento do músculo peitoral de um lado do corpo”, explica Sofia Santareno. Também existem alterações muito específicas, como o lábio leporino, que se podem corrigir, ou a Gigantomastia (hipertrofia mamária juvenil) quando as mamas são demasiado grandes para o tamanho do corpo. Outro problema que se corrige nas adolescentes é o oposto, a Hipoplasia Mamária, quando as meninas são mesmo uma tábua rasa, e a Mama Tuberosa, quando a mama tem um anel fibroso que limita o crescimento circular e empurra os tecidos na direção do mamilo, criado uma mama de forma tubular ou cónica (daí o nome de tuberosa). É também um problema congénito, que afeta um terço das mulheres portuguesas.
Os rapazes também podem ter problemas congénitos a corrigir por cirurgia, como o Pectus Excavatum, uma depressão no centro do peito, ou a Ginecomastia, quando a mama de um rapaz se desenvolve de forma fora do normal, que pode estar associada ao consumo de anabolizantes. Podem ainda ser corrigidos os mamilos múltiplos, e também o Síndrome de Poland.
Falamos sempre de raparigas quando se fala em hipersexualização e imagem corporal, mas os rapazes também não têm uma vida fácil: “A nova geração de rapazes também tem muitas questões: o que é ser-se masculino, se o cuidado do corpo equivale a metrossexualidade ou a bissexualidade, há todo um mundo complexo de dúvidas relacionadas com a imagem”, nota Sofia Santareno. “As redes sociais colocam os rapazes numa rede complexa: ou são adolescentes com muita auto-confiança fruto da educação que têm em casa ou são muito inseguros e podem usar a sua visibilidade como uma causa. De resto, o tipo de corpo magro e longilíneo, que lhes dá a ideia de não serem suficientemente masculinos, leva-os muitas vezes a treinos e a consumo de substâncias que devem ser sempre devidamente acompanhados.”
O foco no que é mais fútil
Este tipo de patologias que vimos atrás devem ser corrigidas e inclusive estão previstas no Sistema Nacional de Saúde. Mas é importante haver abertura por parte das famílias para que as meninas consigam falar sobre o seu corpo. “Isto é totalmente diferente de valorizar exageradamente a imagem, fruto de targets de negócio que estudam muito bem a psicologia das adolescentes e a forma como podem entrar nas famílias, numa altura em que o objetivo devia ser alterar a mudança do corpo sem o alterar, obviamente no caso de não haver nenhum problema congénito”, resume Sofia Santareno.
“Confesso que me faz-me confusão ver Tik Toks de miúdas que mostram o rabo, como se só tivessem essa forma de se afirmarem. Mais me custa ainda é saber que a cultura de injeções e procedimentos cirúrgicos em adolescentes já chegou a Portugal, e são muitas vezes realizadas em sítios pouco conhecidos ou seguros. Acho isto perigoso e chocante, e como cirurgiã plástica acho que tenho o dever e a função de negar cirurgias que não devem ser feitas.”
O que mais defende é o retorno a valores espirituais (até como defesa contra o narcisismo que vimos há pouco, lembram-se?) “Importa que o foco volte ao crescimento pessoal, em vez de um foco no que é absolutamente fútil. Mas o foco no que é mais fútil vai continuar a acontecer a não ser que os pais e médicos façam a sua parte.”
Mas também sabe que é uma mudança que dificilmente vai ver. Também falta muito uma adaptação tecnológica nossa. “Os adolescentes vivem através das redes sociais, e portanto nós temos que ir lá. Não adianta pregar lições de moral deste lado, porque eles não vão ouvir. Se eu tivesse um filho adolescente, eu também estaria presente nas redes.”
A mesma coisa defende Pedro Strecht: as redes, devem ser usadas a nosso favor, e dos filhos. “Claro que as redes sociais vieram para ficar mas, atenção, elas vão continuar a evoluir tornando obsoletas as que debatemos agora. É um fenómeno para aprender a viver e utilizar pelas facetas positivas que também pode trazer: comunicar, ligar, estar mais atento ao outro, partilhar, etc. E não esqueçamos que existem adolescentes bastantes saudáveis que usam redes mas conseguem perfeitamente ter e ampliar uma vida individual, familiar e de relação para além disso.”
Hábitos que ficam para sempre
Há sempre medidas que podemos tomar. A mais importante é não esquecer que a busca da beleza continua perfeitamente legítima para uma boa autoestima.
“Claro que a beleza física continua importante para os adolescentes como para qualquer pessoa”, defende Sofia Santareno. “O que eu diria se tivesse um filho ou uma filha adolescente: “Queres ser bonita? Vou-te ajudar.” Eles têm de sentir que estão a fazer qualquer coisa por eles, mas que não é preciso fazer preenchimento de ácido hialurónico nos lábios, não é preciso ter unhas de gel, nem pestanas postiças, nem extensões. Tem de haver uma boa rotina de exercício físico, uma boa rotina de cuidados de pele de alimentação. E essa é a minha sugestão para os adolescentes: o autocuidado, que não deve ser confundido com futilidade. É a altura para se começar a cuidar, para ter atenção à balança, para comer bem, para se mexer, para cuidar da pele, e estes são hábitos que vão ficar para sempre.”
Quanto aos obcecados por selfies, importa ir lá onde eles estão, saber do que falam, como é o mundo deles. E dar-lhes outros mundos para lá dos muitos espelhos de que a sua vida não pode ser exclusivamente feita.