Basílio Santos já está habituado à cena: é o único pai num mar de mães à espera dos filhos depois das aulas na Escola de Dança do Conservatório Nacional de Lisboa. O filho, Guilherme, 11 anos, também é quase o único rapaz: na sua aula só há mais um, para nove meninas.
“Comecei a dançar aos 4 anos, no primeiro ano comecei a ter aulas na escola da Ana Mangericão e no ano passado entrei para o Conservatório Nacional”, explica Guilherme. No confinamento, treinou sozinho em casa, com aulas à distância. Confessa que foi difícil, mas fez-se. “Para ser bailarino temos de gostar do que fazemos, para que os nossos movimentos sejam livres e possamos brilhar quando dançamos.” Já foi ver vários espetáculos ao vivo. “Adorei o Lago dos Cisnes e o Quebra Nozes, mas para dançar prefiro dança contemporânea. A dança clássica é superdifícil. Temos de estar ali a subir a perna muuuito devagaaar.” (risos)
Mas não gostava de fazer outra coisa nem estar noutro sítio. “Pode parecer um bocado estranho, mas eu odeio futebol. Sempre brinquei mais com as raparigas porque elas brincavam a várias coisas e os rapazes só jogavam futebol. Não temos de gostar todos da mesma coisa, mas parece que temos.” Mesmo assim, admite que “muitas vezes, quando as pessoas troçam de alguém que anda na dança é por ignorância. Por exemplo, quando troçavam de mim, eu explicava que havia muitos rapazes na dança, o Marcelino Sambé, o António Casalinho, e os outros rapazes não sabiam nada disso. Quando são rapazes que andam na dança, eu já sei que me vão compreender.”
Encontrar a sua ‘tribo’
O desembaraço ‘explicativo’ do Guilherme pressupõe muitos anos de reflexão sobre o assunto. “A surpresa das pessoas já é tão vulgar que ele se habituou a ‘explicar-se’”, conta o pai, Basílio. “Claro que, na minha perspetiva egoísta de pai, tenho muita pena que ele não partilhe a minha paixão pelo futebol. Gostava de ter um filho que fosse comigo ao estádio ver o Sporting, mas desde que o comecei a levar ao parque com uma bola, percebi que aquilo não era para ele. Eu acabava a jogar à bola com outros miúdos enquanto ele andava lá nas piruetas.” (risos)
Rapidamente percebeu que, apesar de não dar para Ronaldo, o filho era fisicamente mais dotado que os outros rapazes. “Só não tinha qualquer gosto pelo desporto. Era como um Einstein que não conseguisse usar o micro-ondas, por exemplo.” (risos) Andou ali um bocado baralhado com a ‘equação’ Guilherme e a tentar vários caminhos. “Experimentou a ginástica, mas também não era bem aquilo. A mãe começou a fazer ioga com ele. E a certa altura entrou numa escola de dança e gostou muito.”
Problema: na escola, o Guilherme acabava por ficar de fora do grupo dos rapazes. “Começou a haver muito bullying, e a certa altura eu e a mãe resolvemos tentar que ele encontrasse a sua tribo. Felizmente, conseguiu ser aceite no Conservatório de Dança, e isso resolveu muitos problemas.”
Encontrar a sua tribo não significa uma vida fácil. “Na dança não se brinca”, nota Basílio. “A competição é muita e a disciplina é para ser cumprida.”
Nota que na sociedade ainda existe segregação dos rapazes que gostam de ballet, e que muitos pais portugueses nem querem imaginar a possibilidade de um filho bailarino, o que faz com que a grande maioria dos meninos nem sequer tenha oportunidade de experimentar. “À grande maioria dos pais nem lhes passa pela cabeça pôr os filhos rapazes no ballet”, nota. “Mas muitas vezes não é uma questão machista. Admito que desportos como futebol ou basquete tenham mais a ver com a maioria dos rapazes. Além disso, jogar à bola é fácil. Dançar é muitíssimo difícil. É como ser um atleta de alta competição. E a maioria dos miúdos hoje já não está para tanta disciplina e rigor. Por outro lado, não há nenhum pai homem que faça uma grande cena se o filho quiser ser atleta.”
O género é uma construção social
Márcia Laranjeira é psicóloga educacional, colabora no serviço à comunidade da Faculdade de Psicologia na área de aconselhamento vocacional, e a forma como as crianças constroem as suas aspirações é uma das suas áreas de investigação. Faz notar a enorme influência que os educadores, pais e professores têm na vida dos mais novos. “Há imensas crenças e expectativas que influenciam o desenvolvimento das capacidades e motivações da criança e do adolescente, e acabam por limitar a sua liberdade. Temos todos de estar atentos porque estas expectativas espelham-se na forma como os educamos.”
Qual é o problema de pôr um rapaz a praticar futebol e não ballet? “O problema é que quando oferecemos aos nossos filhos experiências estereotipadas, estamos a limitar a sua vida, as suas cognições do mundo e das pessoas. Por isso é tão importante termos consciência destes estereótipos na altura de escolher uma atividade extracurricular ou oferecer um brinquedo.”
Na escola também há diferenças entre rapazes e raparigas. “Por exemplo, há estudos que mostram o efeito da profecia autoconfirmatória: os professores tendem a ter expectativas mais positivas sobre o desempenho dos rapazes a matemática, e isso depois reflete-se no comportamento dos miúdos. O mesmo acontece na leitura para as meninas. Tendemos a comportar-nos segundo o que os outros esperam de nós, portanto existe desde muito cedo uma ligação muito grande entre percepção de competências, crenças, desempenhos e interesses, que vamos desenvolver por certas atividades. Isto muitas vezes não é consciente para ninguém, nem para quem aprende nem para quem ensina.”
Lançamos os dados muito cedo, é isso? “Claro. Por exemplo, a escolha de uma carreira, mais do que uma escolha é uma construção, que depende da eliminação de alternativas que a criança considera como não fazendo parte da sua imagem, do seu autoconceito. E um dos elementos mais importantes continua a ser a associação socialmente imposta entre identidade de género e áreas de competência, apesar de na atualidade internacional e nacional existirem bons modelos femininos em todas as áreas.”
Educar longe de estereótipos
Na sua tese de mestrado, tentou perceber por um lado quais eram as aspirações das crianças e por outro as áreas que elas rejeitavam. “E acontece muitos rejeitarem áreas que eles viam como não condizentes com o seu género”, explica. No primeiro ciclo, os rapazes escolhem áreas ligadas ao poder, à força, ao raciocínio: querem ser pilotos, polícias, bombeiros, engenheiros, futebolistas. As raparigas escolhem mais áreas relacionais ou artísticas: professora, atriz, cantora, cabeleireira.
Um pouco mais tarde, além do género surge a questão de estatuto social e prestígio. “Crianças de meios socioeconómicos mais desfavorecidos também têm aspirações mais baixas, o que é um pouco desanimador para as nossas expectativas de mobilidade social. Pensamos que nada está à partida determinado, mas há uma série de fatores que roubam a algumas crianças a capacidade de sonhar.”
Quer as questões de género quer o determinismo social poderiam ser trabalhados pelos educadores, mas primeiro seria preciso que tivessem consciência de tudo isto. “E quando um sonho fica para trás, raramente uma criança vai lá recuperá-lo”, nota Márcia Laranjeira.
Problema: mudar esta lógica de ideias dá trabalho porque significa mudar atitudes, crenças, de autoconhecimento e busca de alternativas exequíveis e realistas.
“O peso social é muito grande, daí que nem sempre eles consigam alinhar-se mais com aquilo que querem e são, em vez de aquilo que os outros esperam deles. Já apanhei, por exemplo, jovens que eram excelentes alunos e queriam seguir engenharia, mas essa escolha não era um gosto pessoal, era formada pelas expectativas da família. Eram rapazes, bons alunos, logo seriam engenheiros…”
A própria Márcia faz um esforço familiar para se manter à parte de estereótipos, mas como mãe também já reparou que não é fácil. Com uma filha, de dois anos e meio, tem tentado educá-la longe de padrões de género. Mas é inevitável que isso aconteça. “Estamos de tal forma inseridos numa sociedade estereotipada que as brincadeiras que ela tem já estão associadas ao género. Portanto, nós pais não conseguimos controlar tudo o que os rodeia. Mas uma das ideias importantes a passar é que podemos, se quisermos, esbater diferenças socialmente impostas.”
De qualquer maneira, vamos avançando. Quando fez a sua tese, perguntou às crianças se uma profissão podia ser desempenhada por homens e por mulheres, e muitas concordavam. “Os rapazes que diziam que as raparigas também podiam ser futebolistas explicavam que ‘já tinham visto na televisão mulheres futebolistas’ ou ‘já tinham jogado com uma rapariga e ela jogava bem’. Portanto, é importante expor as crianças a modelos não tradicionais.”
Apesar de, em teoria, estas respostas já estarem a ser dadas por alguns, a inclusão em grupos e o risco de exclusão continua a preocupar muitos pais. “Essa é muitas vezes a razão da escolha das atividades. Ninguém quer que o filho seja alvo de bullying. Mas podemos ir por outros lados, por exemplo, mostrar às crianças que há homens e mulheres governantes, polícias, bailarinas e bailarinos, e ir esbatendo os estereótipos. Há muito que não conseguimos controlar, mas o importante é tomar consciência desses condicionalismos e fazer a nossa parte para mudar o mundo, porque senão vamos continuar a ter pessoas muito infelizes nas vidas que escolheram.”
Ser rapaz ou rapariga ainda tem influência nas atividades que escolhem (ou que outros escolhem por eles), nas carreiras que seguem, no curso que estudam. Mas o peso dos estereótipos está a abrandar, à medida que pais e educadores se apercebem da sua importância na vida dos mais novos. Por exemplo, já se dá mais visibilidade ao campeonato de futebol feminino, por exemplo, coisa que há poucos anos seria impensável. Se há quem defenda que são ‘modernices’? Há. Mas de certeza que disseram a mesma coisa quando Galileu afirmou que a Terra andava à volta do sol.
Quem escolhe o quê
Em Portugal, as mulheres ainda predominam nos setores da saúde e ação social, educação e restauração, enquanto as áreas mais masculinizadas são a construção, a pesca, a eletricidade, gás e água, e os transportes. As engenharias e tecnologias também se têm mantido áreas mais masculinas, pelo menos no que diz respeito ao emprego. Em Portugal, as mulheres correspondem a 38% das pessoas licenciadas nas áreas STEM (Ciências, Tecnologias, Engenharias e Matemáticas) e os homens constituem 62%. Mas segundo dados do EIGE – Instituto Europeu para a Igualdade de Género, que mede o desempenho dos países em matéria de igualdade de género nos domínios do trabalho, rendimento, conhecimento e saúde, Portugal regista cada vez mais mulheres nestas áreas.