A Revoltada
Corre-lhe tudo mal: o chefe não vai com a cara dela, os filhos nunca fazem o que ela manda, o marido se fosse esperto já tinha arranjado emprego, mas não, é um banana que nem para isso serve, e basicamente o dia para ela está sempre de chuva, e quando ainda tentamos animá-las, atiram: “Pois, falar é muito fácil quando não se passa pelo mesmo que eu!”
– Porque continuamos amigas? Hummm. É uma boa pergunta. Talvez porque nos amam com a mesma intensidade com que odeiam, ou talvez porque houve uma altura, num passado remoto, em que ainda achámos que podíamos ajudar. Quando percebemos que não podíamos, porque ela não queria a nossa ajuda, já era demasiado tarde para a ‘desamigar’.
– O que podemos fazer. Não tentar concorrer com ela em termos de desgraças, porque ela ganha-nos sempre. Também não cair na asneira de dizer ‘Coitadinha!’ porque ela dispara logo ‘Nunca fui coitadinha, graças a Deus!’ Basicamente, o melhor a fazer é ouvir e calar, e ir pensando no que é que vai fazer para o jantar.
A Matraca
Pronto, já adivinharam: esta não se cala. Não precisa
de uma amiga, precisa de um par de ouvidos, e tanto lhe faz serem os nossos como os de outra pessoa qualquer. Se calhar isto não é bem verdade, mas é a sensação com que ficamos quando estamos com ela. Ao princípio achámos graça, pensámos que era um sinal de cumplicidade imediata, pensámos ‘olha que giro uma pessoa que acabei agora mesmo de conhecer e como já temos tantas coisas em comum’, mas ao fim de duas horas em que ela fala sem se calar aquilo começou a tornar-se um bocado cansativo. Só nos lembramos daquela personagem do Quino, a Susaninha, que ralhava à Mafaldinha por não estar ‘aberta ao monólogo’.
– Porque continuamos amigas? Ela precisa de alguém com quem desabafar e só ela segura a relação, e nós deixamos correr porque precisamos de companhia. É triste mas é verdade.
– O que podemos fazer. Se for possível, racionar os encontros ou levar outras pessoas para partilhar o fardo. Mas é uma relação que não costuma ter futuro porque, eventualmente, a ‘ouvinte’ acaba por ‘morrer’ de exaustão e a corda quebra…
A Perfeita
Nada está fora do sítio: o cabelo, a roupa, o marido, os filhos. É linda de morrer, o marido é lindo de morrer, os filhos são lindos de morrer, até o gato é lindo de morrer. É simpática, engraçada e boazinha. Vai ao ginásio à hora de almoço, nunca tem uma unha partida, e faz voluntariado ao domingo num centro comunitário para sem-abrigos. Tem sempre tempo para toda a gente. Nunca se exalta. E consegue andar de saltos altos na calçada portuguesa. Grrrr…
– Porque continuamos amigas? Temos a secreta esperança de um dia acordar parecidas com ela, ou mesmo que se possa contrair a perfeição e que alguma daquela beleza passe para nós.
– O que fazer. Tentarmos ser mais parecidas com ela no que conseguirmos, sabermos que não faz mal se não conseguirmos, e lembrarmo-nos de que a perfeição é uma grande chatice.
A Distante
Se pensarmos bem, a última vez que a vimos foi há… dois anos? Ela aparece-nos de fugida no Facebook, diz-nos ‘Ai estás tão linda!’ numa foto qualquer, manda beijinhos beijinhos, espeta um like e torna a desaparecer tão depressa como chegou, como a Fada Sininho. A vida dela complicou-se, a nossa também, partilhamos este maldito mundo em que parece não haver tempo para o que é importante. Sabemos que o importante é uma pessoa estar no nosso coração, mas também é importante estar quotidianamente connosco… Gostamos dela, faz parte da nossa vida, achamos nós, porque ainda pensamos nela, às vezes, mas a verdade é que nunca estamos com ela e se calhar essa vida de que ela faz parte já não é a nossa… Ou é? Assunto para discussão: a partir de quando é que uma pessoa deixa de fazer parte da nossa vida?
– Porque continuamos amigas? Porque gostamos genuinamente dela e porque de facto não há razão nenhuma para não continuarmos amigas.
– O que podemos fazer. Não estar à espera que os outros façam tudo, e tomar a iniciativa de lhe ligar mais vezes, de fazer um esforço para estar mais tempo com ela. Às vezes a culpa também é nossa…
A Desgraçadinha
Esta é mesmo desgraçadinha. O marido fugiu, o chefe despediu-a, o cão morreu com um osso entalado na glote e a sogra, em vez de morrer com um osso entalado na glote, continua viva a atazanar-lhe o juízo. Temos sempre remorsos quando não podemos estar com ela, temos sempre a sensação de que não fizemos o suficiente quando estamos, sentimo-nos permanentemente culpadas porque a vida corre-nos (um bocadinho) melhor, e não podemos partilhar alegrias porque a desgraçada, pronto, é desgraçada. Com que cara é que se chega ao pé de uma desgraçada e se diz “Olha, sabes, estou tão contente, estou grávida!”, ou “olha, sabes, estou tão contente, fui promovida”. Ou mesmo “olha, sabes, estou tão contente por nenhuma razão em especial, só porque está um dia bonito e os passarinhos cantam e já não me dói o siso do lado esquerdo.” Suspiro.
– Porque continuamos amigas? Porque ela precisa de nós. E, de alguma maneira estranha e psicanalítica, nós também precisamos dela.
– O que podemos fazer. Levá-la para tomar um cafezinho ao fim da tarde, arranjar quem fique com os miúdos e levá-la a passear, arrastá-la para um fim de semana de paz e sossego, ou simplesmente ouvi-la mesmo, sem estar a pensar “ó meu deus, é mesmo desgraçadinha”, e ajudá-la a encontrar soluções para o que a preocupa.
A Stressada
Nunca está só connosco, com calma, em paz e sossego, de olhos nos olhos. Chega sempre atrasada porque vem de uma reunião, um lançamento ou uma consulta no oftalmologista, parte sempre a correr porque ainda tem de ir buscar a Ritinha à natação, passar na lavandaria e comprar um presente para a sogra que faz anos amanhã. A vida é um carrossel: não diz que não a ninguém, o que quer dizer que nunca está verdadeiramente com ninguém. Quando andamos com ela na rua, ela vai sempre dois passos mais à frente do que nós, mesmo que por acaso não esteja milagrosamente atrasada para nada (mas está sempre). Anda sempre em passo de corrida, faz muito mais do que toda a gente, tem conversa para este mundo e o outro, e é um amor de pessoa. É pena que nos dê insónias só de olhar para ela.
– Porque continuamos amigas? Porque, ao contrário do resto do mundo, esta arranja sempre tempo para estar connosco, ali entre a sogra e o dentista.
– O que podemos fazer. Aproveitar o que temos. Apesar de tudo, dá-nos mais do que muita gente…
A Mãe de Família
Nunca se está só com ela, está-se com ela e mais o Tiaguinho, o Joãozinho e a Maria. ‘Ó Vasco! Tu és capaz de largar o teu irmão fazes favor, ou é preciso eu levantar-me e ir aí resolver a coisa? Ó Joana, tu desculpa lá e aguenta aí um minuto, eu vou só ali separar os miúdos e já venho, sabes que isto com crianças…” ‘Sabes que isto com crianças…’ é a sua frase preferida, implicando que é uma pessoa bués ocupada, sem tempo para coisas normais como o comum mortal ou a desocupada solteira. Até pode ter só uma criança, mas é a mesma coisa que ter 12. Nunca está sem a criança, nunca pode por causa da criança, e mesmo quando pode, leva a criança, e mesmo quando não leva a criança, está continuamente a falar da criança.
– Porque continuamos amigas? Porque temos saudades do tempo em que ela não tinha criança nenhuma e porque uma parte irrealista de nós ainda acha que um dia vamos ter esse tempo de volta.
– O que podemos fazer. Nada. Este é mesmo um caso sem remédio. Habitue-se que agora aquela pessoa é uma Mãe.