
Há 25 anos, a violência doméstica tornou-se crime público. O psicólogo Daniel Cotrim tornou-se Assessor Técnico da Direção da APAV (Associação de Apoio à Vítima) há 24. Desde então que é um dos homens em Portugal que mais tem batalhado pela igualdade, pela justiça, pela não-violência, pelo esclarecimento.
Neste mês de Maio em que celebramos as mulheres e as mães, fomos falar com um dos homens que mais se bate pela sua causa. E saímos de lá com a noção de que os estereótipos são duros de roer. Até eu, que na minha inocência me achava uma pessoa aberta, democrata e não-ignorante, levei um raspanete lá pelo meio. Aqui se falou de violência, de redes sociais, de medo, risco e ciúme mas também de sobrevivência, amor e empatia, numa das entrevistas mais instrutivas, inspiradoras e interessantes que fiz na vida. Ora leiam.
(Ah, começámos a falar sobre a IA e se alguma vez poderíamos ter consultas de psicologia com uma máquina. Portanto entremos já na conversa)
Acredita que é possível um terapeuta não-humano ser o futuro?
Possível é. A questão é se é desejável. Por isso, não, não acredito. Mas há várias formas de se acompanhar uma pessoa. Antes do Covid eu tinha a certeza absoluta que apoio psicoterapêutico à distância não funcionava. Cinco anos depois, acredito exatamente no oposto. Claro que o presencial é muito importante mas tenho pessoas que acompanho e que nunca vi fisicamente. Se resulta? Resulta. Claro que depende da pessoa, do tipo de terapia e de situação, de tudo isso. Se calhar a relação com um ecran de permeio não é a mesma. Mas o processo terapêutico faz-se.
A empatia acontece na mesma?
Claro. Agora, empatia não é, como muitas vezes se diz, eu calçar os sapatos do outro. A Catarina calça 37, eu calço muito mais, se eu calçar os seus sapatos vou ficar mal calçado. O que eu faço é ficar ao seu lado e olhar na sua direção. Vejo com os meus olhos e percebo a realidade que está a ver, mas com outra prespetiva. Quanto mais em cima dos olhos virmos uma coisa, menos a vemos. Portanto, aquilo que um terapeuta faz é também trazer prespetiva, distância. E o online permite-nos isso. Aliás, até há pessoas que se sentem mais tranquilas. Às vezes no presencial tenho pessoas à minha frente que, passado um certo tempo, eu já sei que ficam inquietas a pensar no carro que está mal estacionado ou no parque que é preciso prolongar (risos). Online não há isso.
Que cuidados é preciso ter online?
Por exemplo, tento manter sempre o mesmo cenário atrás de mim. Isto parece um pormenor mas dá segurança às pessoas. Se por acaso não estou no sítio onde costumo estar, há quem fique inquieto. E com razão. Eu também não gosto que as pessoas mudem de sítio. Mas já tive quem me atendesse no carro, inclusivamente. Imagine o perigo.
Quando é que descobriu que queria ser psicólogo?
Em miúdo não queria ser psicólogo. Queria ser padre (risos).
É parecido…
Achava que os padres ajudavam as pessoas. Nunca tive grande contacto com a religião. Tenho 52 anos, e na altura Sacavém já era um bocado dormitório de Lisboa mas tinha uma área antiga construída pelas pessoas que trabalhavam na fábrica da loiça. Havia muito associativismo, de muitas formas. A minha mãe tinha sido catequista, eu nem sequer à catequese fui. Mas quando ia a casa dos meus avós, que viviam numa aldeia, eles iam à missa e tinham uma relação muito direta com o padre, que conhecia toda a gente. Eu queria ser assim. Depois quis ser outras coisas. Era muito tímido e os meus pais acharam que o teatro me ia fazer bem. Fez bem demais (risos). Fiz o curso de psicologia sempre com o sonho de ser ator.
O que é que ser ator lhe ensinou?
Não me tirou a timidez mas ajudou-me no processo de tentar entender o outro, de me colocar ao seu lado, trazer a personagem para dentro de mim. E ensinou-me a criatividade. Porque quando se é psicólogo, temos de ter o conhecimento e a técnica, mas a forma de chegar ao outro nunca é igual. E portanto isso exige uma criatividade constante. Por isso é que qualquer profissão que trabalhe com pessoas – a sua imagino que seja igual – é desgastante.
Temos de estar constantemente a afinar o instrumento…
Sim, a adaptar-nos, porque a maneira como eu chego a si não é a mesma como chego a outra pessoa. Ainda hoje gosto de trabalhar com grupos, com famílias, com casais, com grupos de apoio como temos aqui.
Com funcionam em grupo as mulheres vítimas de violência?
A ideia do grupo é mostrar que ninguém é único. Mas há dinâmicas estruturadas, há objetivos, claro que com espaço para a liberdade sempre e permitindo que as pessoas possam sentir e expressar emoções básicas para além da tristeza. É sobretudo colocar cá para fora a zanga. São mulheres profundamente zangadas, e nós vivemos numa sociedade onde, quando as mulheres se zangam, se diz que são malcriadas. A zanga é malvista. Libertar a tristeza é simples: choramos, dizemos onde doi. Libertar a zanga é mais complicado.
Chorar não é mal visto, mas ficar zangada é?
Sim. Porque é uma coisa violenta. É agressivo e instintivamente temos medo disto, principalmente as mulheres, que ainda são educadas para a não-agressividade. E é muito bonito ver uma mulher gritar o seu nome. Estas mulheres estiveram tanto tempo em silêncio, com mãos simbólicas – e quantas vezes mãos verdadeiras – à volta do pescoço delas, que permitirem-se gritar é empoderador.
Isso não é difícil?
Claramente. Muitas vezes nem têm palavras para isso. Mas há estratégias, como usar a música, o movimento, o som. Nós muitas vezes nem temos de usar palavras. Queixamo-nos através de sons. E muitas vezes elas não querem que as outras saibam o que lhes aconteceu, principalmente em casos de violência sexual. Este caso recente em França foi importante porque a vítima escolheu dar a cara.
É uma questão de vergonha?
Não. O problema é que as raízes desta violência surgem num contexto de intimidade, de relação. Colocar isto em causa é que é duro – para qualquer pessoa. O que as vítimas sentem não é diferente do que nós sentimos todos os dias em relações sem violência nenhuma. Costumo dizer que há uma santíssima trindade da violência: ponto 1 – a esperança. A maioria das pessoas que recorrem à APAV não pedem ajuda para elas mas para os companheiros ou companheiras. ‘Se pudesse falar com ele, dar-lhe uma palavrinha, se calhar ele tem um problema…’ Depois há o amor, a parte mais complicada. Porque cada pessoa vive o amor de maneira diferente. E o que estas pessoas sentem é que muitas vezes não estamos a julgar o crime mas uma forma de amar. Quantas, quantas, vezes elas ouvem: ‘Então se ele lhe batia porque é que ficou?’ Esta é a pergunta proibida. Porque o amor tem muitas formas. Vou dizer uma coisa chocante: é possível amarmos o maior canalha do mundo. E não é preciso ser-se doente psiquiátrica para isso acontecer. Estas pessoas sabem que amam canalhas. A terceira parte é o medo. Todos nós temos que a nossa relação falhe. Mas estas pessoas têm outros medos associados: medo de morrer, medo de explicar aos filhos, medo de assumir perante a família. Tudo isto é muito complicado de gerir.
Conte-me um caso que o tenha marcado
Há um ano estava a falar com uma rapariga muito jovem, com educação superior, que foi para uma casa-abrigo seis meses depois do casamento, mas a família não sabia e achava que ela estava no estrangeiro. Às tantas ela disse que se tinha separado dele. E eles insistiram para que voltasse, ‘ai vocês namoraram tanto tempo…’ Na família dela não havia violência e portanto eles não eram capazes de a compreender. Além disso, o pai dela tinha uma dívida de 25 mil euros ao banco para pagar o casamento… Como é que ela podia agora dizer-lhe que o casamento tinha falhado? Às vezes ficamos presos por coisas assim, terra-a-terra.
Portanto há um milhão de coisas de que se pode ter medo…
Há. E o que um abusador faz é usar estas fragilidades da outra pessoa contra ela, para a manter presa, a continuar a achar que aquilo é natural, apesar de as pessoas saberem que levar um soco, uma tareia ou ouvir nomes todos os dias não é natural. E depois isto dá a volta e chega outra vez à esperança, num ciclo que se perpetua. Mas todos nós fazemos isto. Se a nossa relação está tremida, nós damos o braço a torcer, ‘cedemos’. Partindo disto, temos de olhar para a violência doméstica como um crime, deixando de julgar as pessoas pelas decisões que tomam. A violência doméstica é diferente do roubo, por exemplo. Se me roubarem o telemóvel, fico aborrecidíssimo mas depois se calhar até compro um melhor. Se for vítima de violência, tudo o que me acontece é irreparável.
São danos a quem a pessoa é?
Tal qual. E quanto menos apoiadas forem as pessoas, mais o dano perdura, mais a marca fica. Portanto, cada caso tem uma dinâmica própria. Aliás, eu hoje até posso querer sair e mudar a minha vida, e amanhã já não quero.
Pergunta estúpida mas eu tenho de a fazer: como é que eu sei se tenho uma relação baseada na violência ou simplesmente ‘complicada’, como se diz no Facebook?
Há uma linha muito ténue: a sensação de risco. Há relações em que a violência é mútua e faz parte da relação, e os dois não sentem isto como violência, porque nunca se sentiram em perigo. Numa situação de violência há esta sensação de risco: eu começo a alterar comportamentos para que isto não aconteça. Começo a proteger-me, tenho medo que isto piore porque a minha estratégia já não é suficiente. As mulheres e homens vítimas de violência doméstica são especialistas em avaliação de grau de risco. Antes de nos contactarem, as vítimas já construíram sozinhas um plano de defesa pessoal. E nós temos de as ouvir para saber adequar-nos a isso, levando uma resposta mais eficaz sem descurar o que ela já fez.
Quando é que as pessoas decidem procurar ajuda?
Quando a vida se torna insuportável. Quando têm de prever todos os comportamentos do outro, de se proteger de todas as maneiras.
E há quem mude?
Há. Felizmente. Mas ninguém muda o comportamento sem mudar o pensamento. É como deixar de fumar. Porque é que há tantas recaídas? Porque primeiro temos de perceber qual é o papel do cigarro na nossa vida. Com a agressão é igual. Eu fumava dois maços por dia até nascer a minha filha mais velha. Aí comecei a ter rituais obsessivo-complusivos, mudava de roupa e tomava banho constantemente, não parava de lavar as mãos, porque achava que ela ia sentir o cheiro do tabaco. Quando percebi isso, deixei de fumar de um dia para o outro. Portanto, às vezes a própria pessoa agressora consegue recuperar.
Há um retrato-robot de um agressor?
Não. Um agressor não é um doente mental. Um agressor nasce de várias formas. Ou na sua história passada e familiar já existia violência (mas não é necessariamente assim) ou se torna agressor porque vivemos numa sociedade absolutamente desigual. Nós crescemos com um conjunto de mitos, preconceitos e estereótipos, e a pessoa agressora acredita nisto tudo. Aliás, a vítima também. Muitas vezes, o casal não pretende separar-se e essa situação tem de ser avaliada. Mas depois seria preciso perceber se de facto as coisas mudaram.
Porque calculo que não baste eu perceber que sou agressora para que tudo mude…
Claro que não. As pessoas têm de ser responsabilizadas. Porque senão, o agressor diz à vítima, ‘Vês? Ninguém acreditou em ti…’ Às vezes, na fase de acusação, o Ministério Público percebe que eles já estão a viver um com o outro. E diz: ‘Ah, afinal já fizeram as pazes’. Não necessariamente. É um jogo de poder, de co-dependência. As pessoas são livres de se juntarem outra vez. E a vítima é que decide se pára o processo ou não, e muitas vezes pára. Mas quando o Ministério Público sabe que há ali um risco até de morte, não pode pôr essa responsabilidade nos ombros da vítima!
Então o que é que devia ser feito?
Tem que haver uma monitorização atualizada da situação, assim como das que são arquivadas ou passam a pena suspensa. Portanto, temos de tirar essa responsabilidade à vítima. Há uma coisa que eu estou sempre a ouvir: a violência doméstica é uma coisa cultural. Não é! É um crime público!
E portanto, o agressor tem de ser parado. Também há casos em que o agressor estava separado há vários anos, o processo ficou arquivado, e de repente o homem volta e degola amulher ou ex-mulher. Ou ela vai buscar as crianças à escola, ele manipula-a, consegue que ela entre no carro com ele, e ele dá-lhe um tiro. Portanto, precisamos de monitorizar estas situações mais de perto.
E como?
O Estado português deu às organizações da sociedade civil o papel de substituir o Estado no apoio às vítimas de crime. E paga-nos a todos. Então porque é que não referencia estas situações para que as organizações possam fazer esta monitorização? Nós na APAV todos os dias avaliamos o grau de risco nas situações que nos aparecem. Muitas vezes as pessoas nem querem apresentar queixa, mas nós dizemos ‘De acordo com o seu grau de risco, eu vou ter de continuar a acompanhar esta situação e apresentar queixa ao Ministério Público’. Se a pessoa não quer mesmo fazer isso, propomos telefonar dia sim dia não. Isto não é uma ameaça, é tornar aquela pessoa co-responsável pelo seu processo. O sistema culpa, nós preferimos responsabilizar. E isto é um trabalho continuado até que a pessoa diga que não o quer mais. Aí cabe-nos a nós esquecer ou avançar.
Podem avançar à revelia da pessoa?
Ó Catarina! É um crime público! Quantas vezes temos de repetir isto? Está a fazer o mesmo raciocínio do Estado, que é pôr o ónus da culpa na pessoa. A altura da primeira notificação é o maior risco. E portanto temos de ter muita cautela a ponderar este tipo de situações, porque nós não estamos lá em casa delas a proteger as pessoas… Por isso quanto mais as pessoas estiverem apoiadas, melhor. Mas também é preciso passar aos agressores e agressoras uma ideia de responsabilidade. Aquilo é um crime.
Vocês ficam muitas vezes frustrados?
Claro que ficamos. A nossa lei é ótima, muitas vezes resolviamos as situações com facilidade. Mas no ano passado tivemos à volta de 700 condenações para 20.000 denúncias!
E porque é que não há mais?
Por muitos motivos. Muitas vezes o processo é arquivado por falta de provas. Aliás, o sistema esconde-se muito por trás das provas. Em 12 comarcas já existem técnicos de apoio à vítima que trabalham juntos do Tribunal e dos procuradores. Isto é o que devia haver no país inteiro. Porque, se escutarmos as pessoas, elas dão-nos a informação toda. E se falar com um técnico especializado na área, ele vai perceber o que aconteceu. O mal é que o sistema ainda desconfia muito destes técnicos. Muitas vezes fazemos quilómetros de relatórios que depois em julgamento não servem para nada. Quando chega ao juiz, eles não querem saber disto para nada. Querem é ouvir a vítima. Ora muitas vezes a vítima é obrigada a falar tendo o agressor mesmo atras dela, ou confrontar-se com toda a família do agressor na sala de espera! As nossas salas de tribunal não são como nos filmes, e muitas vezes quem dirige o julgamento não tem qualquer sensibilidade para perceber isto. E então claro que há muitas mulheres que se calam: já foram ameaçadas lá fora.
Isso é assustador…
Pois é. E depois confrontam-se com um magistrado que lhes diz: ‘então você não diz nada? Agora que podia falar está calada?’ Portanto isto joga tudo pelo silêncio da vítima.
Por isso é que continuam a morrer tantas mulheres…
E há outra situação muito comum: o agressor é condenado, mas a seguir à fase de detenção nós sabemos que vão acontecer coisas. Pode demorar seis meses ou 12 anos, mas vão acontecer coisas. Por isso é que os vizinhos às vezes dizem, ‘De facto houve uma altura em que eles discutiam muito, mas agora estava tudo calmo…’ Nunca me esqueço de uma mulher que foi assassinada há uns anos. Ela tinha metido um processo por violência doméstica, o indivíduo foi condenado a pena suspensa e saiu do país, mas ela informava a polícia de que ia recebendo mensagens ameaçadoras. E sempre que ela ia à esquadra, o que lhe diziam era ‘ele está longe, não se preocupe’. Mas ela sabia o risco que corria. Ia-se casar nesse ano com o atual companheiro. Quando o ex soube disto, meteu-se no carro e veio assassiná-la na véspera do casamento, na presença do filho dela, um gaiato de dez anos. E a seguir meteu um tiro na cabeça. Podemos dizer, era inevitável. Mas os dados e o risco estavam lá. Isto não quer dizer que a polícia funcione mal, quer dizer que não estamos preparados para estas situações. É preciso ouvir as pessoas.
O ciúme ainda provoca muitos crimes, não é?
Eu costumo dizer que o ciúme não existe. Existe a inveja, mas o ciúme é uma construção literária. É visto como cuidado, atenção, amor. É desculpado. Mas é uma coisa adolescente. Qualquer pessoa com a minha idade ou a sua já percebeu que o ciúme é uma treta.
Mas há muita gente de todas as idades que não percebeu…
Pois há. Em palestras com jovens eu costumo dizer que o ciúme tem três níveis. Há o ciúme fofinho: eu gosto de ti e tu gostas de mim e é natural que não goste que andes a rir para todos. Ciúme intermédio: não deixa ser amigo de algumas pessoas no Insta, escolher a sua roupa, achar que não posos sair à noite, dizer coisas sobre mim, pressionar-me para ter sexo. E depois há o ciúme mau: não deixar falar com ninguém, já lhe bateu, controlo total. E depois eles percebem que tudo isto é uma treta porque amar é cuidar, não é fazer mal.
E eles percebem?
Claro que percebem. Temos é de ter o cuidado de não passar sermões, ou a certa altura eles não nos querem ouvir mais. Faz parte da vida cometer erros e eles são perfeitamente capazes de perceber isso. Fez-se um estudo enorme aqui há uns tempos em que se perguntava aos jovens se davam acesso à sua pass do telemóvel à pessoa com quem andavam. 80% disseram que sim. A primeira reação é fazer a cara que está a fazer agora. Mas a justificação deles é que têm confiança suficiente para fazerem isso. Porque não fazem isso com os pais? Porque vão ser controlados e porque não têm de se meter na minha vida. Ora tudo isso faz perfeito sentido quando se é adolescente! Claro que com isto não estou a dizer que controlo não é bom. Mas nem tudo é controlável.
Mas estamos numa sociedade em que a violência é balizada, não é?
Muito. Eu prefiro a palavra naturalizada. Nós naturalizamos estes comportamentos entre nós. É natural eu sentar-me no metro e ver um fulano a roçar-se numa mulher. É natural porque vivemos num país de machos e os machos roçam-se… É natural as raparigas serem vítimas deste tipo de comportamento em qualquer lado… E isto continua a ser estrutural na nossa sociedade.
E como é que mudamos?
Prevenir cada vez mais cedo. E trabalhar temas com seriedade desde muito cedo: o que são relações pessoais positivas, o que é a paz, a liberdade, a democracia, como se constrói. No outro dia, na escola do meu filho mais novo, houve um inquérito a circular sobre bullying. E a diretora dizia ‘os miúdos sabem lá o que é o bullying’. E eu perguntei, mas isso não faz parte dos conteúdos de cidadania? Então de que é que falam? Ou seja, a cidadania não serve para nada daquilo para que foi criada. E isto não se deve ficar pela escolas. É fundamental envolver as famílias, envolver as comunidades, haver planos locais nas freguesias, estar perto das pessoas. Alguém sabe que há apoios para violência doméstica na sua área? Ninguém sabe! Nos países nórdicos trabalha-se a inteligência emocional há anos! Temos todos de perceber como é que as emoções jogam com a nossa racionalidade. Porque também há muita falta de inteligência nos profissionais que deviam ajudar as pessoas. Temos de perceber o que é bom e o que é mau, dar nomes às coisas, o que é risco e o que é perigo, onde é que eu estou bem e onde é que eu estou mal.
Como vê o impacto das redes sociais?
Não tenho nada contra, mas têm um problema: são propagadoras de falsa ciência. Temos gurus da falsa verdade a propagá-la principalmente no TokTok, numa altura em que o mundo vive cada vez mais os perigos do discurso populista, do discurso do medo, do discurso do ódio, da ideia de que a diferença não é para ser entendida, e tudo isto é a propagação de falsa ciência. Problema: quem faz isto não são os influencers de há uns anos que deitavam canela para trás das costas, mas é gente perigosa que se autointitula mestre em psicologia clínica e que esgota pavilhões. E nós não sabemos como lidar com a catadupa de informação que de repente nos caiu em cima.
Mas os pais sabem disto?
Acho que dá jeito aos pais dizer que não sabem. E depois há quem defende que as raparigas devem voltar a fazer croché e a ficar em casa! Claro que isto não é só cá. Nós saímos do medo do Covid para o medo de uma guerra iminente. Tudo isto traz muita incerteza. Há muita pobreza outra vez, a vida é precária e angustiante. E toda esta fake science alimenta esta onda de medo. Hoje em dia as teorias da conspiração aparecem por tudo e por nada porque as pessoas estão outra vez doutrináveis. Mas se voltarmos ao domínio da igualdade, da cidadania, da não-violência, tudo isto é posto em causa. Os miúdos voltam a acreditar que homens e mulheres têm poderes e capacidades diferentes, que o feminismo é uma praga, e nós que lidamos com vários tipos de violência não podemos ficar de braços cruzados a ver isto acontecer.
Então voltamos a si… Como é que chegou aqui?
Quando acabei o curso não queria ser psicólogo. Como sempre estive ligado ao associativismo fui fazendo outras coisas, e 3 anos depois do curso retomei a psicologia e ofereci-me como voluntário para a APAV. Quando dei por mim, estava cá sempre. Nunca tinha sido uma área que me atraísse, até porque na altura não se falava muito em maus tratos, como se dizia na altura. Mas quando vim, foi apenas para perceber se era isto que eu queria. Nas outras organizações, não havia acompanhamento aos voluntários e aqui havia. Portanto, senti que era uma coisa mais organizada. Acabei por ser convidado para assessor técnico. E aqui fiquei.
Como é que um homem é visto entre mulheres?
Não foi fácil. Nessa altura não havia muitos homens nas áreas de violência doméstica, de género e contra as mulheres, tal como continua a não haver. E eu era completamente olhado de lado (risos). Que vem este aqui fazer? (risos) Elas nem sequer me ouviam, olhavam umas para as outras e passavam à frente. Felizmente consegui ganhar o meu lugar nestes grupos e ganhar o respeito delas porque sempre fui feminista e fiquei cada vez mais. E hoje as coisas correm melhor também porque as organizações colaboram muito mais umas com as outras. E não nos podemos esquecer que o 25 de Abril tinha sido há muito pouco tempo. 50 anos depois as coisas estão muito melhor, mas este melhor é de há 15 anos para cá. As pessoas têm cada vez mais noção dos seus direitos e nós temos cada vez mais obrigação de os assegurar. E também acho que temos de ser cada vez mais intervenientes no espaço público.
O que é mais complicado?
O mais complicado é que isto não é uma luta contra a violência, é uma luta contra tudo o que são desigualdades: a homofobia, o racismo. o sexismo, a discriminação a todos os níveis, e estão todas a acontecer ao mesmo tempo. E muitas vezes lidamos com o desconhecido. Por exemplo, na área do ciber-crime todos os dias acontecem coisas novas. As coisas mudam tão depressa que é preciso reagir imediatamente.
Consegue chegar a casa ao fim do dia e desligar disto?
Na maioria das vezes consigo. Claro que há casos que me tiram o sono. Tenho a felicidade de ter uma família muito generosa para com os meus momentos de irritabilidade, que continuo a ter. Nunca tive vontade de desistir, mas é um desânimo quem vem de pensar se valeu a pena, porque ouço coisas que já não ouvia há muito tempo e que nunca julguei ouvir outra vez. Depois do Covid, aquela história da violência doméstica ser ‘cultural’ voltou. Quando tantos de nós nos batemos durante tantos anos para mostrar que não, a violência seja ela qual for nunca é desculpável com a ‘cultura’ mas é um assunto de direitos humanos, verficar que esse discurso está a voltar é muito assustador.
Devíamos estar a levar isto a sério?
Pois devíamos. Em vez disso andamos a discutir se devemos vestir os rapazes e as raparigas de azul ou cor de rosa, as casas de banho neutras e se as equaçoes são mais difíceis para os rapazes. E diz-se coisas como ‘azul sempre foi para os rapazes, então agora vou ter de mudar?’ E ‘se eu quiser identificar-me com esta mesa, já posso’. Mas sempre pôde… A ideia é, isto é uma patologia que lhe transtorna a existência ou faz a sua vida absolutamente normal e acha que é uma mesa? Lá está, voltamos à necessidade de falar de igualdade, do que significa, de como se manifesta. Mas vivemos o tempo das conversas de café, só que são cafés com milhões de pessoas, que não se apercebem de que o objetivo disto tudo é confundir e enganar as pessoas.
Mas falar abertamente de todos estes assuntos ainda transtorna muita gente, não é? Eu uma vez quis entrevistar uma professora a propósito das aulas de cidadania e respondeu-me ‘tudo bem, se não tocarmos em questões de género’…
Sabe o que é que está a acontecer? Não falamos nestas questões, tal como não falamos de bullying, e depois os miúdos levam tareias e a resposta da escola é ‘são coisas deles’… Não podemos continuar a repetir os erros do passado! Temos de usar a ciência – a verdadeira – para nos ajudar a encontrar soluções para vivermos todos melhor uns com os outros. Não podemos entrar na espiral de violência.