"A nossa mãe nunca gostou de nós". A voz da minha irmã ainda treme quando diz estas palavras, a nossa mãe morta há tantos anos, e eu a consolá-la como se de repente tivéssemos ambas chegado a essa conclusão e tudo nos fosse insuportável. "Era a doença", digo, como se acreditasse, e ela encolhe os ombros, "a doença tem as costas largas", e na nossa memória as longas tardes em que a nossa mãe pronunciava apenas um nome, "Emília", e a minha irmã acorrendo de imediato, "quer alguma coisa, Mãe?", e ela , "quero a Emília", e a Emília ao canto da sala, as mãos escondidas no avental que nunca tirava, "então, madrinha, olhe que a Guidinha tem passado cá todas as tardes, olhe que ela gosta muito de si, e a Teresinha também , a Teresinha também passa cá muito tempo", mas a minha mãe repetindo apenas, "quero a Emília, onde está a Emília," e a Emília olhando para nós e enrolando as mãos no avental, "vocês não façam caso, não é por mal, sabem como ela é, sempre muito agarrada a mim, mas eu estou sempre a dizer-lhe que flha é filha e as filhas estão sempre primeiro."
Nós olhávamos para a Emília e sabíamos que as palavras eram apenas uma desculpa,
quem sabe se ditadas pelo remorso daqueles anos todos em que eficientemente cumprira a missão para a qual a nossa mãe a tinha educado, ou seja, infernizar-nos a vida.
Desde que, muito miúda, chegara a nossa casa, Emília fôra sempre os olhos e os ouvidos da nossa mãe. "Madrinha, olhe que a Guidinha hoje recebeu um telefonema de um rapaz que não quis dizer o nome", "a Teresinha ontem, Madrinha, foi para a escola toda pintada, a Madrinha veja lá, eu até nem era para dizer nada, mas sei que a Madrinha não gosta que ela se pinte, e sei que tudo o que a Madrinha faz é para nosso bem".
Não havia telefonema, carta, bilhete, segredo que escapasse à Emília, sempre a enrolar as mãos no avental, sempre ao lado da nossa mãe, sempre lançando-nos em cara que era dela e não de nós que a nossa mãe gostava. "Vocês são a cara do vosso pai", dizia a nossa mãe muitas vezes, e eu olhava para a minha irmã tentando com ela imaginar a cara de um homem que nem sequer se preocupara em deixar em nós uma qualquer memória.
Depois de ter desaparecido, todas as fotografias tinham desaparecido também, a nossa mãe afirmando que, desde o dia em que ele pegara nas malas e desaparecera porta fora, era como se nunca tivesse existido. As nossas caras é que estragavam tudo. "Às vezes acho que a nossa mãe nos castigava só para ter a ilusão de que estava a castigar o nosso pai", diz a minha irmã, nesta tarde em que as memórias lhe doem porque fez limpezas na arrecadaçaõ e encontrou uma fotografia da Emília e, nas costas, numa tinta desbotada,"com muitos beijinhos da sua filha Emília". "Que será feito dela?", pergunto, e a minha irmã sorri, "coitada da Emília, devia pensar que estava a investir no seu futuro e afinal…" Afinal a nossa mãe aprendera muito com as suas sábias palavras,"filhas são sempre filhas, madrinha", e deixara explícito no testamento que tudo (quer dizer, a casa e pouco mais…) deveria reverter para nós porque-" e faço questão de citar as suas palavras", disse o advogado-"filhas são sempre filhas". Quando propusemos dividir tudo entre as três, Emília tirou o avental e disse que não aceitava esmolas. Nunca mais soubemos do seu paradeiro. "Feliz Dia da Mãe", digo para a minha irmã, ajudando-a a rasgar a fotografia.