Imagine que tinha um irmão muito bom aluno. Ou irmãs gémeas a quem toda a gente faz bilu-bilu. Ou um irmão com deficiência, que absorve toda atenção da mãe. Os irmãos tornam-se muitas vezes defensores do elo mais fraco (ou mais forte) mas o percurso em direção à autoestima e autonomia não se faz sem alguns percalços.
E para os pais, que se ‘matam’ para dar o seu melhor mas permanecem necessariamente divididos entre a atenção que dão a uns e a que não dão aos outros, a culpa está sempre presente. Fomos ouvir o que têm a dizer os ‘irmãos de’ e os pais (atenção que as entrevistas já foram recolhidas há algum tempo, mas a atualidade mantém-se).
MARIA, 15 ANOS
IRMÃ DE MANUEL,13, SOBREDOTADO
Maria tem dois irmãos: o Manuel e o Miguel, de 3 anos. “Os meus irmãos são as melhores coisas que eu tenho na vida”, começa por dizer a irmã mais velha. “Mas não vou dizer que gosto de ouvir os professores a dizerem-me: ‘És irmã do Manel? E por que é que não és boa aluna como ele?’ ou ‘Nem pareces irmã do Manel, ele porta-se tão bem e tem tão boas notas e tu és exatamente o oposto’. A minha mãe está sempre a dizer-me para não faltar ao respeito aos professores e é o que eu faço. Mas custa-me ouvir isto. O que eu penso é que o meu irmão tem muito boas notas e eu tenho muito jeito para socializar fora da escola. É assim: há pessoas boas na escola e pessoas boas na vida. Nem sequer é na escola que se vê se somos bons ou não, há quem tenha mais facilidade em reter informação e a inteligência não se faz só disso. Eu não gosto de estudar. E gosto de falar. Mas sou desenrascada. Além disso, os professores não me conhecem, simplesmente me dão aulas.
Mas tudo isto me ajudou a crescer. Tive de me confrontar com estas coisas que me diziam e arranjar maneira de não me magoarem.
Não foi fácil. Mas hoje já não me afeta ouvir um professor a dizer mal de mim ou a minha mãe a dizer bem de mim. Sei que as coisas em que somos bons vão equilibrar as coisas em que não somos bons.
A minha mãe sempre me disse que eu posso não ser inteligente tipo academicamente mas sou responsável, tomo conta dos meus irmãos, cozinho, ajudo em casa. E o meu irmão tem sorte em me ter como irmã, porque ninguém se mete com ele. Quando se vê em maus lençóis, diz que é irmão da Maria.”
“Foi muito duro para a Maria”
A mãe dos três admite que faz um esforço para respeitar as muitas diferenças entre os filhos, especialmente os mais velhos. “Decidi parar de os levar todos juntos para todo o lado. Ao fim de semana saio de casa de manhã e vou jogar à bola com o Miguel, enquanto a Maria e o Manuel estudam. Quando volto, vou almoçar com a Maria e à tarde levo o Manuel ao cinema. O Manuel é absorvente, mas não acho que os irmãos sintam isso. As professoras às vezes é que não ajudam, fazem muitas comparações entre os dois.
Isto foi muito duro para a Maria, por isso comecei a falar com ela sobre isso.
Conseguiu dar a volta, e tenho um enorme orgulho nela. Sou adepta das diferenças mas também da união. Quero que eles sejam irmãos unidos, tenho trabalhado com eles para isso, e acho que consegui.
E o facto de uma criança ser muito esperta não quer dizer que não tenha reações infantis. Por exemplo, o Manuel às vezes tinha ciúmes do Miguel e dava–lhe beliscões por trás. Eu não lhe disse ‘pára lá de dar beliscões no teu irmão’.
Temos de ser mais espertos do que eles.
Disse-lhe: ‘Sabes, muito do que tu és hoje deves à tua irmã. Ela sempre foi muito paciente contigo, mesmo quando tinha todas as razões para ter ciúmes’.
Temos de saber dizer-lhes o que queremos deles sem lhes dar ordens.”
ALICE, 19 ANOS
IRMÃ DE GÉMEAS, 15
Alice é irmã das gémeas Laura e Marta. “Os meus pais sempre tiveram muito cuidado para se controlarem e nos tratarem da mesma maneira às três. Mas houve algumas questões em que eles gastaram mais tempo com as minhas irmãs. No ano passado, por exemplo, entrei para a faculdade. As minhas irmãs foram pela primeira vez para turmas separadas, e andava toda a gente num alvoroço com a integração das meninas. Eu fiquei a pensar ‘passei por isto de cada vez que mudei de escola e ninguém se ralou’, e confesso que amuei um bocadinho.
As outras pessoas que não os meus pais davam sempre muitíssimo mais atenção às gémeas, especialmente quando eram pequeninas, e enfim duas eram sempre mais fofinhas que uma. Quando eu era miúda, tinha muitos ciúmes, sim. Era a mais velha, e o facto de terem chegado duas em vez de só uma, piorou a situação.
Aliás, quando elas nasceram, fiz uma birra tão grande que me enfiei debaixo da cama da enfermaria e não deixei que ninguém me tirasse de lá.
Hoje em dia, já não tanto, porque já se esgotou um bocado a novidade de elas serem gémeas, mas de vez em quando ainda acontece (os ciúmes, não a parte de me esconder debaixo da cama!).
Se bem que há situações em que não ser gémea de ninguém compensa. Uma coisa que acontecia muito, e que confesso me dava um certo gozo, era oferecerem-nos presentes do mesmo tipo, mas iguais para elas e diferentes para mim (acontecia muito com perfumes).
E aí elas ficavam revoltadas porque receber dois presentes iguais era o mesmo que receber só um, e eu claramente ganhava por ser a ‘não gémea’.”
MARIANA, 15 ANOS
IRMÃ DE CAROLINA, COM AUTISMO
Como é estar sempre a explicar o que a irmã tem? “Damo-nos muito bem, melhor que os irmãos normais, porque a Carolina cede mais, não fica tão chateada com tudo. Dormimos no mesmo quarto, mas não brincamos as duas porque ela prefere estar sozinha. Ter uma irmã como a Carolina tornou-me mais atenta às outras pessoas. Não nos chateamos quase nunca. Muito raramente discutimos. Mais difícil é ela estar sempre sozinha e não gostar que se metam com ela, mas sempre me habituei a vê-la fazer isso. Quando vão amigos lá a casa, a Carolina continua sozinha no canto dela, mas ninguém a incomoda. Eu explico que ela tem autismo, e às vezes ela própria já tenta ser amiga deles e brincar um bocadinho. Mas pouco.”
Susana é mãe da Mariana e da Carolina, e conta que se apoiou muito na Mariana. “A Mariana acabou por crescer mais depressa por causa da Carolina. Estas crianças, irmãs de pessoas com alguma especificidade, são mais tolerantes mas também se tornam mais críticas: não aceitam nada sem pôr em causa o que lhes dizem. Portanto sim, crescem de maneira diferente. Mas raramente discutem, porque a Carolina, como não se envolve, deixa as coisas rolarem.
Quando elas eram pequenas, era muito complicado. Inconscientemente, eu acabava por me apoiar muito na Mariana.
A nossa vida era ‘Mariana vai-me buscar isto, Mariana fica com a Carolina, Mariana ajuda-me aqui’. Mas isso criou uma cumplicidade muito grande entre nós, e também entre as irmãs.
A Mariana tornou-se a protetora da Carolina. Os miúdos com deficiência são sempre vistos como diferentes pela sociedade, e muitas vezes os irmãos também apanham estes olhares. Os irmãos também são vistos eles próprios como diferentes e para uma criança isto não é fácil. Portanto, ou compram uma guerra e ficam também separados, ou se protegem. Gerir os dois mundos não é fácil.
Não quero que a Mariana fique refém da irmã, por isso propus–lhe ir para uma escola diferente da Carolina. Ela preferiu ficar na mesma escola. A adolescência é complicada, mas toda a gente é gozada por qualquer coisa, o que quer que seja. Portanto, o importante é não fazer drama e levar as coisas com bom senso.”
FELIPE, 16,
IRMÃO DE VERA, 12, COM TRISSOMIA 21
Vera é a filha do meio de cinco irmãos, com idades entre os 5 e os 19 anos. Felipe afirma que trata Vera como qualquer outro dos irmãos. “O que mais gosto nela é que não faz tantas perguntas como os outros. É muito sincera e muito séria. Em termos de falta de atenção dos pais, eu não fui tão afetado como a Rita ou o Vasco, porque nasci antes. As outras pessoas olham para a Vera, claro. O problema é que elas não sabem o que é a Trissomia 21, e isso torna-a uma outsider. Mas ela é independente. Faz tudo o que os outros fazem. De vez em quando precisa de um empurrãozinho nos TPCs. Mas quem não precisa?”
“A Vera precisa de mais atenção, mas os outros percebem isso”
Marcelina é a mãe dos cinco e afirma que, para os irmãos, o mais difícil é lidar com os preconceitos da sociedade. “Os irmãos lidam com a Vera como com qualquer irmão. Ela é mais educada que todos os outros. Cumpre as suas regras tal como os outros, e eu exijo de todos o melhor que cada um pode dar. Se dou mais atenção à Vera do que aos outros? Isso é uma pergunta manhosa (risos). Se eu disser que dou igual, estou mesmo a ver os comentários dos outros. Claro que tento dar a mesma atenção, mas se algum deles precisa de mais assistência, eu tenho de a dar. Ou seja, a Vera precisa de terapia, portanto é normal que por vezes ela exija mais de mim do que os outros. O meu lema é que cada um tem de ter aquilo de que precisa.
Mas claro que depois os irmãos usam isso muito bem. ‘Ai sim, a Vera pode, mas eu não posso’. Eles sabem que aquele é o meu ponto fraco. Sabem que esse é o meu medo, que não esteja a equilibrar tudo como devia. Por outro lado, as crianças são sempre assim com os irmãos, se não fosse por isso, arranjavam outras formas de ‘cobrar’.
Mesmo as outras pessoas tendem a prestar mais atenção à Vera. Mas nós sempre falámos sobre isso em família, e os meus outros filhos percebem isto muito bem. Os irmãos de crianças com deficiência são sempre diferentes: os meus filhos são muito maduros, muito sociáveis, muito empáticos, são os reis da festa, com uma capacidade social acima da média. Isso aplica-se também às turmas onde estas crianças estão: os colegas tornam-se mais humanos, mais tolerantes.”
ADVERSÁRIO OU PROTETOR?
Os irmãos que tem um irmão ‘diferente’ de algum modo podem sentir-se de duas maneiras: ameaçados na sua individualidade, ou amadurecidos pela responsabilidade que lhes toca na educação dos irmãos.
OS DIREITOS DOS IRMÃOS…
… Segundo a projeto Sibling Support (siblingsupport.org), que apoia irmãos de pessoas com necessidades especiais:
– O direito a viver a própria vida, independentemente da presença que podem ter na vida do irmão
– O direito a passar pelas mesmas etapas de outras crianças, sem se esperar que compensem pelos irmãos
– O direito a fazer asneiras e a ser irresponsável, como todas as crianças
– O direito a ter os pais só para si, de vez em quando
– O direito especialmente para as raparigas a partilharem responsabilidades com os irmãos rapazes em vez de arcarem com todo o peso.