O que é que une José Mourinho, Mr. Darcy, o movimento gay, 91% dos portugueses e aquela sua colega que entra todos os dias de nariz no ar sem dizer ai nem ui?
Pois, sendo que já leram o título e sabem ao que vão, isto é mais uma pergunta retórica que outra coisa, mas sim, é (todos em coro) o orgulho.
Problema: como já repararam pela amostra dada, estamos perante uma criatura difícil de capturar. Se a inveja, a gula ou a luxúria (ai que saudades) eram muito fáceis de definir, quando se fala em orgulho há imediatamente 6 dedos no ar, cada um com a sua definição. Moralmente, também estamos em terreno movediço. Percebo rapidamente que o orgulho é como o colesterol: há do mau, do bom e do mais ou menos, dependendo do contexto. Inda perguntei se não podia fazer a Luxúria: Parte 2, (ainda havia tanto a dizer sobre filmes pornográficos) mas não. Este mês é o do orgulho, dedicado a todas nós, mulheres, e eu que me desembrulhasse como dizem os (orgulhosos dos) franceses.
Da autoestima à autocrítica
Bem, comecemos pelo orgulhoso-mor do reino: dou com foto de José Mourinho na sua pose habitual, de sobretudo Armani e queixo para cima, e a legenda ‘Continuo a ser ‘the special one’”. Mais orgulho que isto é difícil, certo? Mas será orgulho do bom ou orgulho do mau? Desisto: desta vez preciso de ajuda mesmo desde o princípio do campeonato.
“Dizer ‘I’m the special one’ é uma estrutura narcísica”, explica a psicóloga Íris Guerra. “Se isso é bom ou mau? Depende do contexto em que as pessoas se movem. Há quem mobilize características diferentes consoante lhe interessa aquele ‘boneco’. Pode construir uma imagem profissional que não corresponde rigorosamente à pessoa que é, porque isso o ajuda em termos de desempenho.”
E se já estão a pensar ‘aquele homem tem uma autoestima dos diabos’, pensam bem. Do ponto de vista emocional, o orgulho está associado à autoestima. O outro polo da autoestima é a autocrítica. Quanto à sua colega de nariz no ar, sofre mais de arrogância, que está associada ao narcisismo. “A autoestima tem a ver com a capacidade de eu me amar, de reconhecer o que é bom, de reconhecer o que é menos bom, e de ir trabalhando sobre isso”, explica Íris. “ A autocrítica é não ter a capacidade de reconhecer o que é bom em mim.”
‘Sou melhor do que tu’
Portanto, uma pessoa orgulhosa (no bom sentido) terá bastante autoestima. Mas a verdade é que, em Portugal, Mourinho é uma exceção. Apesar de sermos, segundo um estudo de 2007, o país europeu com mais orgulho no seu passado histórico, não é muito bem visto que mostremos orgulho em nós próprios individualmente e no presente, como bons seguidores da doutrina cristã. “Entre nós o orgulho é imediatamente conotado com vaidade”, confirma Íris. “No outro dia a minha filha perguntava-me ‘Ó mãe, ser vaidosa é mau?’ Não tem de ser mau… Temos de ter consciência daquilo que somos sem perder o pé aos nossos defeitos, e tendo a noção de que podemos agir sobre aquilo que nos desconforta, não temos de ficar atados ao que nos faz sofrer.”
Problema: para isso temos de nos permitir sentir, e isso vai fragilizar-nos. E não estamos numa sociedade que nos permita ser frágil… Começo a perceber a colega antipática, e quase todos os antipáticos deste mundo: “ Sim, a arrogância pode ser uma forma de se protegerem, de afastarem os outros, e uma forma de bloquear ressonância emocional: eu não quero sentir, através dos outros, que há qualquer coisa que eu devia mudar em mim” confirma Íris.
É aqui que começa o colesterol, desculpem, o orgulho ‘mau’, que nos entope as veias, desculpem, a alma: “Começa quando nos impede de criar relações de proximidade e quando nos impede de estarmos bem connosco próprios”, nota Íris. “Quando estou distante dos outros, não estou só distante dos outros, estou distante de mim próprio. Quando não me permito ser frágil, não consigo criar relações de proximidade, porque não preciso de ninguém, sou uma ilha, conto unicamente comigo.” Lembram-se do Mr. Darcy, ó leitoras da Jane Austen? Bem, mesmo assim sempre conseguiu arrepiar caminho, não sem umas marretadas psicológicas que lhe mostraram que quem não arrepia caminho não é amado.
Bem, mas já que estamos no mês da mulher, qual é a diferença entre orgulho e vaidade? “O orgulho é como eu me sinto em relação a mim: é a capacidade de perceber o meu grau de realização e equacioná-lo com aquilo que eu sou e o meu percurso de desenvolvimento pessoal. A vaidade é como eu me sinto em relação aos outros: é o ‘eu sou melhor do que tu’. É como a vergonha e o embaraço. A vergonha é existencial, é de mim para mim, penso ‘não devia ter feito aquilo’, o embaraço é, os outros vão achar que eu sou estúpido.”
É importante ter luxos?
Agora que já estamos mais arrumadas em termos de definições, vamos lá deitar mais umas achas para a fogueira: não estamos numa época em que o orgulho seja um sentimento muito prevalecente. O que é que acontece quando tenho imenso orgulho no meu carro, na minha casa, no meu barco, e de repente me tiram tudo isso? “As pessoas orientam-se para objetivos, mas sem perceberem que tudo o que é construção é um processo”, explica Íris. Ou seja: quanto mais a nossa capacidade para nos ligarmos à experiência à medida que ela vai decorrendo, mais a nossa capacidade para tirar partido daquilo que conseguimos. “Por isso é que nos aparecem tantas pessoas a dizer ‘eu tenho um carro, duas casas, bom emprego, um barco, cinco filhos, mas não sou feliz’. Porque as pessoas só pensam nas coisas, e não no processo de conquista. Não há significado associado à conquista. E isto no nosso mundo é muito problemático: tenho tudo, mas não tenho nada.”
Como é que mudamos isto? Parando para pensar. “Uma das grandes vantagens desta crise é ter vindo mostrar o que é realmente importante: a nossa ligação aos outros e a nossa ligação a nós próprios. Claro que isto não é a apologia do não ter. Mas é importante distinguir as necessidades básicas das secundárias, e não confundir ter com precisar.”
Snif… Então e se eu quiser aquela mala que custa uma fortuna, mas de que, de facto, não preciso para nada porque já tenho 24 outras malas, sou uma vaidosa empedernida e sem remissão? “Claro que não. Há luxos que nos fazem felizes, e é importante tê-los. A questão que tem de pôr a si própria é: qual é a necessidade e a frequência dessa necessidade? Consigo ser feliz sem isso? Dependo disso para definir quem sou?”
‘O meu filho tem muita personalidade’
Já falámos nos adultos, mas, e os arrogantes em ponto pequeno? Estão a ver aqueles pais que dizem com, bem, com orgulho mesmo, “O meu filho tem imensa personalidade” e tudo o que nós vemos é uma criancinha insuportável e teimosa, que exige tudo como ela quer e amua quando as coisas não lhe correm de feição?
Pois fiquem sabendo que isso não é uma personalidade forte: isso é o exemplo acabado de uma personalidade frágil. “Os pais têm ensiná-lo a agir de outra maneira, a considerar outros aspetos,” nota Íris. Mas muitas vezes, são as crianças que mais precisam de limites que não os têm. “Os pais dizem ‘ai, vão ter tempo de aprender, a sociedade depois mostra-lhes que não podem ser assim’. Mas nessa altura, já vai ser tarde! Ou então até gostam, acham que o filho é forte, mas é exatamente o contrário, uma personalidade rígida é a mais frágil de todas, porque não é adaptativa. Quando houver uma situação de perda ou insucesso, aquela pessoa vem por aí abaixo toda ela. Somos como as casas: se temos estrutura mental sísmica, se somos maleáveis, abanamos mas não caímos. Se temos uma estrutura rígida, desmoronamos.”
Como abanar sem cair
Em resumo: desde pequenos que a abertura à experiência é essencial, e não podemos reagir com uma estrutura de pensamento rígida. A abertura à novidade é essencial. São importantes duas coisas: que eles saibam impor limites – têm de saber que não têm de ser como os outros querem que eles sejam para serem amados. E é importante que saibam virar costas àquilo que não lhes serve, que é demasiado ameaçador. “Passamos às crianças a ideia de que têm de ser o melhor, de que nunca podem virar a cara. Nós só vamos ser os melhores às vezes… Mas não podemos confundir partes minhas com o todo, com quem eu sou.”
Portanto, é bom sermos orgulhosos se isso incluir a nossa relação com os outros. “Atualmente, somos demasiado críticos: connosco e com os outros. Só nos conseguimos transformar se percebermos que isso não implica perdermo-nos enquanto pessoa. Se não damos espaço à abertura e à experiência, ficamos fechados dentro de nós.” A autoestima é o lado saudável no meio disto tudo, mas ela implica várias cedências. Será que vamos conseguir ser todos, à nossa maneira, ‘the special one’?
GUIA PARA A HUMILDADE
Perceba as suas limitações, sem desistir dos seus sonhos. Reconheça as suas faltas: é sempre mais fácil atirar as culpas para cima dos outros. Pare de se comparar com os outros e não tenha medo de dar erros. Permaneça ‘ensinável’: procure um ‘guru’ com quem possa aprender. Aprenda também a ouvir os outros em vez de falar o tempo todo. Seja delicado. Recupere a serenidade e a arte de não fazer nada. E lute para ser feliz.