Ao princípio até tinha achado boa ideia. O marido torcera o nariz e avisara-a, "olha que eu caí nessa uma vez e ficou-me de emenda!", mas o marido, toda a gente sabia, era um bicho do mato, três pessoas para ele já eram uma multidão insuportável. Não ligou, e foi a correr escrever na agenda o dia, o local e a hora, com o tempo tão ocupado, que seria dela sem uma agenda onde tudo ficava anotado. Fora isso mesmo que dissera à Cristina, ao telefone. A Cristina é que tinha tido a ideia, e andava agora aflita a pedir contactos a toda a gente: "Sabes da Fernanda? E da Teresa Guerra? E da Filomena? E da Cândida?", e de muitas outras, quase todas a passarem na sua memória de bata branca, soquetes, risco ao lado, aparelho nos dentes, nenhuma a chamar-se Sandra, Vanessa ou Carina, algumas sem qualquer referência, "quem era essa?", "não te lembras?, uma que até namorava um rapaz do Técnico e que um dia foi chamada à Reitora", a Cristina lembrava-se de todas, lembrava-se de tudo, só não tinha o telefone de meia dúzia mas, garantia, havia de os arranjar, aquela turma do liceu havia de se encontrar toda.
De vez em quando telefonava-lhe, "já falei com a Fernanda, já encontrei a Cândida, sabias que a Filomena vive no Brasil?", e ela nunca sabia nada, afastada desse mundo há tantos anos, ela, a única – ou uma das poucas – que não tinha seguido o ensino e, por isso, não ia encontrando as colegas por essas escolas por onde todas deviam rodar. De comum, os sete anos que tinham compartilhado no liceu, percurso terminado em 1960.
"O que a gente vai ter para conversar, já imaginaste?", dizia a Cristina ao telefone, entusiasmada, desfiando em seguida um rol imenso de e-tu-lembras-te-quando, de que ela, evidentemente, não se lembrava, mas lá ia rindo e deixando que a outra fizesse a festa, atirasse os foguetes, apanhasse as canas e limpasse o adro. Mas quando desligava dava consigo também entusiasmada, ia ser giro, claro que ia, ia ser, realmente, uma noite de conversa a terminar lá para as tantas, o marido que não esperasse por ela e se deitasse, ela levava chaves – e, evidentemente, a carteira cheia de fotografias dos filhos e dos netos para o inevitável confronto, "é tal qual a tua cara!", "não são nada parecidos contigo!", coisas assim.
A conta-gotas lá foram chegando, as sobrancelhas franzidas e olhos piscos, "tu eras a das tranças, não eras?", "estás na mesma, caramba!", "o teu apelido era Mascarenhas, mas do nome é que já não me lembro", "olha a… olha a… Rita?… Isabel, claro!, onde é que eu fui buscar a Rita, isto é a minha aterosclerose, não ligues", "Helena, estás igualzinha!… Teresa, é evidente, desculpa!", tudo com muitos risos e beijinhos, havia as que davam só um e lá ficava ela de cara pendurada à espera do outro, prometendo que da próxima também daria só um. Acontece que escolhia a amiga errada e lá vinha o remoque da outra, "eu cá sou das pindéricas e dou sempre dois beijos!", e ela a corar e a pedir a todos os santinhos que aquilo acabasse depressa.
E acabou. Sete anos de convívio diário não conseguiam ganhar a quarenta de separação. Passados todos os e-tu-lembras-te-quando que também não foram assim tantos, a memória já tinha as suas falhas, mesmo a da Cristina que se gabava de se lembrar de tudo), comida a carne assada e a salada de frutas, pouco havia de que falar. Casadas, solteiras, descasadas, com filhos ou sem eles, a vida de cada uma era um reduto onde nenhuma das outras tinha entrado. Ninguém compartilhara angústias, alegrias, esperanças, gravidezes, infidelidades, segredos, mudanças de casa, doenças, prémios, canos rebentados, despedimentos, cartões de Boas Festas pelo Natal.
No final, prometeram todas que haviam de reunir-se outra vez, tinha sido tão giro, não tinha?, sabendo, evidentemente, que nunca mais iriam cair noutra armadilha semelhante.
O marido sorriu ao vê-la entrar, e limitou-se a perguntar "então?". "Tudo bem", disse ela, tirando o casaco e pondo um xaile por cima dos ombros, "parece que estamos todas na mesma".
E sentou-se, feliz por ter chegado a tempo da telenovela.