Sim – e não. E não há nada de errado nisso. Andamos a dizer às crianças que elas são ‘especiais’ mas estaremos a criar gente verdadeiramente especial ou uma geração pouco habituada ao esforço?
O caso aconteceu no ano passado, e deu escândalo nos Estados Unidos. Na exclusiva escola privada de Wellesley, Massachusetts, quando, como é habitual, um dos professores subiu ao estrado para fazer o discurso de encerramento do ano, o texto não foi exatamente o que se esperaria.
Pais e filhos não estavam preparados para a bomba lançada pelo professor David McCullough, dirigindo-se aos alunos: “Vocês não são especiais. Vocês não têm nada de excecional. Vocês têm sido apaparicados, elogiados, protegidos, festejados e resguardados toda a vida. Vocês preferem palmadinhas nas costas ao verdadeiro esforço e ao verdadeiro resultado.”
Em estado de choque, a nação dedicou muitas páginas a debater a ‘lebre’ levantada pelo professor de inglês.
Afinal, depois de anos e anos a dizer às crianças que são ‘especiais’, agora voltam a não ser? No livro ‘A Armadilha da Autoestima’, a psicóloga Polly Eisendrath explica ‘a importância da normalidade’ e defende que o facto de os pais passarem a vida a dizer às crianças que são especiais está a torná-las egoístas, irrealistas e arrogantes, tudo porque os pais vivem no pavor de terem crianças ‘normais’.”
“É uma questão complexa”, reflete o psicólogo Richard Weissbourd, na revista ‘Psichology Today’. “É importante mostrar às crianças que de facto são especiais. Mas é perigoso fazer disto a base da educação. As crianças podem sentir que são melhores do que as outras, não em coisas particulares mas de um modo geral. Podem tornar-se frágeis, ansiosas e com muito medo de errar.” O desafio é, então, ajudar as crianças a perceberem e desenvolverem aquilo em que são boas, sem as tornar arrogantes nem vaidosas.
Aprender a perder
“Quando o meu filho estava no secundário, lembro-me de ir assistir a um dos espetáculos da banda lá da escola, que não era muito boa”, recorda o jornalista da CNN, LZ Granderson.
“Que é que achaste”, perguntou-me ele no fim. “Uma boa porcaria”, disse eu com um sorriso. “Somos mesmo maus, não somos?”, concordou ele. E desatámos os dois a rir-nos tanto que as lágrimas até nos caíam pela cara.” A cena levou o pai à reflexão sobre aquilo que dizia aos filhos. “Os pais não ajudam as crianças quando estão constantemente a dourar os falhanços para proteger os seus sentimentos.
Para aprender a ganhar, uma criança tem de aprender a perder.” E para aprender a perder têm de ganhar aquilo a que os nossos avós chamavam ‘estaleca’: “Se as crianças não conseguem lidar com a competição ou aprender a aceitar uma crítica, ou nunca se esforçarem por serem melhores porque os pais sem crer os programaram para acreditar que já são os melhores, mesmo quando não são, arriscam-se a ter a vida complicada.” Ou seja, os pais e professores devem inspirar nas crianças o prazer de aprender por aprender, viver por viver, ler por ler, sem ser pela preocupação de ter uma boa nota ou um elogio.
Enfim, o próprio jornalista assume que passa a vida a elogiar o filho, com um pequeno acrescento. “Digo sempre ao meu filho que ele é absolutamente fantástico para mim e para a mãe e para a família e amigos mas que todo o resto do planeta não se podia estar mais nas tintas. Isto não é cruel. É assim que as coisas são: toda a gente é especial para alguém, ninguém é especial para todos.”
A geração do Merecimento
Será que estamos a passar da geração do elogio à geração do esforço?
“A minha amiga Kristen contou-me hoje que tirou os filhos do clube de ténis”, conta a blogger americana Liz Gumbinner, do premiado blog ‘Mom-101’. “Explicação: até as equipas más recebiam um troféu, e essa não era a lição que ela queria passar aos filhos.” Liz concorda. “É fantástico receber um troféu, uma festa, um elogio. Mas têm de ser merecidos. Quero que os meus filhos aprendam a orgulhar-se do que fizeram, sem precisarem de alguém ao lado a dizer-lhes aquilo que são.” Claro que, nota Liz, a cultura da palmadinha nas costas está por todo o lado. Estamos a ficar viciados em ‘likes’, em gente que nos diz ‘Mas tu és fantáááááástica!’ nas redes sociais. Mas isso não é realista e não dá às crianças uma noção do seu merecimento.
A mesma opinião tem a autora do site www.popculturemom.com. “A geração entre os 10 e os 30 é ‘a geração do merecimento’: passaram a vida a ouvir que eram especiais sem fazerem nada de especial para isso.” Afirma que quer que a sua criança se sinta especial: “Mas ser especial é qualquer coisa que se merece, que se trabalha para ser. Não se é ‘especial’ automaticamente. Não quero, daqui a 25 anos, ser o tipo de mãe que diz que o filho não se aguenta no emprego porque o chefe ‘não o compreende’ ou ‘não se sente motivado’.”
Há elogios vazios?
Ao contrário do que se pensa, o mimo e a educação não se excluem, e as nossas ‘princesas’ podem muito bem ser educadas para darem o seu melhor.
O elogio e a recompensa continuam importantes armas educativas. “Poucos nos levantaríamos de manhã para trabalhar se não fôssemos pagos para o fazer”, nota a psicóloga Helena Águeda Marujo, autora do livro ‘A Família e o Sucesso Escolar’. “A educação de crianças e jovens autoconfiantes, responsáveis, seguros e felizes apoia-se mais no apontar do bom do que no corrigir do mau.” Mas é igualmente inútil elogiar indiscriminadamente, o que retira valor à recompensa: “Se o elogiarmos sobre tudo o que faz, não estamos a ser sinceros e não o ajudaremos a reconhecer que algumas áreas precisam realmente de melhorias.” Afinal, parece que há ‘elogios vazios’ tal como há calorias vazias: só têm açúcar, podem danificar o organismo e não alimentam… Mas tudo isto tem causas e consequências. Afinal, de onde vem a geração do ‘elogio vazio’ e que resultados pode ter?
Não seja escravo dos filhos
Não tivemos o discurso de Wellesley contra ‘os especiais’, mas tivemos uma outra ‘bomba’, lançada há uns tempos por Inês Teotónio Pereira, no jornal ‘I’: “Os filhos de hoje são uma espécie de hitlerzinhos sem bigode, uns verdadeiros déspotas domésticos. A época em que os filhos temiam os pais acabou, e assistimos agora a um período revolucionário doméstico em curso. Hoje, quem manda são os filhos. Os pais foram depostos e vivem sujeitos a uma espécie de escravatura.”
Autora do livro ‘A um metro do chão’ e mãe de seis filhos, Inês recorda como foi criticada por pais indignados, e reforça a sua linha de pensamento: “Temos hoje cada vez menos filhos, e desses a grande maioria são filhos únicos. Portanto, as crianças estão-se a tornar uma relíquia, um luxo e uma preciosidade, algo a ser protegido e mimado a todo o custo.” Ter filhos é agora algo racional, é uma escolha.
“Dantes, adaptava-se as circunstâncias às crianças. Hoje, antes de nascerem já têm o seu reino preparado.
Resultado, a vida dos pais torna-se um inferno porque ficam inseguros. Acham que os filhos são deles, e por isso as vidas deles são as nossas e os sucessos deles são os nossos. Vivemos na angústia de eles falharem ou não terem o que todos os outros têm.” Os filhos devem ter os seus próprios mundos, e os pais os deles. “Pessoas que deixam de viajar, de ir ao cinema, de estar com os amigos, porque não deixam o filho de 12 anos com ninguém…
Isto é uma loucura. Hoje, os pais vão à escola pedir contas aos professores, a culpa nunca é da criança.
Hoje, eles não aprendem a lidar com a frustração, não se magoam, ninguém os obriga a ir para a cama a horas certas, ninguém os obriga a esforço nenhum. Claro que a certa altura as pessoas ficam exaustas, quebram, literalmente fartam-se dos filhos.”
A própria já se recusou a ser motorista dos filhos. “Eles andavam todos no futebol, o que implicava treinos separados aos dias de semana e ao sábado. Tirei-os a todos. Ficaram tristíssimos, mas não dava mesmo.” Acompanhar os filhos às atividades não é bom? “É até ao ponto em que se torna uma escravidão”, defende Inês Teotónio Pereira. “A certa altura aquilo implica tanto esforço de parte a parte que deixa de ser uma alegria e uma brincadeira. O pai começa a ver o sucesso do menino como o seu sucesso e eu vejo treinos transformados em fanatismo onde as crianças não podem estar simplesmente a jogar pelo prazer de jogar. Estarem os pais a aplaudir a criança quando ela marca golo é uma frustração! Claro que é importante apoiá-los, mas mais importante que dar-lhes a mão é eles saberem que têm uma mão para agarrar. Ter lá sempre a mão é desrespeitá-los. A única coisa de que as crianças precisam é amor e carinho. Mais nada!”
AS CRIANÇAS MANDAM
Pelo menos, mandam na televisão: segundo um estudo do Discovery Kids feito no Brasil, 78% das crianças escolhem o que querem ver, e mesmo quando está a família toda em casa 91% das famílias assiste a um canal infantil.
412 CRIANÇAS ENTRE OS 10 E OS 12 ANOS FORAM ESTUDADAS PELA INVESTIGADORA CAROL DWECK. Conclusão: é preferível ajudá-las a lidar com os desafios e mesmo deixá-las falhar do que passar a vida a elogiá-las. Isto requer que pais e filhos aprendam a lidar com a ansiedade e o fracasso.
O que não elogiar: A inteligência, a beleza, a força.
O que elogiar: O esforço, a forma de resolver um problema, o que fez para lá chegar.
UM ELOGIO DEVE SER SEMPRE ESPONTÂNEO.
De outra forma, faz com que a criança, em vez de apoiada, se sinta julgada.
in Naturalchild.org
ABC DO ELOGIO
. Elogie especificamente. Deixe claro o que está a elogiar e porquê.
. Elogie quando o seu filho fez qualquer coisa fora do normal, não por fazer o que é o seu dever todos os dias.
. Seja genuína: as crianças percebem quando um elogio é a sério ou quando é vazio.
. Elogie o progresso não lhe diga que é um escritor fantástico, elogie apenas as 10 páginas que foi capaz de escrever.
. Seja realista: se ele canta pior que um garfo a riscar um prato, porque há de encorajar o sonho de ser cantor? Encoraje um sonho com mais pernas ou garganta para andar.
. Eleve a fasquia conforme o que a criança pode dar. Se pode dar mais do que 10, porquê ficar-se por aí?